A Semana
NA SEGUNDA-FEIRA da semana que findou, acordei cedo,
pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema.
Verdadeiramente era uma charada, mas o nome de problema dá dignidade, e excita
para logo a atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não
fazem benefício, mas festa artística. A cousa é a mesma, os bilhetes crescem de
igual modo, seja em número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta,
uma polca entre Dois atos, uma poesia, várias ramalhetes, lampiões fora, e os
colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada.
Tudo pede certa elevação. Conheci Dois velhos
estimáveis, vizinhos, que esses tinham todos os dias a sua festa artística. Um
era Cavaleiro da Ordem da Rosa, por serviços em relação à guerra do Paraguai; o
outro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava
bons serviços. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas.
Despertavam-se um ao outro desta maneira: "Caro major!"
-"Pronto, comendador!" - Variavam às vezes:
- "Caro comendador!" -"Aí vou, Major" . Tudo pede certa
elevação.
Para não ir mais longe. Tiradentes. Aqui está um
exemplo. Tive-mos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do
heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país,
se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um
simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos
Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da
razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou
os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação
aqueles outros; eram patriotas.
Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de
Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus
companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado. o
decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por
todos, visto que pagou por todos. Um dos oradores do dia 21 observou que se a
Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o
alferes. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal
cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em
torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu
encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das
ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração
geral das cousas.
Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu
narrando os seus crimes às ninfas amadas: "Dei o fogo aos homens; esse
mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa a alcunha. Há
pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem
tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade
do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido
galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião - dentista. Era o
mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até
que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas
cirurgião.
Há muitos anos, um rapaz-por sinal que bonito-estava
para casar com uma linda moça-a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios
e primos. Mas o noivo demorava o consórcio; adiava de um sábado para outro,
depois quinta-feira, logo terça, mais tarde sábado;-dou meses de espera. Ao fim
desse tempo, o futuro sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz
não quisesse casar. A sogra, que antes de o ser já era, pegou o pau moral, e
foi ter com o esquisito genro. Que histórias eram aquelas de adiamento?
-Perdão, minha senhora, é uma nobre e alta razão;
espero apenas ...
-Apenas...?
-Apenas o meu título de agrimensor.
-De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha
precisa do seu ofício para comer? Case, que não morrerá de fome; o título virá
depois.
-Perdão, mas não é pelo título de agrimensor,
propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao
agrimensor, por cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor... Sogra,
sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o moco. Em
boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de agrimensor,
de doutor e de marido.
Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo; mas, não
entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do
eleitorado na eleição do dia 20 quer dizer descrença, como afirmam uns, ou
abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do
eleitor: a abstenção é propósito. Há quem não veja em tudo isto mais de
ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patrícios. O que
sei, é que fui à minha seção para votar, mas achei a porta fechada e a urna na
rua, com os livros e ofícios. Outra casa os acolheu compassiva, mas os mesários
não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questão de
saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a
charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões;
uns foram pelo ovo outros pela galinha; o próprio galo
teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não
vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso.
O BANCO INICIADOR de Melhoramentos acaba de iniciar um
melhoramento, que vem mudar essencialmente a composição das atas das assembléias
gerais de acionistas.
Estes documentos (toda a gente o sabe) são o resumo
das deliberações dos acionistas, quer dizer uma narração sumária, em estilo
indireto e seco, do que se passou entre eles, relativamente ao objeto que os
congregou. Não dão a menor sensação dos movimentos e da vida dos debates. As
narrações literárias, quando se regem por esse processo, podem vencer o tédio,
à força de talento, mas é evidentemente melhor que as cousas e pessoas se
exponham por si mesmas, dando-se a palavra a todos, e a cada um a sua natural
linguagem.
Tal é o melhoramento a que aludo. A ata que aquela
associação publicou esta semana, é um modelo novo, de extraordinário efeito.
Nada falta do que se disse, e pela boca de quem disse, à maneira dos debates
congressionais.-"Peço a palavra pela ordem"-"Está encerrada a
discussão e vai-se proceder à votação. Os senhores que aprovam queiram ficar
sentados." Tudo assim, qual se passou, se ouviu, se replicou e se acabou.
E basta um exemplo para mostrar a vantagem da reforma.
Tratando-se de resolver sobre o balanço, consultou o presidente à assembléia se
a votação seria por ações, ou não. Um só acionista adotou a afirmativa; e tanto
bastava para que os votos se contassem por ações, como declarou o presidente,
mas outro acionista pediu a palavra pela ordem. "Tem a palavra pela
ordem." E o acionista: "Peço a V. Ex.a Sr. Presidente, que consulte
ao Sr. acionista que se levantou, se ele desiste, visto que a votação por
ações, exigindo a chamada, tomará muito tempo". Consultado o divergente,
este desistiu, e a votação se fez per capita. Assim ficamos sabendo que o tempo
é a causa da supressão de certas formalidades exteriores; e assim também vemos
que cada um, desde que a matéria não seja essencial, sacrifica facilmente o seu
parecer em benefício comum.
O pior é se corromperem este uso, e se começarem a
fazer das sociedades pequenos parlamentos. Será um desastre. Nós pecamos pelo
ruim gosto de esgotar todas as novidades. Uma frase, uma fórmula, qualquer
cousa, não a deixamos antes de posta em molambo. Casos há em que a própria
referência crítica ao abuso perde a graça que tinha, à força da repetição; e
quando um homem quer passar por insípido (o interesse toma todas as formas),
alude a uma dessas chatezas públicas. Assim morrem afinal os usos, os
costumes, as instituições, as sociedades, o bom e o
mau. Assim morrerá o universo, se se não renovar freqüentemente.
Quando, porém, acabará o nome que encima estas linhas?
Não sei quem foi o primeiro que compôs esta frase, depois de escrever no alto
do artigo o nome de um cidadão. Quem inventou a pólvora? Quem inventou a
imprensa, descontando Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o
bocejo, excluindo naturalmente o Criador, que, em verdade, não há de ter visto
sem algum tédio as impaciências de Eva? Sim, pode ser que na alta mente divina
estivesse já o primeiro consórcio e a conseqüente humanidade. Nada afirmo,
porque me falta a devida autoridade teológica; uso da forma dubitativa.
Entretanto, nada mais possível que a Criação trouxesse
já em gérmen uma longa espécie superior, destinada a viver num eterno paraíso.
Eva é que atrapalhou tudo. E daí, razoavelmente, o primeiro bocejo.
-Como esta espécie corresponde já à sua índole! diria
Deus consigo. Há de ser assim sempre, impaciente, incapaz de esperar a hora
própria. Nunca os relógios, que há de inventar, andarão todos certos. Por um
exato, contar-se-ão milhões divergentes, e a casa em que Dois marearem o mesmo
minuto. não apresentará igual fenômeno vinte e quatro horas depois. Espécie
inquieta, que formará reinos para devorá-los, repúblicas para dissolvê-las,
democracias, aristocracias, oligarquias, plutocracias, autocracias, para acabar
com elas, à procura do ótimo, que não achará nunca.
E, bocejando outra vez, terá Deus acrescentado:
- O bocejo, que em mim é o sinal do fastio que me dá
este espetáculo futuro, também a espécie humana o terá, mas por impaciência. O
tempo lhe parecerá a eternidade. Tudo que lhe durar mais de algumas horas,
dias, semanas, meses ou anos (porque ela dividirá o tempo e inventará almanaques,
há de torná-la impaciente de ver outra cousa e desfazer o que acabou de fazer,
às vezes antes de o ter acabado. Compreenderá as vacas gordas, porque a gordura
dá que comer, mas não entenderá as vacas magras; e não saberá (exceto no Egito,
onde porei um mancebo chamado José) encher os celeiros dos anos graúdos, para
acudir à penúria dos anos miúdos. Falará muitas línguas, beresith, ananké,
habeas corpus, sem se fixar de vez em uma só, e quando chegar a entender que
uma língua única é precisa, e inventar o volapuk, sucessor do parlamentarismo,
terá começado a decadência e a transformação. Pode ser então
que eu povoe o mundo de canários.
Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino,
como acharmos o primeiro bocejo humano? Trevas tudo. O mesmo se dá com o nome
que encima estas linhas. Nem me lembra em que ano apareceu a fórmula. Bonita
era, e o verbo encimar não era feio. Entrou a reproduzir-se de um modo
infinito. Toda a gente tinha um nome que encimar algumas linhas. Não havia
aniversário, nomeação, embarque, desembarque, esmola, inauguração, não havia
nada que não inspirasse algumas linhas a alguém, - às vezes com o maior fim de
encimá-las por um nome. Como era natural, a fórmula foi-se gastando-mas
gastando pelo mesmo modo por que se gastam os sapatos econômicos, que
envelhecem tarde. E todos os nomes do calendário foram encimando todas as
linhas; depois, repetiram-se:
Si cette histoire vous embête Nous allons la
recommencer.
''O MINISTÉRIO grego pediu demissão. O Sr. Tricoupis
foi encarregado de organizar novo ministério, que ficou assim composto:
Tricoupis, presidente do conselho e Ministro da Fazenda..." Basta! Não,
não reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que toda a mole de
acontecimentos da semana. O ministério grego pediu demissão! Certo, os
ministérios são organizados para se demitirem e os ministérios gregos não podem
ser, neste ponto, menos ministérios que todos os outros ministérios. Mas, por
Vênus! foi para isso que arrancaram a velha terra às mãos turcas? Foi para isso
que os poetas a cantaram, em plena manhã do século, Byron, Hugo, o nosso José
Bonifácio, autor da bela "Ode aos Gregos"? "Sois helenos! sois
homens!" conclui uma de suas estrofes. Homens creio,
porque é próprio de homens formar ministérios; mas
helenos Sombra de Aristóteles, espectro de Licurgo, de Draco, de Sólon, e tu,
justo Aristides, apesar do ostracismo, e todos vós, legisladores, chefes de
governo ou de exército, filósofos, políticos, acaso sonhastes jamais com esta
imensa banalidade de um gabinete que pede demissão? Onde estão os homens de
Plutarco? Onde vão os deuses de Homero? Que é dos tempos em que Aspásia
ensinava retórica aos oradores?- Tudo, tudo passou. Agora há um parlamento, um
rei, um gabinete e um presidente de
conselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da
Fazenda. Ouves bem, sombra de Péricles? Pasta da Fazenda. E notai mais que
todos esses movimentos políticos se fazem, metidos os homens em casacas pretas,
com sapatos de verniz ou cordovão, ao cabo de moções de desconfiança...
Oh! mil vezes a dominação turca! Horrível, decerto,
mas pitoresca. Aqueles paxás, perseguidores do giaour, eram deliciosos de
poesia e terror. Vede se a Turquia atual já aceitou ministérios. Um grão-vizir,
nomeado pelo padixá, e alguns ajudantes, tudo sem câmara, nem votos. A Rússia
também está livre da lepra ocidental. Tem o niilismo, é verdade; mas não tem o
bimetalismo, que passou da América à Europa, onde começa a grassar com
intensidade. O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois é misterioso,
dramático, épico, lírico, todas as formas da poesia. Um homem esta jantando
tranqüilo, entre uma senhora e uma pilhéria, deita a pilhéria à senhora, e,
quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de dinamite. Adeus, homem
tranqüilo: adeus, pilhéria; adeus, senhora. n violento; mas o bimetalismo é
pior.
Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo não
é curta a distancia, mas daqui ao cambio é um passo; pode parecer até que não
falei do primeiro senão para dar a volta ao mundo. Engano manifesto.
Hoje só trato de telegramas, que aí estão de sobra,
norte e sul. Aqui vêm alguns de Pernambuco, dizendo que as intendências
municipais também estão votando moções de confiança e desconfiança política.
Haverá quem as censure; eu compreendo-as até certo
ponto.
A moção de confiança, ou desconfiança no passado
regímen, era uma ambrosia dos deuses centrais. Era aqui na Câmara dos
Deputados, que um honrado membro, quando desconfiava do governo pedia a palavra
ao presidente, e, obtida a palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente
tétrico, proferia um discurso em que resumia todos os erros e crimes do
ministério, e acabava sacando um papel do bolso. Esse papel era a moção. De
confidências que recebi, sei que há poucas sensações na vida iguais à que tinha
o orador, quando sacava o papel do bolso. A alguns tremiam os dedos. Os olhos
percorriam a sala, depois baixavam ao papel e liam o conteúdo. Em seguida a
moção era enviada ao presidente, e o orador descia da tribuna, isto é, das
pernas que são a única tribuna que há no nosso parlamento, não contando uns Dois
púlpitos que lá puseram uma vez, e não serviram para nada. Aí têm o que era a
moção. Nunca as assembléias provinciais tiveram esse regalo; menos ainda as
tristes câmaras municipais. Mudado o regímen, acabou a moção; mas, não se morre
por decreto. A moção não só vive ainda, mas passou dos deuses centrais aos
semideuses locais, e viverá algum tempo, até que acabe de todo, se acabar algum
dia. O caso grego é sintomático; o caso japonês não menos. Há moções japonesas.
Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; não haverá mais que fechar as
malas e ir para o diabo.
Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de
Canavieiras (Bahia) foram a uma vila próxima e arrebataram duas moças. A gente
da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e é Homero; é ainda
mais que Homero, que só contou o rapto de uma Helena: aqui são duas. Essa luta
obscura, escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que
se trava no Rio Grande do Sul, onde a causa não é uma, nem duas Helenas, mas um
só governo político. Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o
amor e o poder são as duas forças principais da terra. Duas vilas disputam a
posse de duas moças; Bagé luta com Porto Alegre pelo direito do mando. É a
mesma Ilíada.
Dizem telegramas de S. Paulo que foi ali achado, em
certa casa que se demolia, um esqueleto algemado. Não tenho amor a esqueletos;
mas este esqueleto algemado diz-me alguma cousa, e é difícil que eu o mandasse
embora, sem três ou quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma história
grave, longa e naturalmente triste, por-que as algemas não são alegres. Alegres
eram umas máscaras de lata que vi em pequeno na cara de escravos dados à
cachaça; alegres ou grotescas, não sei bem, porque lá vão muitos anos, e eu era
tão criança, que não distinguia bem. A verdade é que as máscaras faziam rir,
mais que as do recente carnaval. O ferro das algemas, sendo mais duro que a
lata, a história devia ser mais sombria.
Há um telegrama... Diabo! acabou-se o espaço, e ainda
aqui tenho uma dúzia. Cesta com eles! Vão para onde foi a questão do benzimento
da bandeira, os guarda-livros que fogem levando a caixa (outro telegrama), e o
resto dos restos, que não dura mais de uma semana, nem tanto. Vão para onde já
foi esta crônica. Fale o leitor a sua verdade. e diga-me se lhe ficou alguma
cousa do que acabou de ler. Talvez uma só, a palavra clavinoteiros, que parece
exprimir um costume ou um ofício. Cá vai para o vocabulário.
NA VÉSPERA de S. Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos
minutos depois, passei pela igreja do Carmo, catedral provisória, ouvi o cantochão
e orquestra; entrei. Quase ninguém. Ao fundo, os ilustríssimos prebendados, em
suas cadeiras e bancos, vestidos daquele roxo dos cônegos e monsenhores, tão
meu conhecido . Cantavam louvores a S. Pedro. Deixei-me estar ali alguns
minutos escutando e dando graças ao príncipe dos apóstolos por não haver na
igreja do Carmo um carrilhão. Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes
pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em
Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande espírito. que me
senti (desculpem a expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado.
Assim se diz na igreja espírita. Ter desencarnado quer dizer tirado (o
espírito) da carne, e reencarnado quer dizer metido outra vez na carne. A lei é
esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre.
Convém notar que a desencarnação não se opera como nas outras religiões, em que
a alma sai toda de uma vez. No espiritismo, há ainda um esforço humano, uma
cerimônia, para ajudar a sair o resto. Não se morre ali com esta facilidade
ordinária, que nem merece o nome de morte. Ninguém ignora que há caso de
inumações de pessoas meio vivas. A regra espírita, porém, de auxiliar por
palavras, gestos e pensamentos a desencarnação impede que um supro de alma
fique metido no invólucro mortal.
Posso afirmar o que aí fica, porque sei. Só o que eu
não sei, é se os sacerdotes espíritas são como os brâmanes, seus avós. Os
brâmanes... Não, o melhor é dizer isto por linguagem clássica. Aqui está como
se exprime um velho autor: "Tanto que um dos pensamentos por que os
brâmanes têm tamanho respeito às vacas, é por haverem que no corpo desta
alimária fica uma alma melhor agasalhada que em nenhum outro, depois que sai do
humano; e assim põem sua maior bem-aventurança em os tomar a morte com as mãos
nas ancas de uma vaca, esperando se recolha logo a alma nela."
Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote espírita,
metido dentro de uma vaca, e um homem, não desencarnado, a vender-lhe o leite
pelas ruas, seguidos de um bezerro magro... Não; lembra-me agora que não pode
ser, porque o princípio espírita não é o mesmo da transmigração, em que as
almas dos valentes vão para os corpos dos leões, a dos fracos para os das
galinhas, a dos astutos para os das raposas, e assim por diante. O princípio
espírita é fundado no progresso. Renascer, progredir sempre; tal é a lei. O
renascimento é para melhor. Cada espírita, em se desencarnando, vai para os
mundos superiores.
Entretanto, pergunto eu: não se dará o progresso, algumas
vezes. na própria terra? Citarei um fato. Conheci há anos um velho, bastante
alquebrado e assaz culto, que me afirmava estar na segunda encarnação. Antes
disso, tinha existido no corpo de um soldado romano, e, como tal, havia
assistido à morte de Cristo. Referia-me tudo, e até circunstâncias que não
constam das escrituras. Esse bom velho não falava da terceira e próxima
encarnação sem grande alegria, pela certeza que tinha de que lhe caberia um
grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha... E quem nos pode afirmar que o
Guilherme II. que aí está, não seja ele? Há, repetimos, cousas na vida que é
mais acertado crer que desmentir; e quem não puder - crer, que se cale.
Voltemos ao carrilhão. Já referi que entrara na
igreja, não contei; mas entende-se, que na igreja não entram revoluções, por
isso não falo da do Rio Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, é verdade, como
a daquele singular pároco da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de
ordens, segundo dizem telegramas, não obedece, não se cala, e continua a
paroquiar. Os clavinoteiros também não entram; por isso ameaçam Porto Seguro,
conforme outros telegramas. Não entram discursos parlamentares, nem lutas ítalo
- santistas, nem auxílios às indústrias, nem nada. Há ali um refúgio contra os
tumultos exteriores e contra os boatos, que recomeçam. Voltemos ao carrilhão.
Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das
nossas igrejas, não provei até certa idade as aventuras de um carrilhão. Ouvia
falar de carrilhão, como das ilhas Filipinas, uma cousa que eu nunca havia de
ver nem ouvir.
Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilhão. Tínhamos
carrilhão na terra. Outro dia, indo a passar por uma rua, ouço uns sons alegres
e animados. Conhecia a toada, mas não lembrava a letra. Perguntei a um menino,
que me indicou a igreja próxima e disse--me que era o carrilhão. E, não
contente com a resposta, pôs a letra na música: era o Amor Tem Fogo.
Geralmente, não dou fé a crianças. Fui a um homem que estava à porta de uma
loja e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depois calou-se e
disse convencidamente: parece incrível como se possa, sem o prestígio do
teatro, as saias das mulheres, os requebrados, etc., dar uma impressão tão
exata da opereta. Feche os olhos, ouça-me a mim e ao carrilhão, e diga-me se
não ouve a opereta em carne e osso:
Amor tem fogo,
Tem fogo amor.
- Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso.
S. PEDRO, apóstolo da circuncisão, e S. Paulo,
apóstolo de outra cousa, que a Igreja Católica traduziu por gentes, e que não é
preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou Dois
assuntos puxarem para si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros
ao relento, dá-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo à cena
tão-somente a arraia-miúda, as pobres ocorrências de nada, a velha anedota, o
sopapo casual, o furto, a facada anônima, a estatística mortuária, as
tentativas de suicídio. O cocheiro que foge, o noticiário, em suma. É que eu
sou justo, e não posso ver o fraco esmagado pelo forte. Além disso, nasci com
certo orgulho, que já agora há de morrer comigo. Não gosto que os fatos nem os
homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu é
que os hei de enfeitar com dois ou três adjetivos, uma reminiscência clássica,
e os mais galões de estilo. Os fatos, eu é que os hei de declarar
transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários.
Daí o meu amor às chamadas chapas. Orador que me
quiser ver aplaudi-lo, há de empregar dessas belas frases feitas, que, já
estando em mim, ecoam de tal maneira, que me parece que eu é que sou o orador.
Então, sim, senhor, todo eu sou mãos, todo eu sou boca, para bradar e palmear.
Bem sei que não é chapisca quem quer. A educação faz bons chapiscas, mas não os
faz sublimes. Aprendem-se as chapas, é verdade, como Rafael aprendeu as tintas
e os pincéis; mas só a vocação faz a Madona e um grande discurso. Todos podem
dizer que "a liberdade é como a fênix, que renasce das próprias
cinzas"; mas só o chapisca sabe acomodar esta frase em fina moldura. Que
dificuldade há em repetir que "a imprensa, como a lança de Télefo, cura as
feridas que faz"? Nenhum; mas a questão não é de ter facilidade, é de ter
graça. E depois, se há chapas anteriores, frases servidas, ideias enxovalhadas,
há também (e nisto se conhece o gênio) muitas frases que nunca ninguém
proferiu, e nascem já com cabelos brancos. Esta invenção de chapas originais
distingue mais positivamente o chapisca nato do chapisca por educação. Voltemos
aos apóstolos. Que direito tinha S. Pedro de dominar os acontecimentos da
semana? Estava escrito que ele negaria três vezes o divino Mestre, antes de
cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava de o negar pela terceira vez, e
reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S. Paulo, tendo ensinado a palavra
divina às igrejas de Sicília, de Gênova e de Nápoles, viu que alguns a
sublevaram para torná-las ao pecado (ou para outra cousa), e lançou uma
daquelas suas epístolas exortativas; concluindo tudo por ser levado o conflito
a Roma e a Jerusalém, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdade
das cousas.
São negócios graves, convenho; mas há outros que, por
serem leves, não merecem menos. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, deu-se
uma pequena divergência. de que apenas tive vaga notícia, por não poder ler,
como não posso escrever; o que os senhores estão lendo, vai saindo a olhos
fechados. Ah! meus caros amigos! Ando com uma vista (isto é grego; em português
diz-se um olho) muito inflamada, a ponto de não poder ler nem escrever. Ouvi
que na Câmara surdiu divergência entre a maioria e a minoria, por causa da
anistia. A questão rimava nas palavras, mas não rimava nos espíritos. Daí
confusão, difusão, abstenção. Dizem que um jornal chamou ao caso um beco sem
saída; mas um amigo meu (pessoa dada a aventuras amorosas) diz-me que todo beco
tem saída; em caso de fuga, salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro
próximo, ou cai-se do outro lado. Coragem e pernas. Não entendi nada.
A falta de olhos é tudo. Quando a gente lê por olhos
estranhos entende mal as cousas. Assim é que, por telegrama, sabe-se aqui haver
o governador de um Estado presidido à extração da loteria; depois, supus que o
ato fora praticado para o fim de inspirar confiança aos compradores de
bilhetes.
- A segunda hipótese é a verdadeira, acudiu o amigo
que me lia os jornais. Não vê como as agências sérias são obrigadas a mandar
anunciar que, se as loterias não correrem no dia marcado, pagarão os bilhetes
pelo dobro?
- É verdade, tenho visto.
- Pois é isto. Ninguém confia em ninguém, e é o nosso
mal. Se há quem desconfie de mim!
- Não me diga isso!
- Não lhe digo outra cousa. Desconfiam que não ponho o
seio integral aos meus papéis: é verdade ( e não sou único ); mas, além de que
revalido sempre o selo quando é necessário levar os papéis a juízo, a quem
prejudico eu, tirando ao Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos
modernos, é de todos nós. Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no
outro. Luís XIV dizia: "O Estado sou eu! "Cada um de nós é um tronco
miúdo de Luís XIV, com a diferença de que nós pagamos os impostos, e Luís XIV
recebia-os... Pois desconfiam de mim! São capazes de desconfiar do diabo. Creio
que começo a escrever no ar e...
Esta semana furtaram a um senhor que ia pela rua mil
debêntures; ele providenciou de modo que pôde salvá-los. Confesso que não
acreditei na notícia, a princípio; mas o respeito em que fui educado para com a
letra redonda fez-me acabar de crer que se não fosse verdade não seria
impresso. Não creio em verdades manuscritas. Os próprios versos, que só se
fazem por medida, parecem errados, quando escritos à mão. A razão por que
muitos moços enganam as moças e vice-versa é escreverem as suas cartas, e
entregá-las de mão a mão, ou pela criada, ou pela prima ou por qualquer outro
modo, que no meu tempo, era ainda inédito. Quem não engana é o namorado da
folha pública; "Querida X, não foste hoje ao lugar do costume; esperei até
às três horas. Responde ao teu Z." E a namorada "Querido Z. Não fui
ontem por motivos que te direi à vista. Sábado, com certeza, à hora costumada;
não faltes. Tua X". Isto é sério, claro, exato, cordial.
A razão que me fez duvidar a princípio foi a noção que
me ficou dos negócios de debêntures. Quando este nome começou a andar de boca
em boca, até fazer-se um coro universal, veio ter comigo um chaparreiro aqui da
vizinhança e confessou que, não sabendo ler, queria que lhe dissesse se aqueles
papéis valiam alguma coisa. Eu, verdadeiro eco da opinião nacional, respondi
que não havia nada melhor, ele pegou nas economias e comprou uma centena de
delas. Cresceu ainda o preço e ele quis vendê-las; mas eu acudi a tempo de
suspender esse desastre. Vender o quê? Deixasse estar os papéis que o preço ia
subir por aí além. O homem confiou e esperou. Daí a tempo ouvi um rumor; eram
as debêntures que caíam, caíam, caíam... Ele veio procurar-me, debulhado em
lágrimas; ainda o fortaleci com uma ou duas parábolas, até que os dias
correram, e o desgraçado ficou com os papéis na mão.
Consolou-se um pouco quando eu lhe disse que metade da
população não tinha outra atitude.
Pouco tempo depois (vejam o que é o amor a estas
cousas!) veio ter comigo e proferiu estas palavras:
- Eu já agora perdi quase tudo o que tinha com as tais
debêntures, mas ficou-me sempre um cobrinho no fundo do baú, e como agora ouço
falar muito em habeas corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se esses títulos
são bons, e se estão caros ou baratos.
- Não são títulos.
- Mas o nome também é estrangeiro.
- Sim, mas nem por ser estrangeiro, é título; aquele
doutor que ali mora defronte é estrangeiro e não é título.
-Isso é verdade. Então parece-lhe que os habeas corpus
não são papéis?
- Papéis são; mas são outros papéis.
A ideia de debênture ficou sendo para mim a mesma
cousa que nada, de modo que não compreendia que um senhor andasse com mil
debêntures na algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca do
ladrão. Acreditei por estar impresso. Depois mostraram--me a lista das cotações.
Vi que não se vendem tantas como outrora, nem pelo preço antigo, mas há algum
negociozinho, pequeno, sobre alguns lotes.
Quem sabe o que elas serão ainda algum dia? Tudo tem
altos e baixos. O certo é que mudei de opinião. No dia seguinte, depois do almoço,
tirei da gaveta algumas centenas de mil-réis, e caminhei para a Bolsa,
encomendando-me (é inútil dizê-lo ) ao Deus Abraão, Isaac e Jacó.Comprei um
lote, a preço baixo, e particularmente prometi uma debênture de cera a S.
Lucas, se me fizer ganhar um cobrinho grosso. Sei que é imitar aquele homem
que, há dias, deu uma chave de cera a S. Pedro, por lhe haver deparado casa em
que morasse; mas eu tenho outra razão. Na semana passada falei de uns casais de
pombas, que vivem na igreja da Cruz dos Militares, aos pés de S. João e S.
Lucas. Uma delas, vendo-me passar, quando voltava da Bolsa, desferiu o vôo, e
veio pousar-me no ombro; mostrou-se meio agastada com a publicação, mas acabou
dizendo que naquela rua, tão perto dos bancos e da praça, tinham elas uma grande
vantagem sobre todos os mortais. Quaisquer que sejam os negócios, - arrulhou-me
ao ouvido, - o câmbio para nós está sempre a 27. Não peço outra cousa ao
apóstolo; câmbio a 27 para mim como para elas, e terá a debênture de cera, com
inscrições e alegorias. Veja que nem lhe peço a cura da tosse e do coriza que
me afligem, desde algum tempo. O meu talentoso amigo Dr. Pedro Américo disse
outro dia na Câmara dos Deputados, propondo a criação de um teatro normal, que,
por um milagre de higiene, todas as moléstias desaparecessem, "não haveria
faculdade, nem artifícios de retórica capazes de convencer a ninguém das
belezas da patologia nem da utilidade da terapêutica". Ah! meu caro amigo!
Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz livre e um peito desabafado.
Creio na utilidade da terapêutica; mas que deliciosa cousa é não saber que ela
existe, duvidar dela e até negá-la! Felizes os que podem respirar!
bem-aventurados os que não tossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo
para tossi; e, continuo a escrever de boca aberta para respirar. E falam-me em
belezas da patologia... Francamente eu prefiro as belezas da Batalha de Avaí.
A rigor, devia acabar aqui; mas a notícia que acaba de
chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas, três ou quatro. Promulgou-se a
Constituição, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente do Estado.
Com exceção do Pará e Rio Grande do Sul, creio que não falta nenhum. Sono tutti
fatti marchesi.
Eu, se fosse presidente da República, promovia a
reforma da Constituição, para o único fim de chamar-me governador. Ficava assim
um governador cercado de presidentes, ao contrário dos Estados Unidos da
América, e fazendo lembrar o imperador Napoleão, vestido com a modesta farda
lendária, no meio dos seus marechais em grande uniforme.
Outra notícia que me obriga a não acabar aqui, é a de
estarem os rapazes do comércio de S. Paulo fazendo reuniões para se alistarem
na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de
tal serviço. Questão de meio; o meio é tudo. Não há exaltação para uns nem
depressão para outros. Duas cousas contrárias podem ser verdadeiras e até
legítimas conforme a zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarrão, os nossos
irmãos do Rio Grande do Sul acham que não há bebida mais saborosa neste mundo.
Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra cousa? Não; segue-se o meio; o
meio é tudo.
SEMANA e finanças são hoje a mesma cousa. E tão graves
são os negócios financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar
o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o
leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos
magnos; ele não dispensa aqui os assuntos mínimos, se os houve, e, se os não
houve, a reflexões leves e curtas. Força é reproduzir o famoso Marche! Marche!
de Bossuet... Perdão, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca.
E por que não sei eu finanças? Por que, ao lado dos
dotes nativos com que aprouve ao céu distinguir-me entre os homens, não possuo
a ciência financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e
mal distingo dez mil-réis de dez tostões? Nos bonds é que me sinto vexado. Há
sempre três e quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das cousas
financeiras e econômicas, e das causas das cousas, com tal ardor e autoridade,
que me oprimem. É então que eu leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas, -
vício dispensável; mas antes vicioso que ignorante.
Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às
tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a
indústria, a pintura e a ortografia. E não é novo este meu costume, em casos de
aperto. Foi assim que um dia, há anos, não me lembra em que loja, nem em que
rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente
obscuro, este título era uma nova edição da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e
não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino
do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode
admitir-se um destino ao planeta em que pisamos... Talvez a ciência econômica e
financeira seja isto mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bonds.
Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz esta reflexão,
exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos.
E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem
qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o
chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que
uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de
raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul,
perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo- viram uma flor
muito bonita no alto de uma árvore,
Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no
dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um
moleque, e o Bicalho foi ter com ele.
- Vem cá, trepa àquela árvore, e tira a flor que está
em cima... Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemão, que não
entendia português. Quando Bicalho entrou na cidade, e não ouviu nem leu outra
língua senão a alemã, a rica e forte língua de Goethe e de Heine, teve uma
impressão que ele resumia assim: "Achei-me estrangeiro no meu próprio
país!". Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e espírito.
Isto, porém, não tem nada com os chinês, nem os
judeus, nem particularmente com aquela moça que acaba de impedir a canonização
de Colombo. Hão de ter lido o telegrama que dá notícia de haver sido posta de
lado a ideia de canonização do grande homem, por motivo de uns amores que ele
trouxera com uma judia. Todos os escrúpulos são respeitáveis, e seria
impertinência querer dar lições ao Santo Padre em matéria de economia católica.
Colombo perdeu a canonização sem perder a glória, e a própria Igreja o sublima
por ela. Mas...
Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao
caso, o pensamento escapa-se, rompe os séculos e vai farejar essa judia que
tamanha influência devia ter na posteridade. E compõe a figura pelas que
conhece. Há-as de olhos negros e de olhos garços, umas que deslizam sem pisar
no chão, outras que atam os braços ao descuidado com a simples corda das
pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e as que matam. O pensamento
evoca a sombra da filha de Moisés, e pergunta como é que aquele grande e pio
genovês, que abriu à fé cristã um novo mundo, e não se abalançou ao
descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia ter consigo esse pecado mofento,
esse fedor judaico, - deleitoso, se querem, mas de entontecer a perder uma alma
por todos os séculos dos séculos. Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que
eram incompatíveis, fizeram um acordo para dissimular e pecar. Combinaram em
ler o Cântico dos Cânticos; mas Colombo daria ao texto bíblico o sentido
espiritual e teológico, e ela o sentido natural e molemente hebraico.
- O meu amado é para mim como um cacho de Chipre, que
se acha nas vinhas de Engadi.
- Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no
que está escondido dentro. Os teus Dois peitos são como Dois filhinhos gêmeos
da cabra montesa, que se apascentam entre as açucenas.
- Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas
mãos destilavam mirra.
- Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu
falar é doce.
- O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso.
Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos
semelhantes, em consciência, às vezes! Há uma grande palavra que diz que todas
as cousas são puras para quem é puro. Tornemos à gente cristã, às eleições
municipais, à senatorial, aos italianos de S. Paulo que deixam a terra, a D.
Carlos de Bourbon que aderiu à República Francesa, em obediência ao Papa, aos
bonds elétricos, à subida ao poder do old great man, a mil outras cousas que
apenas indico, tão aborrecido estou. Pena da minha alma, vai afrouxando os
bicos; diminui esse ardor, não busques adjetivos, nem imagens, não busques
nada, a não ser o repouso, o descanso físico e mental, o esquecimento, a
contemplação que prende com o cochilo que expira no sono...
TANNHÄUSER e bondes elétricos. Temos finalmente na
terra essas grandes novidades. O empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de
dar a famosa ópera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito
transportar-nos mais depressa. Cairão de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende
das circunstâncias. Já a esta hora algumas das pessoas que me lêem, sabem o que
é a grande ópera. Nem todas; há sempre um grande número de ouvintes que farão
ao grande maestro a honra de não perceber tudo desde logo, e entendê-lo melhor
à segunda, e de vez à terceira ou quarta execução. Mas não faltam ouvidos
acostumados ao seu oficio, que distinguirão na mesma noite o belo do sublime, e
o sublime do fraco.
Eu, se lá fosse, não ia em jejum. Pegava de algumas
opiniões sólidas e francesas e metia-as na cabeça com facilidade; só não me
valeria das muletas do bom Larousse, se ele não as tivesse em casa; mas havia
de tê-las. Cai aqui, cai acolá, faria uma opinião prévia, e à noite iria ouvir
a grande partitura do mestre.
Um amigo:
- Afinal temos o Tannhäuser; eu conheço um trecho, que
ouvi há tempos...
- Eu não conheço nada, e quer que lhe diga? É melhor
assim. Faço de conta que assisto à primeira representação que se deu no mundo.
Tudo novo.
- O que eu ouvi, é soberbo.
- Creio; mas não me diga nada, deixe-me virgem de
opiniões, Quero julgar por mim, mal ou bem...
E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso,
irrequieto, sem atinar com o binóculo para a revista dos camarotes. Talvez nem
levasse binóculo; diria que as grandes solenidades artísticas devem ser
estremes de quaisquer outras preocupações humanas. A arte é uma religião. O
gênio é o sumo sacerdote. Em vão, Amália, posta no camarote, em frente à mãe,
lançaria os olhos para mim, assustada com a minha indiferença e perguntando a
si mesma que me teria feito. Eu, teso, espero que as portas do templo se abram,
que as harmonias do céu me chamem aos pés do divino mestre; não sei de Amália
não quero saber dos seus olhos de turquesa.
Era assim que eu ouviria o Tannhäuser. Nos intervalos,
visita aos camarotes e crítica. Aquela entrada dos fagotes, lembra-se?
Admirável! Os coros, o duo, os violinos, oh! o trabalho dos violinos que cousa
adorável, com aquele motivo obrigado: lá, lá, lá tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá...
Há neste ato inspirações que são, com certeza, as maiores do século. De resto,
os próprios franceses emendaram a mão dando a Wagner o preito que lhe cabe,
como um criador genial... As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Amália
sente-se honrada com a indiferença de há pouco, vendo que ela e a arte são o
meu culto único. Ao fundo, o pai e um homem de suíças falam da fusão do Banco
do Brasil com o da República. O irmão, encostado à divisão do camarote,
conversa com uma dama vizinha, casada de fresco, ombros magníficos. Que tenho
eu com ombros, nem com bancos? Lá, lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá ...
Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para
continuar a minha crítica. Dois homens, sempre ao fundo, conversam baixo, um
recitando os versos de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outro esperando
a aplicação. A aplicação é a Câmara Municipal de S. Paulo, que acaba de tomar
posse solene, com assistência do presidente e dos secretários do Estado...
Interrupção do segundo: "Pode comparar-se o caso dos Dois secretários à
conciliação que o poeta fez das duas rosas?" Explicação do primeiro:
"Não;
refiro-me à inauguração que a Câmara fez dos retratos
de Deodoro e Benjamim Constante. Uniu os dois rivais póstumos em uma só
comemoração, e a história ou a lenda que faça o resto".
Não espero pelo resto; falo às senhoras no duo e na
entrada dos fagotes. Bela entrada de fagotes. Os coros admiráveis, e o trabalho
dos violinos simplesmente esplêndido. Hão de ter notado que a música reproduz
perfeitamente a lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma só
inspiração genial. Aquele motivo obrigado dos violinos é a mais bela inspiração
que tenho ouvido: lá, lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra...
Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo.
Pormenores técnicos. Ao fundo, dois homens, que falam de um congresso
psicológico em Chicago, dizem que os nossos espíritas vão ter ocasião de
aparecer, porque o convite estende-se a eles. Tratar-se-á não só dos fenômenos
psicofísicos, como sejam as pancadas, as oscilações em mesas, a escrita, e
outras manifestações espíritas, como ainda da questão da vida futura. Um dos
interlocutores declara que os únicos espíritas que conhece, são Dois, moram ao
pé dele e já não pertencem a este mundo; estão nos intermúndios de Epicuro.
Andam cá os corpos, por efeito do movimento que traziam quando habitados pelos
espíritos, como aqueles astros cuja luz ainda vemos hoje, estando apagados há
muitos séculos...
A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao
ato, e faço a mesma peregrinação no intervalo; mudo só as citações, mas a
crítica é sempre verdadeira. Ouço os mesmos homens, ao fundo, conversando sobre
cousas alheias ao Wagner. Eu, entregue à crítica musical, não dou pelas rusgas
da intendência, não atendo às candidaturas municipais agarradas aos eleitores,
não dou por nada que não seja a grande ópera. E sento-me, recordo prontamente o
que li sobre o ato, oh! um ato esplêndido! Fim do espetáculo. Corro a
encontrar-me com a família de Amália, para acompanhá-la à carruagem. Dou o
braço à mãe e crítico o último ato, depois resumo a crítica dos outros atos.
Elas e o pai entram na carruagem; despedidas à portinhola; aperto a bela mão da
minha querida Amália... Pormenores técnicos.
Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos bancários,
debates e debates financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de
outros, Dois mil comerciantes marchando para o palácio Itamarati, a pé, debaixo
d'água, processo Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo
isso grave, soturno, trágico ou simplesmente enfadonho. Uma só nota idílica
entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha; foi a
morte de Renan. A de Tennyson, que também foi esta semana, não trouxe igual
caráter, apesar do poeta que era, da idade que tinha. Uma gravura inglesa
recente dá, em Dois grupos, os anos de 1842 e 1892, meio século de separação.
No primeiro era Southey que fazia o papel de Tennyson, e o poeta laureado de
1842, como o de 1892. acompanhava os demais personagens oficiais do ano
respectivo, o chefe dos tories, o chefe dos whigs, o arcebispo de Cantuária. A
rainha é que é a mesma. Tudo instituições. Tennyson era uma instituição, e há
belas instituições, Os seus oitenta e três anos não lhe tinham arrancado as
plumas das asas de poeta; ainda agora anunciava-me um novo escrito seu. Mas era
uma glória britânica; não teve a influência nem a universalidade do grande
francês.
Renan, como Tennyson, despegou-se da vida no espaço de
Dois telegramas, algumas horas apenas. Não penso em agonias de Renan.
Afigura-se-me que ele voltou o corpo de um lado para outro e fechou os olhos.
Mas agonia que fosse, e por mais longa que haja sido, ter-lhe-á custado pouco
ou nada o último adeus daquele grande pensador, tão plácido para com as
fatalidades, tão prestes a absolver as cousas irremissíveis. Comparando este
glorioso desfecho com aquele dia em que Renan subiu à cadeira de professor e
soltou as famosas palavras: "Alors, un homme a paru... ", podemos
crer que os homens, como os livros, têm os seus destinos. Recordo-me do efeito,
que foi universal; a audácia produziu escândalo, e a punição foi pronta. O
professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as
instituições políticas tombaram, outras vieram, e o professor morre professor,
após uma obra vasta e luminosa, universalmente aclamado como sábio e como
artista. Os seus próprios adversários não lhe negam admiração, e porventura lhe
farão justiça. J'ai tout critiqué (diz ele em um dos seus prefácios) et quoi
qu'on en dise, y
j'ai tout maintenu. O século que está a chegar,
criticará ainda uma vez a crítica, e dirá que o ilustre exegeta definiu bem a
sua ação.
A morte não pode ter aparecido a esse magnífico
espírito com aqueles dentes sem boca e aqueles furos sem olhos, com que os
demais pecadores a vêem, mas com as feições da vida, coroada de flores simples
e graves. Para Renan a vida nem tinha o defeito da morte. Sabe-se que era
desejo seu, se houvesse de tornar à terra, ter a mesma existência anterior, sem
alteração de trâmites nem de dias. Não se pode confessar mais vivamente a
bem-aventurança terrestre. Um poeta daquele país, o velho Ronsard, para igual
hipótese, preferia vir tornado em pássaro, a ser duas vezes homem. Eu (fale-mos
um pouco de mim), se não fossem as armadilhas próprias do homem e o uso de
matar o tempo matando pássaros, também quisera regressar pássaro.
Não voltou o pássaro Ronsard, como não voltará o homem
Renan. Este irá para onde estão os grandes do século, que começou em França
como o autor de René, e acaba com o da Vida de Jesus, páginas tão
características de suas respectivas datas. Não faço aqui análises que me não
competem, nem cito obras, nem componho biografia. O jornalismo desta capital
mostrou já o que valia o autor de tantos e tão adoráveis livros, falou daquele
estilo incomparável, puro e sólido, feito de cristal e melodia. Nada disso me
cabe. A rigor, nem me cabe cuidar da morte. Cuidei desta por ser a única nota
idílica, entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha.
Em verdade, que posso eu dizer das cousas pesadas e
duras de uma semana, remendada de códigos e praxistas, a ponto de algarismo e
citação? Prisões, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com eles? Não
dirijo companhia alguma, nem anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me
disponho a fundá-los, e, de todas as cousas deste mundo e do outro, a que menos
entendo, é o câmbio. Não é que lhe negue o direito de subir; mas tantas
lástimas ouvi pela queda, quantas ouço agora pela ascensão, - não sei se às mesmas
pessoas, mas com estes mesmos ouvidos. Finanças das finanças, são tudo
finanças. Para onde quer que me volte, dou com a incandescente questão do dia.
Conheço já o vocabulário, mas não sei ainda todas as ideias a que as palavras
correspondem, e, quanto aos fenômenos, basta dizer que cada um deles tem três
explicações verdadeiras e uma falsa. Melhor é crer tudo. A dúvida não é aqui
sabedoria, porque traz debate ríspido, debate traz balança de comércio, por um
lado, e excesso de emissões por outro, e, afinal, um fastio que nunca mais
acaba.
NÃO TENDO assistido a inauguração dos bonds elétricos,
deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as
impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana.
Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos
elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar. Para não
mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do
cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com
um grande ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas
físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que
inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não é meu ofício
censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar
espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena
propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um
homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do bond,
deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga. Mas,
como íamos em sentido contrário, não tardou que nos perdêssemos de vista,
dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do
Catete. Nem por isso o perdi de memória. A gente do meu bond ia saindo aqui e
ali, outra gente entrava adiante e eu pensava no bond elétrico. Assim fomos
seguindo; até que, perto do fim da linha e já noite, éramos só três pessoas, o
condutor, o cocheiro e eu. Os Dois cochilavam, eu pensava.
De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram
os burros que conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles
mesmos. Como eu conheço um pouco a língua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o
famoso Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei que cavalo não é
burro; mas reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos, decerto; é
talvez o transita daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei inclinado e
escutei:
- Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da
esquerda.
O da esquerda:
- Desde que a tração elétrica se estenda a todos os
bonds, estamos livres, parece claro.
- Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é
grande. Tu não conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos
burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos
homens nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de
Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia
seguinte.
- Que tem isso com a liberdade?
- Vejo, redargüiu melancolicamente o burro da direita,
vejo que há muito de homem nessa cabeça.
- Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o
passo.
O cocheiro, entre Dois cochilas, juntou as rédeas e
golpeou a parelha.
- Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita.
Fica sabendo que, quando os bonds entraram nesta cidade, vieram com a regra de
se não empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu
burro andar sem chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de
alegria e abençoaram a ideia os trilhos, sobre os quais os carros deslizariam
naturalmente. Não conheciam o homem.
-Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas
pontas das rédeas. Sei também que, em certos casos, usa um galho de árvore ou
uma vara de marmeleiro.
- Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro
não tem força; mas, levando pancada, puxa.
Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente
Shannon? Mandou isto: "Engorde os burros dê-lhes de comer, muito capim,
muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao serviço;
oportunamente mudaremos de política, all right!"
- Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e
quando menos trabalho, quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa
liberdade, depois do bond elétrico?
- O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
- De que modo?
- Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por
arames, não somos já precisos, vendem-nos.
Passamos naturalmente às carroças.
- Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda.
Nenhuma aposentadoria? nenhum prêmio?
nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a
justiça deste mundo?
- Passaremos às carroças - continuou o outro
pacificamente -onde a nossa vida será um pouco melhor;
não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro
sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer cousa
que nos torne incapaz restituir-nos-á a liberdade...
- Enfim!
- Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo,
arrancando alguma erva que aí deixem crescer para recreio da vista. Mas que
valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade
ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana, -
esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três, a
vizinhança começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No
quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede
uma reclamação. No quinto dia sai a reclamação impressa. No sexto dia, aparece
um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma carroça, puxada
por outro burro, e leva o cadáver.
Seguiu-se uma pausa.
- Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não
conheces a língua da esperança.
- Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das
espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela
fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda
sobre Dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da
astronomia. Nós nunca seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as
tentativas humanas a este respeito são perfeitas quimeras.
Cada século...
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro
encurtou as rédeas, e travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci
e fui mirar os Dois interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos.
Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para
levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre
os Dois burros:
- Houyhnhnnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção,
levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:
- Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou
para mim, que lhe não espantasse os animais.
Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que
espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: - Onde
está a justiça deste mundo?
TODAS AS COUSAS têm a sua filosofia. Se os Dois
anciãos que o bond elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já
feito por si mesmos o que lhes fez o bond, não teriam entestado com o progresso
que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é
verdade.
Quando um grande poeta deste século perdeu a filha,
confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar
sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres
veículos?
Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos
desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei.
É justo; mas essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos
e as famílias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os
desastres trazem ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de
responsabilidades. Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da
segunda, e vamos morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das
orações.
Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas
leis, jamais a minha viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia.
Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente
de um bond, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de
levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina
era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o
cálculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate próximo.
Próximo pode ser longe, mas muito mais longe é a eternidade.
Em todo caso, não vamos concluir contra a
eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que
há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bonds
tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de
tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o
carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar
ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as cousas,
espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para
acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de
pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus
semelhantes.
Convenho que, durante uns quatro meses, os bonds
elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos
vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma
versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com
alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no
Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este
dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu
ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas
murchas, a todas as cousas decaídas. Ah! se eu for a contar memórias da
infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na
primeira estação, 1864, famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado);
respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre
cidade, que só arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou
a...
Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law.
Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade, depois, viraste embromador
e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de
século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento,
onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e
vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais
alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem, estudado ao gás do
entendimento humano, foi o princípio da falência universal.
Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar
as minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora
apertar as letras e as linhas. Semana quer dizer finanças. Finanças implicam
financeiros. Financeiros não vão sem projetos, e eu não sei formular projetos.
Tenho ideias boas, e até bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito
2%, muito lastro, muito resgate, toda a técnica da ciência; mas falta-me o
talento de compor, de dividir as ideias por artigos, de subdividir os artigos
em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas
por que não farei um projeto financeiro ou bancário, lançando-lhe no fim as
palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar tudo, é certo, mas
não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar os parceiros.
Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não
foi só de finanças, mas também de outras cousas, como a crise de transportes, a
carne, discursos extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de
ferro que nos põe às portas de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no
seio do parlamento. Vi entrar esta célebre senhora por aquela casa, e, depois
de alguns minutos, via-se sair. Corri à porta e detive-a: - "Ilustre
Pompéia, que vieste fazer a esta casa? "-"Obedecer ainda uma vez à
citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma
bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos e
desconhecidos."
TEMPOS DO PAPA! tempos dos cardeais! Não falo do papa
católico, nem dos cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos
nossos cardeais. F. Otaviano, então jornalista, foi quem achou aquelas
designações para o Senador Eusébio e o estado-maior do Partido Conservador. Era
eu pouco mais que menino...
Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou
pessoas antigas, estava sempre na infância, se é que seria nascido. Não me
façam mais idoso do que sou. E depois, o que é idade? Há dias, um distinto
nonagenário apertava-me a mão com força e contava-me as vivas impressões que
lhe deixara a obra de Bryce acerca dos Estados Unidos; acabava de lê-la, - Dois
grossos volumes, como sabem. E despediu-se de mim, e lá se foi a andar seguro e
lépido. Realmente, os anos nada valem por si mesmos. A questão é saber
agüentá-los, escová-los bem, todos os dias, para tirar a poeira da estrada,
trazê-los lavados com água de higiene e sabão de filosofia.
Repito, era pouco mais que um menino, mas já admirava
aquele escritor fino e sóbrio, destro no seu ofício. A atual mocidade não
conheceu Otaviano; viu apenas um homem avelhantado e enfraquecido pela doença,
com um resto pálido daquele riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem
resto, uma sombra de resto, talvez uma simples reminiscência deixada no cérebro
das pessoas que o conheceram entre trinta e quarenta anos.
Um dia, um domingo, havia eleições, como hoje. Papa e
cardeais tinham o poder nas mãos, e, sendo o regímen de Dois graus, entraram
eles próprios nas chapas de eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os
liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os
desbarataram. O pontífice, com todos os membros do consistório, mal puderam
sair suplentes. E Otaviano, fértil em metáforas, chamou-lhes esquifes. Mais um
esquife, dizia ele no Correio Mercantil, durante a apuração dos votos. Luta de
energias, luta de motejos. Rocha, jornalista conservador, ria causticamente do lencinho
branco de Teófilo Otôni, o célebre lenço com que este conduzia a multidão, de
paróquia em paróquia, aclamando e aclamado. A multidão seguia, alegre,
tumultuosa, levada por sedução, por um instinto vago, por efeito da palavra, -
um pouquinho por ofício. Não me lembra bem se houve alguma urna quebrada; é
possível que sim. Hoje mesmo as urnas não são de bronze. Não vou ao ponto de
afirmar que não as houve pejadas. Que é a política senão obra de homens?
Crescei e multiplicai-vos.
Hoje, domingo não há a mesma multidão, o eleitorado é
restrito; mas podia e devia haver mais calor. Trata-se não menos de que eleger
o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que é ainda e será a capital
verdadeira e histórica do Brasil. Não é eleição que apaixone, concordo; não há
paixões puramente políticas. Nem paixões são cousas que se encomendem, como
partidos não são cousas que se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade)
há sempre a paixão do bem e do interesse público. Eia, animai-vos um pouco, se
não é tarde; mas, se é tarde, guardai-vos para a primeira eleição que vier.
Contanto que não quebreis urnas, nem as fecundeis - a conselho meu, -
agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um tanto mais. Por hoje, leitor
amigo, vai tranqüilamente dar o teu voto. Vai anda, vai escolher os intendentes
que devem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade. Eu,
se não estiver meio adoentado, como estou, não deixarei de levar a minha
cédula. Não leias mais ainda, porque é bem possível que eu nada mais escreva,
ou pouco. Vai votar; o teu futuro está nos joelhos dos deuses, e assim também o
da tua cidade; mas por que não os ajudarás com as mãos?
Outra cousa que está nos joelhos dos deuses é saber se
a terceira prorrogação que o Congresso Nacional resolveu decretar, é a última e
definitiva. Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso é um
passo, e passo curto; mas eu prefiro ir à Constituinte, que é o mesmo Congresso
avant la lettre. Por que diabo fixou a Constituinte em quatro meses a sessão
anual legislativa, isto é, o mesmo prazo da Constituição de 1824? Devia atender
que outro é o tempo e outro o regímen. Felizmente, li esta semana que vai haver
uma revisão de Constituição no ano próximo. Boa ocasião para emendar esse
ponto, e ainda outros, se os há, e creio que há. Nem faltará quem proponha o
governo parlamentar. Dado que esta última ideia passe, é preciso ter já de
encomenda uma casaca, um par de colarinhos, uma gravata branca, uma pequena
mala com alocuções brilhantes e anódinas, para as grandes festas oficiais, - e
um Carnot, mas um Carnot autêntico, que vista e profira todas aquelas cousas
sem significação política. Salvo se arranjarmos um meio de combinar os
presidentes e os ministros responsáveis, um Congresso que mande um ministério
seu ao presidente, para cumprir e não cumprir as ordens opostas de ambos.
Enfim, esperemos. O futuro está nos joelhos dos deuses. Mas não me faças ir
adiante, leitor amado. Adeus vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com
o direito de gritar contra ela. Adeus.
VOU CONTAR às pressas o que me acaba de acontecer.
Domingo passado, enquanto esperava a chamada dos eleitores, saí à Praça do
Duque de Caxias (vulgarmente Largo do Machado) e comecei a passear defronte da
igreja matriz da Glória. Quem não conhece esse templo grego, imitado da
Madalena, com uma torre no meio, imitada de cousa nenhuma? A impressão que se
tem diante daquele singular conúbio, não é cristã nem pagã; faz lembrar, como
na comédia, "o casamento do Grão - Turco com a república [de]
Veneza". Quando ali passo, desvio sempre os olhos e o pensamento. Tenho
medo de pecar duas vezes, contra a torre e contra o templo, mandando-os ambos
ao diabo, com escândalo da minha consciência e dos ouvidos das outras pessoas.
Daquela vez, porém, não foi assim. Olhei, parei e fiquei a olhar. Entrei a
cogitar se aquêle ajuntamento híbrido não será antes um símbolo. A irmandade
que mandou fazer a torre, pode ter escrito, sem o saber, um comentário. Supôs
batizar uma sinagoga (devia crer que era uma sinagoga), e fez mais, compôs uma
obra representativa do meio e do século. Não há ali só um sino para repicar aos
domingos e dias santos, com afronta dos pagãos de Atenas e dos cristãos de
Paris, - há talvez uma página de piscologia social e política.
Sempre que entrevejo uma ideia, uma significação
oculta em qualquer objeto, fico a tal ponto absorto, que sou capaz de passar
uma semana sem comer. Aqui, há anos, estando sentado à porta de casa, a meditar
no célebre axioma do Dr. Pangloss - que os narizes fizeram - se para os óculos,
e que é por isso que usamos óculos, sucedeu cair - me a vista no chão,
exatamente no lugar em que estava uma ferradura velha. Que haveria naquele
sapato de cavalo, tão comido de dias e de ferrugem?
Pensei muito, - não posso dizer se uma ou duas horas,
- até que um clarão súbito espancou as trevas do meu espírito. A figura é
velha, mas não tenho tempo de procurar outra. Cresci diante de Pangloss. O
grande filósofo, achando a razão dos narizes, não advertiu que, ainda sem eles,
podíamos trazer óculos. Bastava um pequeno aparelho de barbantes, que fôsse por
cima das orelhas até à nuca. Outro era o caso da ferradura. Só o duro casco do
animal podia destinar-se à ferradura, uma vez que não há meio de fazê-la aderir
sem pregos. Aqui a finalidade era evidente. De conclusão em conclusão, cheguei
às ave-marias, tinham-me já chamado para jantar três vêzes; comi mal, digeri
mal, e acordei doente. Mas tinha descoberto alguma cousa.
Fica assim explicada a minha longa meditação diante da
torre e do templo, e o mais que me aconteceu. Cruzei os braços nas costas, com
a bengala entre as mãos, apoiando-me nela. Algumas pessoas que iam passando, ao
darem comigo, paravam também e buscavam descobrir por si o que é que chamava
assim a atenção de um homem tão grave. Foram-se deixando estar; outras vieram
também e foram ficando, até formarem um grupo numeroso, que observava
tenazmente alguma cousa digníssima da atenção dos homens. É assim que eu admiro
muita música; basta ver o Artur Napoleão parado. Nem por isso interrompi as
reflexões que ia fazendo. Sim, aquela junção da torre e do templo não era
sòmente uma opinião da irmandade.
Não tenho aqui papel para notar todos os fenômenos
históricos, políticos e sociais que me pareceram explicar o edifício do Largo
do Machado; mas, ainda que o tivesse de sobra, calar-me-ia pela incerteza em
que ainda estou acêrca das minhas conclusões. Dois exemplos estremes bastam
para justificação da dúvida. A nossa independência política, que os poetas e
oradores, até 1864, chamavam grito de Ipiranga, não se pode negar que era um
belo templo grego. O tratado que veio depois, com algumas de suas cláusulas, e
o seu imperador honorário, além do efetivo, poderá ser comparado à torre da
matriz da Glória? Não ouso afirmá-lo. O mesmo digo do quiosque. O quiosque,
apesar da origem chinesa, pode ser comparado a um; templo grego, copiado de
Paris; mas o charuto, o bom café barato e o bilhete de loteria que ali se
vendem, serão acaso equivalentes daquela torre? Não sei; nem também sei se os
foguetes que ali estou-ram, quando anda a roda e eles tiram prêmios,
representam os repi-ques de sinos em dias de festa. Há hesitações grandes e
nobres, minha pobre alma as conhece.
Pelo que respeita especialmente ao caso da matriz da
Glória, concordo que ele exprima a reação do sentimento local contra uma
inovação apenas elegante. Nós mamamos ao som dos sinos e somos desmamados com
eles; uma igreja sem sino é, por assim dizer, uma bôca sem fala. Daí nasceu a
torre da Glória. A questão não é achar esta explicação, é completá-la. Não me
tragam aqui o mestre Spencer com os seus aforismos sociológicos. Quando ele diz
que "o estado social é o resultado de tôdas as ambições, de todos os
interesses pessoais, de todos os mêdos, venerações, indignações, simpatias,
etc. tanto dos antepassados, como dos cidadãos existentes" - não serei eu
que o conteste. O mesmo farei se ele me disser, a propósito do templo grego:
Posto que as ideias adiantadas, uma vez estabelecidas,
atuem sôbre a socie-dade e ajudem o seu progresso ulterior, ainda assim o
estabelecimento de tais ideias depende da aptidão da sociedade para recebê-las.
Na prática, é o caráter popular e o estado social que determinam as ideias que
hão de ter curso- não são as Ideias correntes que determinam o estado social e
o caráter...
Sim, concordo que o templo grego sejam as ideias
novas, e o cará-ter e o estado social a torre, que há de sobrepor-se por muito
tempo as belas colunas antigas, ainda que a gente se oponha com tôda a fôrça ao
voto das irmandades
Neste ponto das minhas reflexões, o sino da torre
bateu uma pan-cada, logo depois outra... Estremeço, acordo, eram ave-marias.
Sem saber o que fazia. corro à igreja para votar - Para quê? diz-me o
sacristão.
- Para votar.
- Mas eleição foi domingo passado
- Que dia é hoje?
- Hoje é sábado.
- Deus de misericórdia
Senti-me fraco, fui comer alguma cousa. Sete dias para
achar a explicação da torre da Glória, uma semana perdida. Escrevo este artigo
a trouxe-mouxe, em cima dos joelhos, servindo-me de mesa um exemplar da Bíblia,
outro de Camões, outro de Gonçalves Dias, outro da Constituição de 1824 e outro
da Constituição de 1889, - Dois templos gregos, com a torre do meu nariz em
cima.
UM DOS MEUS velhos hábitos é ir, no tempo das câmaras,
passar as horas nas galerias. Quando não há câmaras, vou à municipal ou
intendência-, ao júri, onde quer que possa fartar o meu amor dos negócios
públicos, e mais particularmente da eloqüência humana. Nos intervalos, faço
algumas cobranças,-ou qualquer serviço leve que possa ser interrompido sem
dano, ou continuado por outro. Já se me têm oferecido boas empregos, largamente
retribuídos, com a condição de não freqüentar as galerias das câmaras. Tenho-os
recusado todos; nem por isso ando mais magro.
Nas galerias das câmaras ocupo sempre um lugar na
primeira fila dos bancos, leva-se mais tempo a sair, mas como eu só saio no
fim, e às vêzes depois do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A vantagem é
enorme, tem-se um parapeito de pau, onde um homem pode encostar os braços e
ficar a gosto. O chapéu atrapalhou-me muito no primeiro ano ( 1857), mas desde
que me furtaram um, meio novo, resolvi a questão definitivamente. Entro ponho o
chapéu no banco e sento-me em cima. Venham cá buscá-lo! Não me perguntes a que
vem esta página dos meus hábitos. É ler, se queres. Talvez haja uma conclusão.
Tudo tem conclusão neste mundo. Eu vi concluir discursos, que ainda agora
suponho estar ouvindo. Cada cousa tem uma hora própria, leitor feito às
pressas. Na gale-ria, é meu costume dividir o tempo entre ouvir e dormir. Até
certo ponto, velo sempre. Daí em diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto,
cerro os olhos e passo pelo sono. Há dias em que o guarda vem bater-me no
ombro.
- Que é?
- Saia daí, já acabou.
Olho, não vejo ninguém, recompondo o chapéu e saio.
Mas estes casos não são comuns. No Senado, nunca pude fazer a divisão exata,
não porque lá falassem mal, ao contrário, falavam geralmente melhor que na
outra Câmara. Mas não havia barulho. Tudo macio. O estilo era tão apurado, que
ainda me lembro certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que
fez a lei bancária a de 1860. Creio que era então Ministro da Guerra, e dizia,
referindo-se a um senador: "Eu entendo, Sr. presidente, que o nobre
senador não entendeu o que disse o nobre Ministro da Marinha, ou fingiu que não
entendeu. O Visconde de Abaeté, que era o presidente, acudiu logo: "A
palavra fingiu acho que não é própria." E o Ferraz replicou: "Peço
perdão a V. Ex.ª, retiro a palavra."
Ora, dêem lá interesse às discussões com estes passos
de minuete! Eu, mal chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada
grossa, caluniador para cá, caluniador para lá, eis o que pode manter o
interesse de um debate. E que é a vida senão uma troca de cachações?
A República trouxe-me quatro desgostos
extraordinários; um foi logo remediado; os outros três não. O que ela mesma
remediou, foi a desastrada ideia de meter as câmaras no palácio da Boa Vista.
Muito político e muito bonito para quem anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me
a pagar Dois níqueis de passagem por dia, ou a ir a pé, era um despropósito.
Felizmente, vingou a ideia de tornar a pôr as câmaras em contato com o povo, e
descemos da Boa Vista.
Não me falem nos outros três desgostos. Suprimir as
interpelações aos ministros, com dia fixado e anunciado; acabar com a discussão
da resposta à fala do trono; eliminar as apresentações de ministérios novos ...
Oh! as minhas belas apresentações de ministérios! Era
um regalo ver a Câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças
nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente,
levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central,
aparecia o ministério com o chefe à frente, cumpri-mentos à direita e à
esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos mem-bros do gabinete anterior e
expunha as razões da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois,
narrava a história da subida, e definia o programa. Um deputado da oposição
pedia a palavra, dizia mal dos Dois ministérios, achava contradições e
obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente.
Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio.
Justiça, justiça. Há usos daquele tempo que ficaram.
Às vezes, quando os debates eram calorosos,e principalmente nas interpelações,
-eu da galeria entrava na dança, dava palmas. Não sei quando começou este uso
de dar palmas nas galerias. Deve vir de muitos anos. O presidente da Câmara
bradava sempre:
"As galerias não podem fazer manifestações!"
Mas era como se não dissesse nada. Na primeira ocasião, tornava a palmear com a
mesma força. Vieram vindo depois os bravos, os apoiados, os não-apoiados, uma
bonita agitação. Confesso que eu nem sempre sabia das razões do clamor, e não
raro me aconteceu apoiar Dois contrários. Não importa, liberdade, antes
confusa, que nenhuma.
Esse costume prevaleceu, não acompanhou os que perdi,
felizmente. Em verdade, seria lúgubre, se, além de me tirarem as interpelações
e o resto, acabassem metendo-me uma rolha na boca. Era melhor assassinar-me
logo, de uma vez. A liberdade não é surda-muda, nem paralítica. Ela vive, ela
fala, ela bate as mãos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu
na galeria não posso dar um berro, onde é que o hei de dar? Na rua, feito
maluco?
Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer
crescer o meu direito político; mas estava longe de esperar o reconhecimento
imediato, pleno e absoluto que me deu a intendência nova. Tinha ganho muito na
outra galeria; enriqueci na da intendência, onde o meu direito de gritar,
apupar e aplaudir foi bravamente consagrado. Não peço que se ponha isto por
lei, porque então, gritando, apupando ou aplaudindo, estarei cumprindo um
preceito legal, que é justamente o que eu não quero. Não que eu tenha ódio à
lei; mas não tolero opressões de espécie alguma, ainda em meu benefício.
O melhor que há no caso da intendência nova, é que ela
mesma deu o exemplo, excitando-se de tal maneira, que fez esquecer os mais
belos dias da Câmara. Em minha vida de galeria, que já não é curta, tenho assistido
a grandes distúrbios parlamentares; raro se terá aproximado das estréias da
nova representação do município. Não desmaie a nobre corporação. Berre, ainda
que seja preciso trabalhar. Pela minha parte, fiz o que pude, e estou pronto a
fazer o que puder e o que não puder. Embora não tenha a superstição do
respeito, quero que me respeitem no exercício de um jus adquirido pela von-tade
e confirmado pelo tempo. J'y suis, j'y reste, como tenho ouvido dizer nas
câmaras. Creio que é latim ou francês. Digo, por linguagem, que ainda posso ir
adiante; e finalmente que, se há por aí alguma frase menos incorreta, é
reminiscência da tribuna parlamentar ou judiciária. Não se arrasta uma vida
inteira de galeria em galeria sem trazer algumas amostras de sintaxe.
ONTEM, querendo ir pela Rua da Candelária, entre as da
Alfândega e Sabão (velho estilo), não me foi possível passar, tal era a
multidão de gente. Cuidei que havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas não
era. A massa de gente tomava a rua, de uma banda a outra, mas não se mexia; não
tinha a ondulação natural dos cachações. Procissão não era; não havia tochas
acessas nem sobrepelizes. Sujeito que mostrasse artes de macaco ou vendesse
drogas, ao ar livre, com discursos, também não. Estava neste ponto, quando vi
subir a Rua da Alfândega um digno ancião, a quem expus as minhas dúvidas.
- Não é nada disso, respondeu-me cortesmente. Não há
aqui procissão nem macaco. Briga, no sentido de murros trocados, também não
há,-pelo menos, que me conste. Quanto à suposição de estar aí alguma pessoa
apregoando medalhinhas e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor,
esquina da do Carmo ou da Primeiro de Março, menos ainda.
-Já sei, é uma seita religiosa que se reúne aqui para
meditar sobre as vaidades do mundo,-um troço de budistas...
-Não, não.
-Advinhei: é um meeting.
-Onde está o orador?
-Esperam o orador.
-Que orador? que meeting? Ouça calado. O senhor parece
ter o mau costume de vir apanhar as palavras dentro da boca dos outros.
Sossegue e escute.
-Sou todo ouvidos.
-Este é o célebre encilhamento.
-Ah!
-Vê? Há mais tempo teria tido o gosto dessa admiração,
se me ouvisse calado. Este é o encilhamento.
-Não sabia que era assim.
- Assim como?
-Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno
fechado, particular ou público, não este pedaço de rua estreita e aborrecida. E
olhe que nem há meio de passar; eu quis romper, pedi licença... Entretanto,
creio que temos a liberdade de circulação.
- Não.
- Como não?
- Leia a Constituição, meu senhor, leia a
Constituição. O art. 70 é o que compendia os direitos dos nacionais e
estrangeiros; são trinta e um parágrafos: nenhum deles assegura o direito de
circulação... O direito de reunião, porcm7 é positivo. Está no § 8.°: "A
todos é lícito reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a
polícia, senão para manter a ordem pública". Estes homens que aqui estão
trazem armas?
- Não as vejo.
- Estão desarmados. não perturbam a ordem pública,
exercem um direito, e, enquanto não infringirem as duas cláusulas
constitucionais só a violência os poderá tirar daqui. Houve já uma tentativa
disso. Eu, se fosse comigo, recorria aos tribunais, onde há justiça. Se eles ma
negassem, pedia o júri, onde ela é indefectível, como na velha Inglaterra. Note
que a violência da polícia já deu algum lucro. Como as moléculas do
encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de
dispersados, a polícia, para impedir a recomposição fazia disparar de quando em
quando duas praças de cavalaria. Mal sabiam elas que eram simples animais de
corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegaria primeiro
a certo ponto. - É da esquerda. - É a da direita. - Quinhentos mil-réis. -
Aceito. - Pronto.
- Chegou a da esquerda: dê cá o dinheiro.
- De maneira que a própria autoridade...
- Exatamente. Ah! meu meu caro, dinheiro é mais forte
que amor. Veja o negócio do chocolate. Chocolate parece que não convida a
falsificação: tem menos uso que o café. Pois o chocolate é hoje tão duvidoso
como O café. Entretanto, ninguém dirá que os falsificadores sejam homens
desonestos nem inimigos públicos. O que os leva a Falsificar a bebida não é o
ódio ao homem. Como odiar o homem, se no homem está o freguês? É o amor da
pecúnia.
- Pecúnia? chocolate?
- Sim, senhor. um negócio que se descobriu há dias. O
senhor, ao que parece, não sabe o que se passa em torno de nós. Aposto que não
teve notícia da revolução de Niterói?
- Tive.
- Eu tive mais que notícia, tive saudades. Quando me
falaram em revolução de Niterói, lembrei-me dos tempos da minha mocidade,
quando Niterói era Praia Grande. Não se faziam ali revoluções, faziam-se
patuscadas. Ia-se de falua, antes e ainda depois das primeiras barcas. Quem
ligou nunca Niterói e S. Domingos a outra ideia que não fosse noite de luar,
descantes, moças vestidas de branco, versos, uma ou outra charada? Havia
presidente, como há hoje; mas morava do lado de cá. Ia ali às onze horas,
almoçado, assinava o expediente, ouvia uma dúzia de sujeitos cujos negócios
eram todos a salvação pública, metia-se na barca, e vinha ao Teatro Lírico
ouvir a Zecchinni. Havia também uma assembléia legislativa; era uma espécie do
antigo Colégio de Pedro II, onde os mocos tiravam carta de bacharel político, e
marchavam para S. Paulo, que era a assembléia geral. Tempos! tempos!
- Tudo muda, meu caro senhor. Niterói não podia ficar
eternamente Praia Grande.
- De acordo; mas a lágrima é livre.
- É talvez a cousa mais livre deste mundo senão a
única. Que é á liberdade pessoal? O senhor vinha andando, rua acima. encontra-me,
faço-lhe uma pergunta, e aqui está preso há vinte minutos.
- Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilhões! São
grilhões de ouro.
- Agradeço-lhe o favor. Nunca o favor é tão honroso e
grande como quando sai da boca ungida pelo saber e pela experiência; porque a
bondade e própria dos altos espíritos.
- Julga-me por si; é o modo certo de engrandecer os
pequenos.
- O que engrandece os pequenos é o sentimento da
modéstia, virtude extraordinária; o senhor a possui.
- Nunca me esquecerei deste feliz encontro.
- Na verdade, é bom que haja encilhamento; se o não
houvesse, a rua era livre, como a lágrima, eu teria ido o meu caminho, e não receberia
este favor do céu. de encontrar uma inteligência tão culta. Aqui está o meu
cartão.
- Aqui está o meu. Sempre às suas ordens.
- Igualmente.
- (À parte ) Que homem distinto!
- (À parte ) Que estimável ancião!
É DESENGANAR. Gente que mamou leite romântico, pode
meter o dente no rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e
oriental, deixa o melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh!
Meu doce de leite romântico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe,
aparecem novamente as figuras aéreas que outrora vi ante os meus olhos turvos.
Com efeito enquanto vós outros cuidáveis da reforma financeira e tantos fatos
da semana, enquanto percorríeis as salas da nossa bela exposição preparatória
da de Chicago, eu punha os olhos em um telegrama de Constantinopla; publicado
por uma das nossas folhas. Mão são raros os telegramas de Constantinopla; temos
sabido por eles como vai a questão dos Dardanelos; mas desta vez alguma cousa
me dizia que não se tratava de política. Tirei os óculos, limpei - os, fitei o
telegrama. Que dizia o telegrama?
"Cinco odaliscas..." Parei; lidas essas
primeiras palavras, senti-me necessitado de tomar fôlego. Cinco odaliscas!
Murmura esse nome, leitor faze escorrer da boca essas quatro sílabas de mel, e
lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte, achei-me, em espírito. diante
de cinco lindas mulheres, como o véu transparente no rosto. as calças largas e
os pés metidos nas chinelas de marroquim amarelo, - babuchas, que é o próprio
nome. Todas as orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro
e sândalo. Cinco odaliscas, Mas que fizeram essas cinco odaliscas? Não fizeram
nada. Tinham sido mandadas de presente ao sultão. Pobres moças! Entraram no
harém, lá estiveram não sei quanto tempo, até que foram agora assassinadas...
Sim, leitor compassivo, assassinadas por mandado das outras mulheres que já lá
estavam, e por ciúmes...
Não, aqui é força interromper o capítulo, por um
instante.
Não continuo sem advertir que o ano é bissexto, ano de
espantos. Míseras odaliscas! Assassinadas por ciúmes, - não do sultão, que tem
mais que fazer com o grande urso eslavo: - por ciúmes dos eunucos. Singulares
eunucos! eunucos de ano bissexto!
Todo o harém posto em ódio, em tumulto, em sangue, por
causa de meia dúzia de guardas que o sultão tinha o direito de supor fiéis ao
trono e à cirurgia.
O mundo caduca - reflexionou tristemente um dia não
sei que cardeal da Santa Igreja Romana; e fez bem em morrer pouco depois, para
não ouvir da parte do oriente este desmentido de incréus: - O mundo
reconstitui-se. O sultão tem ainda um recurso, dissolver n corpo dos seus
guardas, como fizemos aqui com o corpo de polícia de Niterói, e recompô-lo com
os companheiros de Maomé II. Eis acudirão à chamada do imperador; os velhos
ossos cumprirão o seu dever, atarraxando-se uns nos outros, e, com as órbitas
vazias, com o alfanje pendente dos dedos sem carne. correrão a vigiar e
defender as odaliscas antigas e recentes.
Ossos embora, hão de ouvir as vozes femininas, e, pois
que tiveram outra função social, estremecerão ao eco dos séculos extintos. A
frase vai-me saindo com tal ou qual ritmo que parece verso. Talvez por causa do
assunto. Falemos de um triste leitão, que ouvi grunhir agora mesmo no Largo da
Carioca. Ia atado pelos pés, dorso para baixo. seguro pela mão de um criado.
que o levava de presente a alguém: é véspera de Natal. Presente cristão.
costume católico. parece que adotado para fazer figa ao judaísmo. Será comido
amanhã, domingo: ira para a mesa com a antiga rodela de limão, à maneira velha.
Pobre leitão! Berrava como se já o estivessem assando. Talvez o desgraçado
houvesse notícia do seu destino, por algumas relações verbais que passem entre
eles de pais a filhos. Pode ser que eles ainda aguardem uma desforra. Tudo se
deve esperar na terra. Tout arrive, como dizem os franceses. Não quero dizer
dos franceses o que me está caindo da pena. Melhor é calá-lo. Como se não
bastassem a
essa briosa nação os delitos de Panamá, está a
desmoralizar-se com o escândalo de tantos processos.
Corrupção escondida vale tanto como pública; a
diferença é que não fede. Que é que se ganha em processar? Fulano corrompeu
Sicrano. Pedro e Paulo uniram-se para embaçar uma rua inteira, fizeram vinte
discursos, trinta anúncios, e deixaram os ouvintes sem passo que o silêncio,
além de ser outro, conforme o adágio árabe, tem a vantagem de fazer esquecer
mais depressa. Toda a questão é que os empulhados não se deixem embair outra
vez pelos empulhadores.
A QUESTÃO Capital está na ordem do dia. Tempo houve em
que na República Argentina não se falou de outra cousa. Lá, porém, não se
tratava de trocar a capital da província de Buenos Aires por outra, mas de
tirar à cidade deste nome o duplo caráter de capital da província e da
República. Um dia resolveram fazer uma cidade nova La Plata, que dizem ser
magnífica, mas que custou naturalmente empréstimos grossos.
Entre nós, a questão é mais simples. Trata-se de mudar
a capital do Rio de Janeiro para outra cidade que não fique sendo um
prolongamento da Rua do Ouvidor. Convém que o Estado não viva sujeito ao botão
de Diderot, que matava um homem na China. A questão é escolher entre tantas
cidades. A ideia legislativa até agora é Teresópolis; assim se votou ontem na
assembléia . Era a do finado capitalista Rodrigues, que escreveu artigos sobre
isso. Grande viveur, o Rodrigues! Em verdade, Teresópolis está mais livre de um
assalto. é fresca, tem terras de sobra, onde se edifique para oficiar, para
legislar e para dormir. Campos quer também a capitalização Reúne-se, discute,
pede, insta. Vassouras não quer ficar atrás. Velha cidade de um município de
café. julga-se com direito a herdar de Niterói, e oferecer dinheiros para
auxiliar a administração. Petrópolis também quer ser capital, e parece invocar
algumas razões de elegância e de beleza; mas tem contra si não estar muito mais
longe da Rua do Ouvidor. e até mais perto, por Dois caminhos. Também há quem
indique Nova Friburgo: e, se eu me deixasse levar pelas boas recordações dos
hotéis Leuenroth e Salusse, não aconselharia outra cidade. Mas, além de não
pertencer ao Estado (sou puro carioca), jamais iria contra a opinião dos meus
concidadãos unicamente para satisfazer reminiscências culinárias Nem só
culinárias: também as tenho coreográficas... Oh! bons e saudosos bailes do
salão Salusse! Convivas desse tempo, onde ides vós? Uns morreram, outros
casaram, outros envelheceram; e, no meio de tanta fuga, é provável que alguns
fugissem. Falo de quatorze anos atrás. Resta ao menos este miserável escriba.
que, em vez de lá estar outra vez, no alto da serra, aqui fica a comer-lhes o
tempo.
Niterói não pede nada, olha, escuta, aguarda. Vai para
a barca, se tem cá o emprego; se o tem lá mesmo, vai ver chegar ou sair a
barca. Vê sempre alguma cousa, - Outrora as lanchas, - depois as barcas. Pobre
subúrbio da velha Corte, não tens forças para reagir contra a descapitalização;
não representas, não requeres. Vais para a galeria da assembléia ouvir as
razões com que te tiram o chapéu da cabeça; não indagues se são boas ou más.
São razões. Vale-lhe uma cousa não está só. O Estado de Minas Gerais, que desde
o tempo do império já sonhava com outra capital, põe mãos à obra deveras'
mandando fazer uma capital nova. Já aí saiu uma comissão em busca de território
e clima adequados. Ouro Preto tem de ceder. Dizem que lhe custa; mas o que é
que não custa? Quanto à capital da república, é matéria constitucional, e a
comissão encarregada de escolher e delimitar a área já concluiu os seus
trabalhos, ou está prestes a fazê-lo, segundo li esta mesma semana. Telegrama
de Uberaba diz que ali chegou o chefe, Luís Cruls. Não há dúvida que uma
capital é obra dos tempos, filha da história. A história e os tempos se
encarregarão de consagrar as novas. A cidade que já estiver feita, como no
Estado do Rio, é de esperar que se desenvolva com a capitalização. As novas
devemos esperar que serão habitadas logo que sejam habitáveis. O resto virá com
os anos.
Entretanto, os donativos e ofertas por parte de
algumas cidades fluminenses mostram bem, que nem as cidades querem andar na
turbamulta, por mais que a produção e a riqueza as distingam. Tudo vale muito,
mas não vale tudo, antes da coroa administrativa. Datar as leis de Campos é dar
o comando a Campos; datá-las de Vassouras e dá-lo a Vassouras; e nada vale o
comando, nem a própria santidade. A capital da República, uma vez estabelecida,
receberá um nome deveras, em vez deste que ora temos, mero qualificativo. Não
sei se viverei até à inauguração. A vida é tão curta. a morte tão incerta que a
inauguração pode fazer-se sem mim, e tão certo é o esquecimento, que nem darão
pela minha falta. Mas, se viver, lá irei passar algumas férias, como os de lá
virão aqui passar outras. Os cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os
arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a
praça do comércio, as corridas de cavalos. tanto nos circos, como nos balcões
de algumas casas cá embaixo, os monumentos, a companhia lírica, os velhos
templos, os rebequistas, os pianistas...
Ponhamos também os melhoramentos projetados na cidade.
São muitos, e creio haver boa resolução de levar a obra ao cabo. Oxalá não desanimem
os poderes do município. Também ficaremos com os processos de toda a sorte, as
sociedades sem cabeça e as sociedades de duas cabeças. como a Colonização.
imitação da água austríaca. Aqui ficará o grande banco. A mesma ponte truncada
da baia. que o mar começou a comer, e as montanhas - russas inacabadas da
Glória também ficarão aqui, tão inacabadas e tão truncadas como podemos
pedi-los aos deuses.
Perderemos, é certo, o Supremo Tribunal de Justiça;
mas, tendo a Câmara Municipal do Tubarão, em um assomo de cólera, qualificado
um ato daquela instituição como ignobilmente anormal, e não nos convindo, nem
cortar as relações com o Tubarão. nem sair da escola do respeito, melhor é que
o tribunal se mude e nos deixe. Grande Tubarão! Tudo por causa de um homem. O
que não dirá ele por um princípio?
GOSTO deste homem pequeno e magro chamado Barata
Ribeiro, prefeito municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a
ver correr as águas do Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de
Jerico, vulgo Cabeça de Porco. Chamou as tropas segundo as ordens de Javé
durante os seis dias da escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as
trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza bíblica, até carneiros saíram de
dentro da Cabeça de Porco tal qual da outra Jericó saíram bois e jumentos. A
diferença é que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros, não só
conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações de sociedades anônimas.
Outra diferença. Na velha Jericó houve, ao menos, uma
casa de mulher que salvar, porque a dona tinha acolhido os mensageiros de
Josué. Aqui nenhuma recebeu ninguém. Tudo pereceu portanto, e foi bom que
perecesse. Lá estavam para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a
autoridade sanitária, a força pública, cidadãos de boa vontade, e cá fora é
preciso que esteja aquele apoio moral, que dá a opinião pública aos varões
provadamente fortes. Não me condenem os reminiscências de Jericó. Foram os
lindos olhos de uma judia que me meteram na cabeça os passos da Escritura. Eles
é que me fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles
entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo único
sentido verdadeiro. Tal foi a causa de não ir, desde anos, à procissão de S.
Sebastião, em que a imagem do nosso padroeiro é transportada da catedral ao
Castelo. Sexta-feira fui vê-la sair. Éramos Dois, um amigo e eu; logo depois
éramos quatro, nós e as nossas melancolias. Deus de bondade! Que diferença
entre a procissão de sexta-feira e as de outrora. Ordem, número, pompa, tudo o
que havia quando eu era menino, tudo desapareceu. Valha a piedade, posto não
faltaram olhos cristãos, e femininos, - um par deles - para acompanhar com riso
amigo e particular uma velha opa encarnada e inquieta. Foi o meu amigo que
notou essa passagem do Cântico dos Cânticos. Todo eu era pouco para evocar a
minha meninice...
E, tu, Belém Efrata... Vede ainda uma reminiscência
bíblica; é do profeta Miquéias.. . Não tenho outra para significar a vitória de
Teresópolis De Belém tinha de vir o salvador do mundo, como de Teresópolis há
de vir a salvação do Estado fluminense. Está feito capital o lindo e fresco
deserto das montanhas. Peso de Campos (agora é imitar o profeta Isaías), peso
de Vassouras, peso de Niterói. Não valeram riquezas, nem súplicas. A ti, pobre
e antiga Niterói não te valeu a eloqüência do teu Belisário Augusto, nem sequer
a rivalidade das outras cidades pretendentes. Tinha de ser Teresópolis. "F
tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre as milhares de Judá.. ." Pequenina
também é Teresópolis, mas pequenina em casas, terras há muitas, pedras não
faltam, nem cal, nem trolhas, nem tempo. Falta o meu velho amigo
Rodrigues - ora morto e enterrado, - que possuía uma
boa parte daquelas terras desertas.
Ai, Justiniano!
Os teus dias passaram como as águas que não voltam
mais. É ainda uma palavra da Escritura. Fora com estes sapatos de Israel.
Calcemo-nos à maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa em
burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos modernos. O banco,
por exemplo, o novo banco, filho de Dois pais, como aquela criança divina que
era, dizia Camões, nascida de duas mães. As duas mães, como sabeis, eram a
madre de sua madre, e a coxa de seu padre, porque no tempo em que Júpiter
engendrou esse pequerrucho, ainda não estava descoberto o remédio que previne a
concepção para sempre, e de que ouço falar na Rua do Ouvidor. Dizem até que se
anuncia, mas eu não leio anúncios. No tempo em que os lia, até os ia catar nos
jornais estrangeiros. Um destes, creio que americano, trazia um de excelente
remédio para não sei que perturbações gástricas; recomendava porém, às senhoras
que o não tomassem, em estado de gravidez, poio risco que corriam de abortar...
O remédio não tinha outro fin1 senão justamente este mas a policia ficava sem
haver por onde pegar do invento e do inventor. Era assim, por meios astutos e
grande dissimulação, que o remédio se oferecia às senhoras cansadas de aturar
crianças.
A moeda falsa, que previne a miséria, não a previne
para sempre visto que a polícia tem o poder iníquo de interromper os estudos de
gravura e meter toda uma academia na Detenção. Já li que se trata de demolir
caracteres, e também que a autoridade está atacando o capital. Eu, em se me
falando esta linguagem, fico do lado do capital e dos caracteres. Que pode, sem
eles, uma sociedade?
Um criado meu, que perdeu tudo o que possuía na compra
de desventuras... perdoem-lhe; é um pobre homem que fala mal. Ensinei-lhe a
correta pronúncia de debêntures, mas ele disse-me que desventuras é o que elas
eram, desventuras e patifarias. Pois esse criado também defende o capital; a
diferença é que não se acusa a si de atacar o dos outros. e sim aos outros de
lhe terem levado o seu. Quanto aos caracteres, entendo que, se alguma cousa
quer demolir não são os caracteres, mas as próprias caras, que são os
caracteres externos, e não o faz por medo da polícia. Lê tudo o que os jornais
publicam, este homem. Foi ele que me deu notícia da nova denúncia contra a
Geral; ele chama-lhe nova. não sei se houve outra. Contou-me também uma
história de discursos, paraninfos e retratos, e mais um contrabando de objetos
de prata dentro de um canapé velho.
- Não ganho dinheiro com isto, conclui ele, mas
consolo-me das minhas desventuras.
- Debêntures, José Rodrigues.
CONTARAM algumas folhas esta semana, que um homem, não
querendo pagar por um quilo de carne preço superior ao taxado pela prefeitura,
ouvira do açougueiro que poderia pagar o dito preço, mas que o quilo seria mal
pesado. Pára, amigo leitor; não te importes com o resto das cousas, nem dos
homens. Com um osso, queria o outro reconstruir um animal; com aquela só
palavra, podemos recompor um animal, uma família, uma tribo, uma nação, um
continente de animais. Não é que a palavra seja nova. E menos velha que o
diabo, mas é velha. Creio que no tempo das libras, já havia libras mal pesadas,
e até arrobas. O nosso erro é crer
que inventamos, quando continuamos, ou simplesmente
copiamos. Tanta gente pasma ou vocifera diante de pecados, sem querer ver que
outros iguais pecados se pecaram, e ainda outros se estão pecando, por várias
outras terras pecadoras. Andamos em boa companhia. Não nos hão de lapidar por
atos que são antes efeito de uma epidemia do tempo. Ou lapidem-nos, mas no sentido
em que se lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho
da espécie. Neste ponto, força é confessar que ainda
há por aqui impurezas e defeitos graves; mas o belo diamante Estrela do Sul,
que hoje pertence a não sei que coroa européia, não foi achado na Bagagem
prestes a ser engastado, mas naturalmente bruto. Há impurezas. Há inépcia, por
exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são inadvertências. Apontam-se
diamantes que tanto têm de finos como de pataus, e só o longo estudo da
mineralogia poderá :lar a chave da contradição. Mas, sursum corda, como se diz
na missa. Subamos ao alto valor espiritual da resposta do açougueiro. Um quilo
mal pesado. Pela lei, um aquilo mal pesado não é tudo, são novecentas e tantas
gramas, ou só novecentas. Mas a persistência do nome é que dá a grande
significação da palavra e a conseqüente teoria. Trata-se de uma ideia que o
vendedor e o comprador entendem, posto que legalmente não exista. Eles crêem e
juram que há duas espécies de quilo, - o de peso justo e o mal pesado. Perderão
a carne ou o preço, primeiro que a convicção.
Ora bem, não será assim com o resto? Que são notas
falsas, se acaso estão de acordo com as verdadeiras, e apenas se distinguem
delas por uma tinta menos viva, ou por alguns pontos mais ou menos incorretos?
Falsas seriam, se se parecessem tanto com as outras,
como um rótulo de farmácia com um bilhete do Banco Emissor de Pernambuco, para
não ir mais longe; mas se entre as notas do mesmo banco houver apenas
diferenças miúdas de cor ou de desenho, as chamadas falsas estão para as
verdadeiras, como o quilo mal pesado para o quilo de peso justo. Excluo
naturalmente o caso de emissões clandestinas, porque as notas de tais emissões
nunca se poderão dizer mal pesadas. O peso é o mesmo. A alteração
única está no acréscimo do mantimento, determinado
pelo acréscimo dos quilos. Quanto ao mais, falsas ou verdadeiras, valha-nos
aquela benta francesia que diz que tout finit par des chansons. Pañuelo a la
cintura, Pañuelo al cuello, Tantos pañuelos! Saiam donde for, basta que
enfeitem a moça andaluza. Não lhe faltarão guitarras nem guitarreiros, que
levantem até a lua os seus méritos, ainda que eles sejam mal pesados. Que valem
cinqüenta ou cem gramas de menos a um merecimento, se lhe não tiram este nome?
Tudo está no nome. Vi estadistas que tinham de ciência política um quilo muito
mal pesado, e nunca os vi gritar contra o açougueiro; alguns acabaram crendo
que o peso era justo, outros que até traziam um pedaço de quebra...
- Isto prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o
senhor entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse ideias claras saberia
que não há só quilos mal pesados; também os há bem pesados. Mas quem os recebe
da segunda classe, não corre às folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia
não se faz só com a pena no papel mas também com o facão na alcatra. Saiba que
o mundo é uma balança, em que se pesam alternadamente aqueles Dois quilos,
entre brados de alegria e de indignação. Para mim, tenho que o quilo mal pesado
foi inventado por Deus, e o bem pesado pelo Diabo, mas os meus fregueses pensam
o contrário, e daí um povo de cismáticos. uma raça perversa e corrupta...
- Bem; faça o resto da crônica.
FALECI ONTEM, pelas sete horas da manhã. Já se entende
que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão
ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da
bem-aventurança. Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria
figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde
espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade,
sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava
conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando
a ânfora:
- Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que
traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão
não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume. a do
calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza. a de Paris. Com temperatura
alta, podem vir transtornos de saúde, - algum aparecimento de febre, que os
seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos
sobre o Rio de Janeiro.
Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra.
Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, - velha festa, que está a fazer
quarenta anos. se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do
entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os
rapazes de vinte e Dois anos que o entrudo era alguma cousa semelhante às
tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água,
postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão
todo, - chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera.
Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não
contando as bacias d'água despejadas a traição.
Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço
de três meses. Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e
tosses. e era a vez dos boticários,
porque, naqueles tempos infantes e rudes, os
farmacêuticos ainda eram boticários. Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho
do céu, dos episódios de amor que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de
longe podia escalavrar um olho, tinha um ofício mais próximo e inteiramente
secreto. Servia a molhar o peito das moças; era esmigalhado nele pela mão do
próprio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente ...
Um dia veio, não Malesherbes, mas o carnaval, e deu à
arte da loucura uma nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se
sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um
colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dança. Os
personagens históricos e os vestuários pitorescos, um doge, um mosqueteiro,
Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos alfaiates, diante de figurinos, à força de
dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as que morriam eram substituídas, com
vária sorte, mas igual animação.
Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em
todas as instituições deste século, alargou as proporções do carnaval, e as
sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos
os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um
coro de não sei que peça do Alcazar Lírico, -- outra instituição velha, mas
velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda: Evohé! Momus est roi!
Não obstante as festas da terra, ia eu subindo.
subindo, até que cheguei à porta do céu, onde S. Pedro parecia, aguardar-me,
cheio de riso.
- Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra?
perguntou-me.
Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que
escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do
Castelo, como nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em
Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues. quer dizer que
são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de
trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram
uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo
ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões. amigos e até dinheiro, mas a crença nos
tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os
jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem me os de levar as riquezas
consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo.
Venham os ricos cálices de prata, os cofres de
brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de
moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro
maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar,
a fechar...
- Pára, interrompeu-me S. Paulo; falas como se estivesses
a representar alguma cousa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens
sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no
céu. onde a ferrugem os não come.
- Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o
mistério. Eram os trinta ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de
século, no Castelo; são os trezentos contos do preso de Valhadolide. O
mistério, sempre o mistério.
- Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este
de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se
poderem incorporar?
- Quando, divino apóstolo?
- Ainda agora.
- Há de ser obra de um médico italiano, um doutor...
esperai... creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo
ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas,
dizem; afirma-se que nenhuma pode já conceber; estão prontas.
- As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas;
não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador?
- Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai
entrando; ideia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel ...
- Crispi foi sempre tenebroso.
- Não digo que não; mas, em suma, há um fim político,
e os fins políticos são sempre elevados ...
Panamá, que não tinha fim político ...
- Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes
silêncios contemplativos.
É MEU VELHO costume levantar-me cedo e ir ver as belas
rosas, frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no
meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas ideias,
que vão com igual presteza, senão com a mesma graça. Mas deixemo-nos de elogios
próprios; vamos ao que me aconteceu ontem de manhã. Quando eu mais perdido
estava a mirar uma borboleta e uma ideia, parado no jardim da frente, ouvi uma
voz na rua, ao pé da grade:- Faz favor? Não é preciso mais para fazer fugir uma
ideia. A minha escapouse-me, e tive pena. Vestia umas asas de azul-claro, com
pintinhas amarelas, cor de ouro. Cor de ouro embora, não era a mesma (nem para
lá caminhava) do banqueiro Oberndcerffer, que depôs agora no processo Panamá.
Esse cavalheiro foi quem deu à companhia a ideia de emissão de bilhetes de
loteria e o respectivo plano, para falar como no Beco das Cancelas. Pagaram-lhe
só por esta ideiaDois milhões de francos. O presidente do tribunal ficou
assombrado. Mas um dos diretores, réu no processo,
explicou o caso dizendo que o banqueiro tinha grande influência na praça, e que
assim trabalharia a favor da companhia, em vez de trabalhar contra. Teve uma
feliz ideia, disse o juiz ao depoente; mas, para os acionistas, era melhor que
não a tivesse tido.
O depoente provou o contrário e retirou-se.
Tivesse eu a mesma ideia, e não a venderia por menos.
Olhem, não fui eu que ideei esta outra loteria, mais modesta, do Jardim
Zoológico; mas, se o houvesse feito, não daria a minha ideia por menos de cem
contos de réis; podia fazer algum abate, cinco porcento, digamos dez.
Relativamente não se pode dizer que fosse caro. Há invenções mais caras.
Mas, vamos ao caso de ontem de manhã. Olhei para a
porta do jardim, dei com um homem magro, desconhecido, que me repetiu cochilando:
- Faz favor?
Cheguei a supor que era uma relíquia do carnaval; erro
crasso, porque as relíquias do carnaval vão para onde vão as luas velhas. As
luas velhas, desde o princípio do mundo, recolhem-se a uma região que fica à
esquerda do infinito, levando apenas algumas lembranças vagas deste mundo. O
mundo é que não guarda nenhuma lembrança delas. Nem os namorados têm saudades
das boas amigas, que, quando eram moças e cheias, tanta vez os cobriram com o
seu longo manto transparente. E suspiravam por elas; cantavam à viola mil
cantigas saudosas, dengosas ou simplesmente tristes; faziam-lhes versos, se
eram poetas:
Era no outono, quando a imagem tua, À luz da lua...
C'etait
dans la nuit brume,
Sur
le clocher jauni,
La
lune...
Todos os metros, todas as línguas, enquanto elas eram
moças; uma vez encanecidas, adeus. E lá vão elas para onde vão as relíquias do
carnaval - não sei se mais esfarrapados, nem mais tristes; mas vão, todas de
mistura, trôpegas, deixando pelo caminho as metáforas e os descanses de poetas
e namorados.
Reparando bem, vi que o homem não era precisamente um
trapo carnavalesco. Trazia na mão um papel, que me mostrava de longe, - a
princípio, calado, - depois dizendo que era para mim. Que seria? Alguma carta,
- talvez" um telegrama' Que me dirá esse telegrama? Agora mesmo, houve em
Blumenau a prisão do Sr. Lousada. Telegrafaram a 16 esta notícia, acrescentando
que "o povo dá demonstração sensível de indignação". Para quem
conhece o técnica dos telegramas, o povo estava jogando o bilhar. Tanto é assim
que o próprio telegrama, para suprir a dubiedade e o vago daquelas palavras,
concluiu com estas:
"esperam-se acontecimentos gravíssimos".
Sabe-se que o superlativo paga o mesmo que o positivo; naturalmente o telegrama
não custou mais caro.
Vejam, entretanto, como me enganei. Realmente, houve
acontecimentos gravíssimos; a 17 telegrafaram que vinte homens armados feriram
gravemente o comissário da polícia: esperavam-se outras cenas de sangue. Vinte
homens não são o algarismo ordinário de um povo; mas eram graves os sucessos.
Outro telegrama, porém, não fala de tal ataque; diz apenas que uma comissão do
povo foi exigir providências do juiz de direito, que este pedia a coadjuvação
do povo para manter a ordem, e ficou solto Lousada.
Tudo isto, se não é claro, traz-me recordações da
infância, quando eu ia ao teatro ver uma velha comédia de Scribe, o Chapéu de
Palha da Itália. Havia nela um personagem que atravessa os cinco atos,
exclamando alternadamente, conforme os lances da situação: - "Meu genro,
tudo está desfeito!" - "Meu genro, tudo está reconciliado!"
- Telegrama? perguntei.
- Não, senhor, disse o homem.
- Carta?
- Também não. Um papel.
Caminhei até a porta. O desconhecido, cheio de
afabilidade que lhe agradeço nestas linhas, entregou-me um pedacinho de papel
impresso, com alguns dizeres manuscritos. Pedi-lhe que esperasse; respondeu-me
que não havia resposta, tirou o chapéu, e foi andando. Lancei os olhos ao
papel, e vi logo que não era para mim, mas para o meu vizinho. Não importa;
estava aberto e pude lê-lo. Era uma intimação da intendência municipal. Esta
intimação começava dizendo que ele tinha de ir pagar a certa casa, na Rua Nova
do Ouvidor, a quantia de mil e quinhentos réis, preço da placa do número da
casa em que mora. Concluí que também eu teria de pagar mil e quinhentos quando
recebesse igual papel, porque a minha casa também recebera placa nova. O papel
era assinado pelo fiscal. Achei tudo correto, salvo o ponto de ir pagar a um
particular, e não à própria intendência; mas a explicação estava no fim.
Se a pessoa intimada não pagasse no prazo de três
dias, incorreria na multa de trinta mil-réis. Estaquei por um instante; três
dias, trinta mil-réis, por uma placa, era um pouco mais do que pedia o serviço,
- um serviço que, a rigor, a intendência é quê devia pagar. Mas estava longe
dos meus espantos. Continuei a leitura, e vi que, no caso de reincidência,
pagaria o dobro (sessenta mil-réis) e teria oito dias de cadeia.
Tudo isto em virtude de um contrato.
O papel e a alma caíram-me aos pés. Oito dias de
cadeia e sessenta mil-réis se não pagar uma placa de mil e quinhentos! Tudo por
contrato. Afinal apanhei o papel, e ainda uma vez o li; meditei e vi que o
contrato podia ser pior, - podia estatuir a perda do nariz, em vez da simples
prisão. A liberdade volta; nariz cortado não volta. Além disso, se Xavier de
Maistre, em quarenta e Dois dias de prisão, escreveu uma obra-prima, por que
razão, se eu for encarcerado por causa de placa, não escreverei outra? Quem
sabe se a falta da cadeia não é que me impede esta consolação intelectual? Não,
não há pena; esta cláusula do contrato é antes um benefício. Verdade é que um
legista, amigo meu, afirma que não há carcereiro que receba um devedor remisso
de placas. Outro, que não é legista, mas é devedor, há três meses, assevera que
ainda ninguém o convidou a ir para a Detenção. A pena é um espantalho. Que
desastre! Justamente quando eu começava a achá-la útil. Pois se não há cadeia
de verdade, é caso de vistoria e demolição.
O QUE MAIS Me encanta na humanidade, é a perfeição. Há
um imenso conflito de lealdades debaixo do sol. O concerto de louvores entre os
homens pode dizer-se que é já música clássica. A maledicência, que foi
antigamente uma das pestes da terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis,
a romances arcaicos. A dedicação, a generosidade, a justiça, a fidelidade, a
bondade, andam a rodo, como aquelas moedas de ouro com que o herói de Voltaire
viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado. A organização social podia ser
dispensada. Entretanto, é prudente conservá-la por algum tempo, como um recreio
útil. A invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale
bem o dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. Algumas
dessas narrativas são demasiado longas e enfadonhas, como a Maria de Macedo,
cujo sétimo volume vai adiantado; mas isso mesmo é um benefício. Mostrando aos
homens os efeitos de um grande enfado, prova-se-lhes que o tipo de maçante, -
ou cacete, como se dizia outrora - é dos piores deste mundo, e impede-se a
volta de semelhante flagelo. Uma das boas instituições do século é a falange
das cousas perdidas, composta dos antigos gatunos e incumbida de apanhar os
relógios e carteiras que os descuidados deixam cair, e restituí-los a seus
donos.
Tudo efeito de discursos morais.
Posto que inútil, pela ausência de crimes, o júri é
ainda uma excelente instituição. Em primeiro lugar, o sacrifício que fazem
todos os meses alguns cidadãos em deixarem os seus ofícios e negócios para fingirem
de réus, é já um grande exemplo de civismo. O mesmo direi dos jurados. Em
segundo lugar, o torneio de palavras a que dá lugar entre advogados, constitui
uma boa escola de eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos,
para o caso de aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há dias, enganam-se
nas respostas, e mandam um réu para as galés, em vez de o devolverem à família;
mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é benefício, para tirar aos
homens alguma pontinha de orgulho de sapiência que porventura lhes haja ficado.
Mas a perfeição maior, a perfeição máxima, é a de que nos deu notícia esta
semana o cabo submarino. O grão-turco, por ocasião do jubileu do papa,
escreveu-lhe uma carta autografada de felicitações acompanhada de presentes de
alta valia. Não se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa já não
governa, como o sultão da Turquia. A fineza é o chefe espiritual, tão
espiritual como o jubileu. Já cismáticos e heréticos tinham feito a mesma
cousa; faltava o grão turco, e já não falta. Alá cumprimentou o Senhor, M2omé a
Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se harmonia, o oposto ajustou-se a
oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito de Dois livros A cruz e o
crescente levaram atrás de si milhares e milhares de homens. Houve cóleras
grandes. Houve também grandes e pequeno poetas que cantaram os feitos e os
sentimentos evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um
deles dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava uma
cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:
Je
donneirais sans retour
Mon
royaume pour Alédine,
Médine pour ton amour.
- Rei sublime, faze-te primeiramente cristão,
respondeu a bela Juana; danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços
de um incrédulo. Tempos de Granada! já não é preciso que os sultões se
cristianizem. Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas
circulares diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou
morre para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as
guerras de outrora? Onde param os
alfanjes tintos de sangue cristão? Naturalmente estão
com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam os vivos!
Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha
a emenda do breviário. Glória a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que
acrescentar: e na terra paz aos homens? A paz aí está, completa, universal,
perene. Vede Ubá. Vede que magnífico espetáculo deu ela a todos os municípios
do Estado mineiro, fazendo uma eleição tranqüila, sem as ruins paixões que
corrompem os melhores sentimentos deste mundo. O governador de S. Paulo
achou-se em casa com cerca de oitenta bombons de dinamite, -excelente produto
da indústria local, que conseguiu reduzir um explosivo tão violento a simples
doce de confeitaria. Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das
amazonas de Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por
ignorância do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes,
que são consolações da nossa humanidade triunfante.
Mas a paz não basta. Falta dizer da alegria. Oh! doce
alegria dos corações! Um só exemplo, e dou fim a isto. Aqui está o parecer dos
síndicos da Geral, publicado sexta-feira. Diz que entre os nomes da proposta da
concordata há alguns jocosos e outros obscenos. O parecer censura esse gênero
de literatura concordatária. Escrito com a melancolia que a natureza, para
realçar a alegria do século, pôs na alma de todos os síndicos, o parecer não
compreende a vida e as suas belas flores. Isto quanto aos nomes jocosos. Pelo
que toca aos obscenos, é preciso admitir que, assim como há bocas recatadas,
também as há lúbricas. A alegria tem todas as formas, não se há de excluir uma,
por não ser igual às outras. A monotonia é a morte. A vida está na variedade.
Demais, que se há de fazer com acionistas que ainda devem de entradas oitenta e
cinco mil oitocentos e quarenta e seis contos, cento e sessenta mil e duzentos
réis (85.846:160 200)? Rir um pouco, e bater-lhes na barriga. Ora, cada um ri
com a boca que tem. Mas a prova de que a obscenidade, como a jocosidade, formas
de alegria, são de origem legítima e autêntica, é que todas as firmas foram
legalmente reconhecidas. Quando a alegria entra nos cartórios, é que a tristeza
fugiu inteiramente deste mundo.
QUANDO OS JORNAIS anunciaram para o dia 1.0 deste mês
uma parede de, açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os
meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu.
Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo. Não sei se sabem que eu
era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne,
mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e
organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde
para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a
arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que
respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um
pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão
do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus
criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio
de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do
fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço
de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito
melhor.
Vede o nobre cavalo! o paciente burro! o incomparável
jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne,
tão saborosa à onça, - e ao gato, seu parente, pobre, - não diz cousa nenhuma
aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a
entender. Talvez, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almoço
de Adão, de onde lhe veio igual castigo. Enfim, chegou o dia 10 de março; quase
todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso
mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que
devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo principio vegetariano.
Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que
não há sangue" todas as variedades das plantas, que não berram nem
esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem
jantar, mas Dois banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.
Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia
um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio
que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há
boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de
alface?
Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo,
por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos.
Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso
pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é
conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que
é nossa vida? Nada. A vossa morte,
porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que
o Senhor vo-la dê suave e pronta. Compreende-se que, ocupado com esta passagem
de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que,
aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os
vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber
que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao
interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que
avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de
envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para
despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal
do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a
amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à
desobediência, ele torna às ideias simples e desambiciosas que o Criador
incutiu no primeiro homem. Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano
detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me
dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui,
anteriores a mim, e, - singular aproximação! - no próprio conselho municipal.
Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos
graves e gravíssimos.
Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso,
saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 1.1) de março; discurso
meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário)
e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina.
Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são
os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta
anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em
quantidade precisa. Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os
seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que
ele repeliu a asseveração do Sr. Capeli. Não contava com o orador, (que aparou
o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que
encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as
brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos
espécimens do tipo americano."
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da
necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana
aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a
conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, ante ensinar a
nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o
vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvi as óperas sem libreto na
mão, é um progresso.
QUE CUIDAM que me ficou dos últimos acontecimentos
Amazonas? Um verbo: desaclamar-se. Está em um dos telegrama do Pará e refere-se
ao cidadão que, por algumas horas, estivera com o poder nas mãos. "Tendo
em ofício participado a sua aclamação marcado o prazo de 12 horas para a
retirada do governador, de clamou-se em seguida por outro ofício..." Pode
ser (tudo é possível) que o intuito da palavra fosse ante gracejar com a ação;
mas as palavras, com os livros, têm os seus fados, e os desta serão prósperos.
É uma porta aberta para as restituições políticas. Resignar, como abdicar,
exprime a entrega de um poder legítimo, que o uso tornou pesado, ou os
acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se há de exprimir a restituição do
poder que a aclamação de alguns entregou por horas a alguém? Desaclamar-se.
Não vejo outro modo.
Mérimée confessou um dia que da história só dava
apreço às anedotas. Eu nem às anedotas. Contento-me com palavras. Palavra
brotada no calor do debate, ou composta por estudo, filha da necessidade,
oriunda do amor ao requinte, obra do acaso, qualquer que seja a sua certidão de
bastimo, eis o que me interessa na história dos homens. Desta maneira fico
abaixo do outro, que só curava de anedotas. Sim, meus amigos, nunca me vereis
vencido por ninguém. Alta ou baixa que seja uma ideia, acreditei que tenho
outra mais alta ou mais baixa. Assim o autor da Crônica de Carlos IX dava Tucídides
por umas memórias autênticas de Aspásia ou de um escravo de Péricles. Eu dou as
memórias deste escravo pela notícia da palavra que Péricles aplicava, em
particular, aos cacetes e amoladores de seu tempo.
Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho
parlamentarismo, em comparação com esta palavra: inverdade? Inverdade é o mesmo
que mentira, mas mentira de luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só,
nua e crua, dada na bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não
obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere. - "Perdoe-me V. Ex.a, mas
o que acaba de dizer é uma inverdade; nunca o presidente da Paraíba afirmou tal
cousa." - "Inverdade é a sua; desculpe-me que lhe diga em boa
amizade; V. Ex.a neste negócio tem espalhado as maiores inverdades possíveis!
para não ir mais longe, o crime atribuído ao redator do Imparcial... " -
"São pontos de vista; peço a palavra."
Parece que inexatidão bastava ao caso; mas é preciso
atender ao uso das palavras. Não cansam só as línguas que as dizem; elas
próprias gastam-se. Quando menos, adoecem. A anemia é um dos seus males
freqüentes; o esfalfamento é outro. Só um longo repouso as pode restituir ao
que eram, e torná-las prestáveis. Não achei a certidão de bastimo da inverdade;
pode ser até que nem se batizasse. Não nasceu do povo, isso creio. Entretanto,
esta moça, pode ainda casar, conceber e aumentar a família do léxicon. Ouso até
afirmar que há nela alguns sinais de pessoa que está de esperanças. E o filho é
macho; e há de chamar-se inverdadeiro. Não se achará melhor eufemismo de
mentiroso; é ainda mais doce que sua mãe, posto que seja feio de cara; mas quem
vê cara, não vê corações. Vi muitos outros viventes de igual condição, que
mereceriam algumas linhas; mas o tempo urge, e fica para outra vez. Nem há só
viventes separados; tenho visto irmãos, fileira de irmãos, saídos da mesma coxa
ou do mesmo útero, com o nome de uma só família apenas diferençado pelo Sufixo,
cuja significação não alcanço. Um exemplo, e despeço-me.
A chefia, e particularmente a chefia de polícia, é uma
dona robusta, de grandes predicados e alto poder. Supus por muitos anos que era
filha única do velho chefe; mas os tempos me foram mostrando que não. Tem
irmãs, tem irmãos, tem chefação, pessoa de igual ou maior força, porque a
desinência é mais enérgica. Tem chefança. Vi muitas vezes esta outra senhora, à
frente da polícia ou de um partido, disputar às irmãs o domínio exclusivo, sem
alcançar mais que comparti-lo com elas. Vi ainda a nobre chefatitra, tão válida
e tão ambiciosa como as outras. Dos irmãos só conheço o esbelto chefiado, que,
alegando o sexo, pretendeu sempre a chefança, a chefatura, a chefação ou a
chefia da família. Parece que, à semelhança dos filhos de Jacó, invejosos de
José, que era particularmente amado do pai, os filhos e filhas do velho chefe,
verido a predileção deste pela linda chefia, cuidaram de a matar. Estavam
prestes a fazê-lo, quando surgiu a ideia de a meter na cisterna, e dizê-la
morta por uma fera, como na Escritura; mas a vinda dos mesmos israelitas, com
os seus camelos, carregados de mirra e aromas...
Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do
sonho? Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os
olhos, desce; esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas
unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos,
e domina todo este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando. Para
crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.
ENTROU o outono. Despontam as esperanças de ouvir
Sarah Bemhardt e Falstaff. A arte virá assim, com as suas notas de ouro,
cantada e faladas, trazer à nossa alma aquela paz que alguns homens de boa
vontade tentaram restituir à alma Tio-grandense, reunindo-se quinta feira na
Rua da Quitanda. Creio que a arte há de ser mais feliz que os homens. Da
reunião destes resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os
seus intuitos. Talvez os convidados que lá não foram e mandara os seus votos em
favor do que passasse, já adivinhassem isso mesmo Viram de longe o texto da
moção final, e a assinaram de véspera Há desses espíritos que, ou por
sagacidade pronta, ou por esforço grande, lêem antes da meia-noite as palavras
que a aurora tem d trazer escritas na capa vermelha e branca, saúdam as
estrelas, fecha as janelas e vão dormir descansados. Alguns sonham, e creio que
sonhos generosos; mas a imaginação e o coração não mudam a cor rente das
cousas, e os homens acordam frescos e leves, sem haver debatido nem
incandescido nada. Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa
vontade - é a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa
vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este
efeito, a arte vale mais que o céu. A própria guerra, cantada por ela, dá-nos a
serenidade que não achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do
outono e o princípio do inverno.
Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e
caprichos, mas com o seu gênio também. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a
paixão moderna ou antiga. Confiemos no grande Falstafl. Não é poético, decerto,
aquele gordo Sir John; afoga-se em amores lúbricos e vinho das Canárias. Mas
tanto se tem dito dele, depois que o Verdi o pôs em música, que mui
naturalmente é obra-prima. O pior será o libreto, que, por via de regra, não há
de prestar; mas leve o diabo libretos. Antes do dilúvio, - ou mais
especificadamente, pelo tempo do Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa
ópera era o único libretista capaz. Não sei; nunca o li. O que me ficou é pouco
para provar alguma cousa. Quando a cigana cantava: Ai nostri monti ritorneremo,
a gente só ouvia o vozeirão da Casaloni, uma mulher que valia, corpo e alma,
por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia o famoso: Di quella pira
1'orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao Tamberlick ou ao Mirate.
Ninguém queria saber do Camarano, que era o autor dos versos.
Resignemos ao que algum mau alfaiate houver cortado na
capa magnífica de Shakespeare. Têm-se aqui publicado notícias da obra nova, e
creio haver lido que um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro
esperar. Demais, pouco é o tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a
propósito do facultativo italiano, que mostra ser patrício de Machiavelli. Fez
o seu anúncio, e entregou a causa aos adversários. Estes fazem, sem querer, o
negócio dele: e se algum vai ficando conhecido, a culpa é das cousas, não da
intenção; não se pode falar sem palavras, e as palavras fizeram-se para ser
ouvidas. Não digo entendidas, posto que as haja de fina casta, tais como a
isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a cofarectomia, a
histerectomin, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos jornais, todas
de raça grega e talvez do próprio sangue dos Atridas.
Tudo isto a propósito de um processo ignoto e célebre.
Descobriu-se agora (segundo li) que uma senhora já o conhece e emprega. Seja o
que for, é uma questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos
esquecendo; é o nosso ofício. Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no
silêncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou
por artigo. Anuncia-se agora um volume de questões econômicas, em que ele
trata, além de outras cousas, de uma moeda universal. Um só rebanho e um só
pastor, é o ideal da Igreja Católica. Uma só moeda deve ser o ideal da igreja
do diabo, porque há uma igreja do diabo, no sentir de um grande padre. Venha,
venha depressa esse volapuque das riquezas. Não lhe conheço o tamanho; pode ser
do tamanho universal o mesmo que aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um
dos mais influentes propugnadores daquela língua reconhece a inutilidade do
esforço. O comércio do mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres
antigos às combinações dos que gramaticaram aquele invento curioso. É que o
artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde.
Eu, SE TIVESSE de dar Hamlet em língua puramente
carioca, traduziria a célebre resposta do príncipe da Dinamarca: Words, words,
words, por esta: Boatos, boatos, boatos. Com efeito, não há outra que melhor
diga o sentido do grande melancólico. Palavras, boatos, poeira, nada, cousa
nenhuma. Toda a semana finda viveu disso, salvo a parte que não veio por'
boatos, mas por fatos, como o caso do coreto da Praça Tirandentes. Ninguém
boquejou nada sobre aquela construção; por isso mesmo deu de si uma porção de
conseqüências graves. Os boatos, porém, andavam a rodo, os rumores iam de
ouvido em ouvido, nas lojas, corredores, em casa, entre a pera e o queijo,
entre o basto e a espadilha. Conspirações, dissensões, explosões. Uns davam à
distribuição dos boatos a forma interrogativa, que é ainda a melhor de todas.
Homem, será certo que X furtou um lenço?
O ouvinte, que nada sabe, nada afirma; mas aqui está
como ele transmite a notícia: - Parece que X furtou um lenço. Um lenço de seda?
Provavelmente; não valeria a pena furtar um lenço de algodão. A notícia chega à
Tijuca com esta forma definitiva: X furtou Dois lenços, um de seda, e, o que é
mais nojento, outro de algodão, na Rua dos Ourives. Não me digam que imito
assim a fábula do marido e do ovo. Na fábula, quando o marido chega a ter posto
uma dúzia de ovos, há ao menos o único ovo de galinha com que ele experimentou
de manhã a discrição da esposa' Aqui não há sequer as casacas. E, se não, vejam
o que me aconteceu quarta-feira. Estava à porta de uma farmácia, conversando
com Dois amigos sobre os efeitos prodigiosos do quinino, quando apareceu outro
velho amigo nosso, o qual nos revelou muito à puridade que na quinta-feira
teríamos graves acontecimentos, e que nos acautelássemos. Quisemos saber o que
era, instamos, rogamos, não alcançamos nada. Graves acontecimentos. Ele falava de
boa fé. Tinha a expressão ingênua da pessoa que crê, e a expressão piedosa da
pessoa que avisa. Retirou-se; ficamos a conjeturar e chegamos a esta conclusão,
que os sucessos anunciados eram o desenlance fatal dos boatos que andavam na
rua. Todas essas cegonhas bateriam as asas à mesma hora, convertidas em
abutres, que nos comeriam em poucos instantes.
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa
de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além
disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas
peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a casa, jantei, digeri, e meti-me
na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora. nem o sol de
quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias
para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados.
Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo a
silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer.
Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros
de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução
espanhola, inteiramente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a
vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances
próprios de tais crises, não por ser constituição, visto que, Dois anos depois,
tínhamos outra, - mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres,
guitarras e pintores. Tudo são aniversários. Que é hoje senão o dia aniversário
natalício de Shakespeare? Respiremos, amigos;
a poesia é um ar eternamente respirável. Miremos este
grande homem; miremos as suas belas figuras, terríveis, heróicas, ternas,
cômicas, melancólicas, apaixonadas, varões e matronas, donzéis e donzelas,
robustos, frágeis, pálidos, e a multidão, a eterna multidão forte e movediça,
que execra e brada contra César, ouvindo a Bruto, e chora e aclama César,
ouvindo a Antônio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui;
acabemos com ele mesmo, que acabaremos bem. Allis well that ends well.
ONTEM DE MANHÃ, descendo ao jardim, achei a grama, as
flores e as folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noute inteira; o
chão estava molhado, o céu feio e triste, e o Corcovado de carapuça. Eram seis
horas; as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do
Treze de Maio. Não havia esperanças de sol; e eu perguntei a mim mesmo se o não
teríamos nesse grande aniversário. É tão bom poder exclamar: "Soldados, é
o sol de Austerlitz!" O sol é, na verdade, o sócio natural das alegrias
públicas; e ainda as domésticas, sem ele, parecem minguadas. Houve sol, e
grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente
sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido
dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem
favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era
delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter
visto. Essas memórias atravessaram-me o espírito, enquanto os pássaros
treinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam ontem
nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificação. No meio de tudo, porém,
uma tristeza indefinível. A ausência do sol coincidia com a do povo? O espírito
público tornaria à sanidade habitual?
Chegaram-me os jornais. Deles vi que uma comissão da
sociedade que tem o nome de Rio Branco, iria levar à sepultura deste homem de
Estado uma coroa de louros e amores-perfeitos. Compreendi a filosofia do ato;
era relembrar o primeiro tiro vibrado na escravidão. Não me dissipou a
melancolia. Imaginei ver a comissão entrar modestamente pelo cemitério,
desviar-se de um enterro obscuro, quase anônimo, e ir depor piedosamente a
coroa na sepultura do vencedor de 1871. Uma comissão, uma grinalda. Então
lembraram-me outras flores. Quando o Senado acabou de votar a lei de 28 de
setembro, caíram punhados de flores das galerias e das tribunas sobre a cabeça
do vencedor e dos seus pares. E ainda me lembraram outras flores...
Estas eram de climas alheias. Primrose day!
Oh! se pudéssemos tem um primrose day! Esse dia de
primavera é consagrado à memória de Disracli pela idealista e poética
Inglaterra. É o da sua morte, há treze anos. Nesse dia, o pedestal da estátua
do homem de Estado e romancista é forrado de seda e coberto de infinitas
grinaldas e ramalhetes. Dizem que a primavera era a flor da sua predileção. Daí
o nome do dia. Aqui estão jornais que contam a festa de 19 do mês passado.
Primrose day! Oh! quem nos dera um primrose day! Começaríamos, é certo, por ter
os pedestais.
Um velho autor da nossa língua, - creio que João de
Barros; não posso ir verificá-lo agora; ponhamos João de Barros. Este velho
autor fala de um provérbio que dizia: "os italianos governam-se pelo
passado, os espanhóis pelo presente e os franceses pelo que há de vir." E
em seguida dava "uma repreensão de pena à nossa Espanha",
considerando que Espanha é toda a península, e só Castela é Castela. A nossa
gente, que dali veio, tem de receber a mesma repreensão de pena; governa-se pelo
presente, tem o porvir em pouco, o passado em nada ou quase nada. Eu creio que
os ingleses resumem as outras três nações.
Temo que o nosso regozijo vá morrendo, e a lembrança
do passado com ele, e tudo se acabe naquela frase estereotipada da imprensa nos
dias da minha primeira juventude. Que eram afinal as festas da independência?
Uma parada, um cortejo, um espetáculo de gala. Tudo isso ocupava duas linhas, e
mais estas duas: as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros
surtos no porto deram as salvas de estilo. Com este pouco, e certo, estava
comemorado o grande ato da nossa separação da metrópole. Em menino, conheci de
vista o Major Valadares; morava na Rua Sete de Setembro, que ainda não tinha
este título, mas o vulgar nome de Rua do Cano. Todos os anos, no dia 7 de
setembro, armava a porta da rua com cetim verde e amarelo, espalhava na calcada
e no corredor da casa folhas da Independência, reunia amigos, não sei se também
música. e comemorava assim o dia nacional. Foi o último abencerragem. Depois ficaram
as salvas do estilo.
Todas essas minhas ideias melancólicas bateram as asas
à entrada do sol, que afinal rompeu as nuvens, e às três horas governava o céu,
salvo alguns trechos onde as nuvens teimavam em ficar. O Corcovado
desbarretou-se, mas com tal fastio, que se via bem ser obrigação de vassalo,
não amor da cortesia, menos ainda amizade pessoal ou admiração. Quando tornei
ao jardim, achei as flores enxutas e lépidas. Vivam as flores! Gladstone não
fala na Câmara dos Comuns sem levar alguma na sobrecasaca; o seu grande rival
morto tinha o mesmo vício. Imaginai o efeito que nos faria Rio Branco ou
Itaboraí com uma rosa ao peito, discutindo o orçamento, e dizei-me se não somos
um povo triste. Não, não. O triste sou eu. Provavelmente má digestão. Comi
favas, e as favas não se dão comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedir-vos-ei
uma estátua e uma festa que dure, pelo menos, deus aniversários. Já é demais
para um homem modesto.
...MAS POR QUE é que não adoece outra vez? No domingo
passado, esteve aqui um senhor alto, cheio, bem-nascido, que me deu no cias
suas, disse-me que havia adoecido, - adoecido ou nadado?
- Adoecido; mas doenças, minha senhora, não se compram
na botica, posto se agravem nela, alguma vez.
A minha achou felizmente um boticário consciencioso,
que, depois de me haver dado um vidro de remédio e o troco do dinheiro,
disse-me com um gesto mais doutoral que farmacêutico: "Não desanime; a sua
moléstia tem um prazo certo; são três períodos." Quis pedir o dinheiro,
restituir o vidro e esperar o fim do prazo certo, mas o homem já ouvia outro
freguês, igualmente enfermo dos olhos, e naturalmente ia preparar-lhe o mesmo
remédio, pelo mesmo preço, com o mesmo prazo e igual animação.
- Então, não foi nadando que ...
- Não, bela criatura, eu não sei nadar. Outrora,
quando tomava banhos de mar... Sim, houve tempo em que penetrei no seio de
Anfitrite, com estes pés que a senhora está vendo, e com estes braços;
ficávamos peito a peito; eu chegava a meter a cabeça na bela cama verde da
deusa, mas não saía da beira da praia. Se o seio lhe intumescia um pouco mais,
por efeito de algum suspiro, eu, cheio de respeito, desandava. Quando Vênus a
flagelava muito, eu não penetrava; deixava-me ficar do lado de fora, olhando
com vontade e com pena.
- (À parte) Singular banhista!
- A senhora diz?
- Que tinha bem vontade de ver outra vez o senhor que
aqui esteve, domingo passado. Ele que faz?
- Minha senhora, ele presentemente cessa de engordar.
Anda lépido, come bem, dorme bem, escreve bem, nada bem. Quer-me até parecer
que o nadador de que lhe falou, é ele mesmo; disse aquilo para desviar as
atenções, mas não é outro.
- Ah! também penetra no seio de Anfitrite?
- Penetra, e sempre com estes Dois versos de Camões,
na boca:
Todas as deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a princesa.
- Gracioso!
- Gracioso, mas falso; é um modo de cativar a deusa. A
senhora sabe que não há cousa que mais enterneça uma deusa, que falar de
sentimentos exclusivos. Êle é fino; não há de ir dizer a Anfitrite que a todas
as deusas prefere a majestosa Juno ou a guerreira Palas; mas creia que é também
guerreiro e majestoso. Naquele dia, enquanto bracejava através da onda marinha,
fazia de Mercúrio, com a diferença que levava os recados na barriga.
- Então, deveras, foi ele?
- Positivamente, não sei: mas vou dizendo que foi, já
por vingança, já porque não conheço nada mais recreativo que espalhar um boato.
O vício é muita vez um boato falso, e há virtudes que nunca foram outra cousa.
Digo-lhe mais: este mundo em que a senhora supõe viver, não passa talvez de um
simples boato. Os anjos, para matar o imortal tempo, fizeram correr pelo
infinito o boato da criação, e nós, que imaginamos existir, não passamos das
próprias palavras do boato, que rolam por todos os séculos dos séculos.
- Palavras apenas?
- Palavras, frases. A senhora é uma linda frase de
artista. Tem nas formas um magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de
Madame Guimarães. A boca é um verbo. Et verbum caro factuin est.
- Aí vem o senhor com as suas graças sem graça. Não me
há de fazer crer que a explosão da ilha Mocanguê foi uma vírgula ...
- Não foi outra cousa. O bombardeio é uma reticência,
a moléstia um solecismo, a morte um hiato, o casamento um ditongo, as lutas
parlamentares, eleitorais e outras uma cacofonia.
- Ainda uma vez, por que não adoeceu esta semana? Está
soporífero. Quisera saber de uma porção de cousas, mas não lhe pergunto nada.
Adeus.
- Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um
instante. É tão bom vê-la, mirá-la ... E depois, advirto que estou apenas na
tira oitava, e tenho de dar, termo médio, doze.
- Vamos; fale por tiras.
- Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas.
Não esgotaria o assunto; tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gosto
que sinto em estar a seu lado. Compreendo Tartufo ao O de Elmira: Je tâte votre
habit; 1'étofle en est moelleiíse ... Vá; responda que a senhora é fort
chatouilleuse, para conservar a rima do texto, mas emendemos Molière. Eu, para
mim, tenho que Tartufo é um caluniado. A verdade é que, sem acomodações com o
céu, este mundo seria insuportável. E o céu é o mais acomodatício dos credores.
Judas ainda pode ser perdoado. Pilatos também; lembre-se que ele começou por
lavar as mãos; lave a alma, e está a caminho. Sendo assim, que mal há na
bonomia que Tartufo atribui ao céu? "Oh! fazenda macia que é a deste seu
vestido!" Que estremeções são esses, meu Deus?
- Ouço o bombardeio.
- Não é bombardeio. É o meu coração que bate. A
artilharia do meu amor é extraordinária; não digo única, porque há a de Otelo.
Pouco abaixo de Otelo, estamos Fedra e eu. Já notou que não me comparo nunca a
gente miúda?
- Já; assim como tenho notado que o senhor é muito
derretido. - Querida amiga, isso não depende da cera, mas do fogo. Que há de
fazer uma vela acesa, senão derreter-se? É a única razão de haver fábrica de
velas; se elas durassem sempre, acabavam as fábricas, os fabricantes, e
conseqüentemente as próprias velas. Creio que há aqui alguma contradição; mas a
contradição é deste mundo. Para longe os raciocínios perfeitos e os homens
imutáveis! Cada erro de lógica pode ser um tento que a imaginação ganhe, e a
imaginação é o sal da vida. Quanto aos homens imutáveis, são de duas ordens, os
que se limitam a sê-lo sem confessá-lo, - e os que o são, e o proclamam a todos
os ventos. A perfeição é dizê-lo sem o ser. Um homem que passe por várias
opiniões, e demonstre que só teve uma opinião na vida, esse é a perfeição
buscada. e alcançada. A modo que a senhora está bocejando? A culpa é sua, se me
meto em assuntos áridos; podíamos ter continuado Tartufo.
- Quantas tiras?
- Começo a décima segunda. A senhora faz-me lembrar
uma borboleta que encontrei ontem na Rua da Assembléia. A Rua da Assembléia não
é passeio ordinário de borboletas; não há ali flores nem árvores. Esta de que
lhe falo, agitava as asas de um lado para outro, abaixo e acima, de porta em
porta. Suspendendo as minhas reflexões aborrecidas, parei alguns instantes para
observar. Evidentemente, estava perdida; descera de algum morro ou fugira de
algum jardim, se os há por ali perto. De repente, sumiu-se; eu meti a cabeça no
chão e segui com as minhas cogitações tétricas. Mas a borboleta apareceu de
novo, para tomar a sumir-se e reaparecer, segundo eu estacava o passo ou ia
andando. Finalmente, encontrei um amigo que me convidou a tornar uma xícara de
café e quatro boatos. A borboleta sumiu-se de todo. Conclua.
- As asas eram azuis?
- Azuis.
- Rajadas de ouro?
- De ouro.
- Não era eu; era um fiozinho de poeira, que forcejava
por arrancá-lo aos pensamentos lúgubres. Há desses fenômenos. Agora mesmo,
parece-me ver, ao longe, um pontozinho luminoso.
- Não, senhora; está perto, e é escuro; é o ponto
final.
- Que não seja boato, como tantos!
HÁ NA COMÉDIA Verso e Reverso, de José de Alencar, um
personagem que não vê ninguém entrar em cena, que não lhe pergunte: Que há de
novo. Esse personagem cresceu com os trinta e tantos anos que lá vão,
engrossou,, bracejou por todos os cantos da cidade, onde ora ressoa a cada
instante: - Que há de novo? Ninguém sai de casa que não ouça a infalível
pergunta, primeiro ao vizinho, depois aos companheiros de bond. Se ainda não a
ouvimos ao próprio condutor do bond, não é por falta de familiaridade, mas
porque os cuidados políticos ainda o não distraíram da cobrança da passagens e
da troca de ideias com o cocheiro, porém, chega a seu tempo e compensa o
perdido.
Confesso que esta semana entrei a aborrecer semelhante
interrogação. Não digo o número de vezes que a ouvi, na segunda-feira, para não
parecer inverossímil. Na terça-feira, cuidei lê-Ia impressa nas paredes, nas
caras, no chão, no céu e no mar. Todos a repetiam em torno de mim. Em casa, à
tarde, foi a primeira cousa que me perguntaram. Jantei mal; tive um pesadelo;
trezentas mil vozes bradaram do seio do infinito: - Que há de novo? Os ventos,
as marés, a burra de Balaão, as locomotivas, as bocas de fogo, os profetas,
todas as vozes celestes e terrestres formavam este grito uníssono: Que há de
novo?
Quis vingar-me; mas onde há tal ação que nos vingue de
uma cidade inteira? Não podendo queimá-la, adotei um processo delicado e amigo.
Na quarta-feira, mal saí à rua, dei com um conhecido que me disse, depois dos
bons dias costumados:
- Que há de novo?
- O terremoto.
- Que terremoto? Verdade é que esta noite ouvi grandes
estrondos, tanto que supus serem as fortalezas todas juntas. Mas há de ser
isso, um terremoto; as paredes da minha casa estremeceram; eu saltei da cama;
estou ainda surdo ... Houve algum desastre?
- Ruínas, senhor, e grandes ruínas.
- Não me diga isso! A Rua do Ouvidor, ao menos ...
- A Rua do Ouvidor está intacta, e corri ela a Gazeta
de Notícias.
- Mas onde foi?
- Foi em Lisboa.
- Em Lisboa?
- No dia de hoje, 1 de novembro, há século e meio. Uma
calamidade, senhor! A cidade inteira em ruínas. Imagine por um instante, que
não havia o Marquês de Pombal, - ainda o não era, Sebastião José de Carvalho,
um grande homem, que pôs ordem a tudo, enterrando os mortos, salvando os vivos,
enforcando os ladrões, e restaurando a cidade. Fala-se da reconstrução de
Chicago; eu creio que não lhe fica abaixo o caso de Lisboa, visto a diferença
dos tempos, e a distância que vai de um povo a um homem. Grande homem, senhor!
Uma calamidade! uma terrível calamidade!
Meio embaçado, o meu interlocutor seguiu caminho, a
buscar notícias mais frescas. Peguei em mim e fui por aí fora distribuindo o
terremoto a todas as curiosidades insaciáveis. Tornei satisfeito a casa; tinha
o dia ganho. Na quinta-feira, Dois de novembro, era minha intenção ir tão
somente ao cemitério; mas não há cemitério que valha contra o personagem do
Verso e Reverso. Pouco depois de transpor o portão da lúgubre morada, veio a
mim um amigo vestido de preto, que me apertou a mão. Tinha ido visitar os restos
da esposa (uma santa!), suspirou e concluiu:
- Que há de novo?
- Foram executados.
- Quem?
- A coragem, porém, com que morreram, compensou os
desvarios da ação, se ela os teve; mas eu creio que não. Realmente, era um
escândalo. Depois, a traição do pupilo e afilhado foi indigna; pagou-se-lhe o
prêmio, mas a indignação pública vingou a morte do traído.
- De acordo: um pupilo ... Mas quem é o pupilo?
- Um miserável. Lázaro de Melo.
- Não conheço. Então, foram executados todos?
- Todos; isto é, Dois. Um dos cabeças foi degredado
por dez anos.
- Quais foram os executados?
- Sampaio. .
- Não conheço.
- Nem eu; mas tanto ele, como o Manuel Beckman,
executados neste triste dia de mortos ... Lá vão Dois séculos! Em ver e,
passaram mais de duzentos anos, e a memória deles ainda vive. Nobre Maranhão!
O viúvo mordeu os beiços; depois, com um toque de
ironia triste, murmurou:
- Quando lhe perguntei o que havia de novo, esperava
alguma cousa mais recente.
- Mais recente só a morte de Rocha Pita, neste mesmo
dia, em 1738. Note como a história se entrelaça com os historiadores; morreram
no i-nesmo dia, talvez à mesma hora, os que a fazem e os que a escrevem. O
viúvo sumiu-se; eu deixei-me ir costeando aquelas casas derradeiras, cujos
moradores não perguntaram nada, naturalmente porque já tiveram resposta a tudo.
Necrópole da minha alma, aí é que eu quisera residir e não nesta cidade
inquieta e curiosa, que não se farta de perscrutar, nem de saber. Se aí
estivesse de uma vez, não ouviria como no dia seguinte, sexta-feira, a mesma
eterna pergunta. Era já cerca de 11 horas quando saí de casa, armado de um
naufrágio, um terrível naufrágio, meu amigo.
- Onde? Que naufrágio?
- O cadáver da principal vítima não se achou; o mar
serviu-lhe de sepultura. Natural sepultura; ele cantou o mar, o mar pagou-lhe o
canto arrebatando-o à terra e guardando-o para si. Mas vá que se perdesse o
homem; o poema, porém, esse poema, cujos quatro primeiros cantos aí ficaram
para mostrar o que valiam os outros ... Pobre Brasil! pobre Gonçalves Dias!
Três de novembro, dia terrível; 1864, ano detestável! Lembro-me como se fosse
hoje. A notícia chegou muitos dias depois do desastre. O poeta voltava ao Maranhão...
Raros ouviam o resto. Os que ouviam, mandavam-me
interiormente a todos os diabos. Eu, sereno, ia contando, contando, e recitava
versos, e dizia a impressão que tive a primeira vez que vi o poeta. Estava na
sala de redação do Diário do Rio, quando ali entrou um homem pequenino, magro,
ligeiro. Não foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves
Dias! Fiquei a olhar, pasmado, com todas as minhas sensações e entusiasmos da
adolescência. Ouvia cantar em mim a famosa "Canção do Exílio". E toca
a repetir a canção, e a recitar versos sobre versos. Os intrépidos, se me
agüentavam até o fim, marcavam-me; eu só os deixava moribundos.
No sábado, notei que os perguntadores fugiam de mim,
com receio, talvez, de ouvir a queda do império romano ou a conquista do Peru.
Eu, por não fiar dos tempos, saí com a morte de Torres Homem no bolso; era
recentíssima, podia enganar o estômago. Creio, porém, que a explosão da véspera
bastou às curiosidades vadias. Não me argúam de impiedade. Se é certo, como já
se disse, que os mortos governam os vivos, não é muito que os vivos se defendam
com os mortos. Dá-se assim uma confederação tácita para a boa marcha das cousas
humanas. Hoje não saio de casa; ninguém me perguntará nada. Não me perguntes tu
também, leitor indiscreto, para que eu te não responda como na comédia, após o
desenlace: - Que há de novo? inquire o curioso, entrando. E um dos rapazes: -
Que vamos almoçar.
DURANTE a semana houve algumas pausas, mais ou menos
raras, mais ou menos prolongadas; mas os tiros comeram a maior parte do tempo.
Basta dizer que foram mais numerosos que os boatos. Aquela quadra
pré-histórica, em que um tiro de peça, ouvido à noite, era o sinal para
consultar e acertar os relógios, não se pode já comparar a estes dias terríveis,
em que os tiros parecem pancadas de um relógio enorme, de um relógio que pára
às vezes, mas a que se dá corda com pouco:
Never forever,
Forever never,
tal qual na balada de Longfellow. A poesia, meus
amigos, está e tudo, na guerra como no amor. Relevem-me aqui uma ilustre
banalidade. Que é o amor mais que uma guerra, em que se vai por escaramuças e
batalhas, em que há mortos e feridos, heróis e multidões ignoradas? Como os
outros bombardeios, o amor atrai curiosos. A vida, neste particular, é uma
interminável Praia da Glória ou do Flamengo. Quando Dáfnis e Cloe travam as
suas lutas, são poucos os óculos e binóculos da gente vadia para contar as
balas, ou que se perdem, ou que se aproveitam, não falando dos naturais
holofotes que todos trazemos na cara.
De mim digo, porém, que aborreço a galeria. Uma vez
desci do bond, na Praia da Glória, para ceder ao convite de um amigo que queria
ver o bombardeio. Desci ainda outra vez para escapar a um sujeito que me
contava a guerra da Criméia, onde não esteve, não havendo nunca saído daqui,
mas que se ligava à sua adolescência, por serem contemporâneos. Ninguém ignora
que os sucessos deste mundo, domésticos ou estranhos, uma vez que se liguem de
algum modo aos nossos primeiros anos, ficam-nos perpetuados na memória. Por que
é que, entre tantas cousas infantis e locais, nunca me esqueceu a notícia do
golpe de Estado de Luís Napoleão? Pelo espanto com que a ouvi ler. As famosas
palavras: Saí da legalidade para entrar no direito ficaram-me na lembrança,
posto não soubesse o que era direito nem legalidade. Mais tarde, tendo
reconhecido que este mundo era uma infância perpétua, concluí que a proclamação
de Napoleão III acabava como as histórias de minha meninice: "Entrou por
uma porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra".
Por exemplo, o dia de hoje, 12 de novembro, é o aniversário do golpe de Estado
de Pedro I, que também saiu da legalidade para entrar no direito.
Mas não quero ir adiante sem lhes dizer o que me
sucedeu, quando pela segunda vez desci na Praia da Glória, a pretexto de ver o
bombardeio. Estive ali uns dez minutos, os precisos para ouvir a um homem, e
depois a outro homem, cousas que achei dignas do prelo. O primeiro defendia a
tese de que os tiros eram necessários, mormente os de canhão-revólver, e também
as explosões de paióis de pólvora. Dizia isto com tal placidez, que cuidei
ouvir um simples amador; mas o segundo homem retificou esta minha impressão,
dizendo-me, logo que o outro se retirou: - "É um vidraceiro; não quer a
morte de ninguém, quer os vidros quebrados." E o segundo homem, ar grave,
declarou que abominava as lutas civis, concluindo que ninguém tinha a vida
segura nesta troca de bombardas; ele, pela sua parte, já fizera testamento, não
sabendo se voltaria para casa, visto que a existência dependia agora de uma
bala fortuita. Gostei de ouvi-lo. Era o contraste judicioso e melancólico do
primeiro. Quando ele se despediu, perguntei a um terceiro: "Quem é este
senhor?" - "É um tabelião", respondeu-me.
Assim vai o mundo. Nem sempre o cidadão mata o homem.
E Bruto, o cidadão, também é homem, diz um verso de Garret. Deixem-me
acrescentar, em prosa, que o homem é muitas vezes mulher, por esse vício de
curiosidade que herdou da nossa mãe Eva, - outra ilustre banalidade. É a
segunda que digo hoje. Rigorosamente, devia parar aqui; mas então não falaria
das emissões particulares que estão aparecendo em Joinville, Catuguases e
Campos. A Gazeta anteontem, transcreveu três notas campistas, e indignou-se.
Prova que é mais moça que eu. Há muitos anos, 1868 ou 1869, lembro-me bem ter
visto em Petrópolis bilhetes de emissões particulares, não impressos, mas
ingenuamente manuscritos. Não traziam filetes nem emblemas; não se davam ao
escrúpulo dos números de série. Vale tanto, ou vale isto, mais nada. Não posso
afirmar com segurança se ainda se conhecia a origem de alguns; mas creio que
sim. Esta questão prende com uma teoria, que reputo verdadeira, a saber, que o
direito de emitir é individual.
Cada homem pode pôr em circulação o número de bilhetes
que lhe parecer. Serão aceitos até onde for a confiança. O crédito responderá
pelo valor. Nesta hipótese, melhor é o manuscrito que o impresso; porque o
impresso é de todos, e o manuscrito é meu. Entendam-me bem. Não admiro a
cláusula forçada da troca do bilhete por outro, prata ou papel do Estado; seria
rebaixar a uma permuta de cousas tangíveis uma operação que deve repousar pura
e simplesmente no crédito, "essa alavanca do progresso e da
civilização", para falar como o meu criado. Isto posto,
a sociedade terá achado o eixo que perdeu desde a morte do feudalismo. A fome
morrerá de fome. Ninguém pedirá, todos darão. Não me acordeis, se é sonho. Mas
não é sonho. Vejo mais que todos vós que vos supondes acordados. Se descreis
disto, chegareis a descrer do espiritismo, perdereis a própria razão. Que
radioso paraíso! Nesse dia, o tempo será aquele mesmo relógio que o poeta
americano pôs na escada dos seus versos; mas a pêndula não baterá mais que
amor, paz e abundância, com esta pequena alteração do estribilho:
Ever - forever!
Forever - ever!
UM DIA DESTES, lendo nos diários alguns atestados
sobre as excelência s do xarope Cambará, fiz lima observação tão justa que não
quero furtá-la aos contemporâneos, e porventura aos pósteros. Verdadeiramente,
a minha observação é um problema, e, como o de Hamlet, trata da vida e da
morte. Quando a gente não pode imitar os grandes homens, imite no menos as
grandes ficções. E por que não hei de eu imitar os grandes homens? Conta-se que
Xerxes, contemplando um dia o seu imenso exército, chorou com a ideia de que,
ao cabo de um século, toda aquela gente estaria morta. Também eu contemplo, e
choro, por efeito de igual ideia; o exército é que é outro. Não são os homens
que me levam à melancolia persa, mas os remédios que os curam. Mirando os
remédios vivos e eficazes, faço esta pergunta a mim mesmo: Por que é que os
remédios morrem? Com efeito, eu assisti ao nascimento do xarope ... Perdão;
vamos atrás. Eu ainda mamava, quando apareceu um médico que "restituía a
vista a quem a houvesse perdido". Chamava-se o autor Antônio Gomes, que o
vendia em sua própria casa, Rua dos Barbonos n.º 26. A Rua dos Barbonos era a
que hoje se chama do Evaristo da Veiga. Muitas pessoas colheram o benefício
inestimável que o remédio prometia. Saíram da noite para a luz, para os
espetáculos da natureza, dispensaram a muleta de terceiro, puderam ler,
escrever, contar. Um dia, Antônio Gomes morreu. Era natural; morreu como os
soldados de Xerxes. O inventor da pólvora, quem quer que ele fosse, também
morreu. Mas por que não sobreviveu o colírio de Antônio Gomes, como a pólvora?
Que razão houve para acabar com o autor uma invenção tão útil à humanidade?
Não se diga que o colírio foi vencido pelo rapé
Grimstone, "vulgarmente denominado de alfazema", seu contemporâneo.
Esse, conquanto fosse um bom específico para moléstias de olhos, não restituía
a vista a quem a houvesse perdido; ao menos, não o fazia contar. Quando, porém,
tivesse esse mesmo efeito, também ele morreu, e morreu duas vezes, como remédio
e como rapé. As inflamações de olhos tinham, aliás, outro inimigo terrível nas
"pílulas universais americanas"; mas, como estas eram universais, não
se limitavam aos olhos, curavam também sarnas, úlceras antigas erupções
cutâneas, erisipela e a própria hidropisia. Vendiam-se ri farmácia de Lourenço
Pinto Moreira; mas o único depósito era ri Rua do Hospício n.????? 40. Eram
pílulas provadas; não curavam todos, visto que há diferença nos humores e
outras partes; mas curavam muita vez e aliviavam, sempre. Onde estão elas?
Sabemos número da casa em que moravam; não conhecemos o da cova e que repousam.
Não se sabe sequer de que morreram; talvez u duelo com as "pílulas
catárticas do farmacêutico Carvalho Júnior" que também curavam as
inflamações de olhos e moléstias da pele com esta particularidade que dissipavam
a melancolia. Eram úteis no reumatismo, eficazes nos males de estômago, e
faziam vigorar cor do rosto. Mas também estas descansam no Senhor, como o
velhos hebreus. Para que falar do "elixir antiflegmático", do
"bálsamo homogêneo e tantos outros preparados contemporâneos da
Maioridade? O xarope a cujo nascimento assisti, foi o "Xarope do
Bosque", um remédio composto de vegetais, como se vê do nome, e deveras
miraculos Era bem pequeno, quando este preparado entrou no mercado; chego à
maturidade, já não o vejo entre os vivos. É certo que a vida não é a mesma em
todos; uns a tiveram mais longa, outros mais breve. Há casos particulares, como
o das sanguessugas; essas acabaram por causa do gasto infinito. Imagine-se que
há meio séculovendiam-se "aos milheiros" na Rua da Alfândega n.?????
15. Não há produção que resista a tamanha procura.
Depois, o barbeiro sangrador é ofício extinto. Por que
é que morreram tantos remédios? Por que é que os remédios morrem? Tal é o
problema. Não basta expô-lo; força é achar-lhe solução. Há de haver uma razão
que explique tamanha ruína. Não se pode compreender que drogas eficazes no
princípio de um século, sejam inúteis ou insuficientes no fim dele. Tendo
meditado sobre este ponto algumas horas longas, creio haver achado a solução
necessária. Esta solução é de ordem metafísica. A natureza, interessada na
conservação da espécie humana, inspira a composição dos remédios, conforme a
graduação patológica dos tempos. Já alguém disse, com grande sagacidade, que
não há doenças, mas doentes. Isto que se diz dos indivíduos, cabe igualmente
aos tempos, e a moléstia de um vi não é exatamente a de outro. Há modificações
lentas, sucessivas, por modo que, ao cabo de um século, já a droga que a curou
não cura; é preciso outra. Não me digam que, se isto é assim, a observação
basta para dar a sucessão dos remédios. Em primeiro lugar, não é a observação
que produz todas as modificações terapêuticas; muitas destas são de pura
sugestão. Em segundo lugar, a observação, em substância, não é mais que uma
sugestão refletida da natureza. Prova desta solução é o fato curiosíssimo de
que grande parte dos remédios citados e não citados, existentes há quarenta e
cinqüenta anos, curavam particularmente a crisipela. Variavam as outras
moléstias, mas a crisipela estava inclusa na lista de cada um deles.
Naturalmente, era moléstia vulgar; daí a florescência dos medicamentos
apropriados à cura. O povo, graças à ilusão da Providência, costuma dizer que
Deus dá o frio conforme a roupa; o caso da crisipela mostra que a roupa vem
conforme o frio. Não importa que daqui a algumas dezenas de anos, um século ou
ainda mais, certos medicamentos de hoje estejam mortos. Verificar-se-á que a
modificação do mal trouxe a modificação da cura. Tanto melhor para os homens. O
mal irá recuando. Essa marcha gradativa terá um termo, remotíssimo, é verdade,
mas certo. Assim, chegará o dia em que, por falta de doenças, acabarão os
remédios, e o homem, com a saúde moral, terá alcançado a saúde física, perene e
indestrutível, como aquela. Indestrutível? Tudo se pode esperar da indústria
humana, a braços com o eterno aborrecimento. A monotonia da saúde pode inspirar
a busca de uma ou outra macacoa leve. O homem receitará tonturas ao homem.
Haverá fábrica de resfriados. Vender-se-ão calos artificiais, quase tão
dolorosos como os verdadeiros. Alguns dirão que mais.
SOMBRE QUATRE-VINGT-TREIZE! É o caso de dizer, com o
poeta, agora que ele se despede de nós, este ano em que perfaz um século o a
terrível da Revolução. Mas a crônica não gosta de lembranças tristes por mais
heróicas que também sejam; não vai para epopéias, nem tragédias. Cousas doces,
leves, sem sangue nem lágrimas. No banquete da vida, para falar como outro
poeta ... Já agora falo por poetas; está provado que, apesar de fantásticos e
sonhador são ainda os mais hábeis contadores de história e inventores de
imagens. A vida, por exemplo, comparada a um banquete é ideia felicíssima. Cada
um de nós tem ali o seu lugar; uns retiram-se logo depois da sopa, outros do
coup du milieu, não raros vão até à sobremesa. Tem havido
casos em que o conviva se deixa estar comi bebido, e
sentado. É o que os noticiários chamam macróbio, quando a pessoa é mulher, por
uma dessas liberdades que toda gente usa com a língua, macróbia. Felizes esses!
Não que o banquete seja sempre uma delícia. sopas execráveis, peixes podres e
não poucas vezes esturro. Mas, u vez que a gente se deixou vir para a mesa,
melhor é ir farto dela para não levar saudades. Não se sente a marcha; vai-se
pelos pés dos outros. Houve desses retardatários, Moltke esteve prestes a
sê-lo, Gladstone creio que acaba por aí, como os nossos Saldanha Ma nho e
Tamandaré. Deus os fade a todos!
Imaginemos um homem que haja nascido com o século e
mor com ele. Vítor Hugo já o achou com Dois anos (ce siècle avait de ans) e
pode ser que contasse viver até o fim; não passou da casa d oitenta. Mas Heine,
que veio ao mundo no próprio dia 1 de janeiro de 1800, bem podia ter vivido até
1899, e contar tudo o que passou no século, com a sua pena mestra de humour...
Oh! página imortaI! Assistir à Santa Aliança e à dinamite! Vir do legitimismo
ao anarquismo, parando aqui e ali na liberdade, eis aí uma viagem interessante
de dizer e de ouvir. Revoluções, guerras, conquistas, uma infinidade de
constituições, grande variedade de calças, casacas chapéus, escolas novas,
novas descobertas, ideias, palavras, dança livros, armas, carruagens, e até
línguas... Viver tudo isso, e referi-lo século XX, grande obra, em verdade.Deus
ou a paralisia não o quis. Heine notaria, melhor que ninguém o advento do
anarquismo, se é certo que este governo inédito te de sair à luz com o fim do
século. Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio com
o anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclusões! Nem todas
seria cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ciência ficam razões
sólidas com que afirmam a marcha ascendente para a perfeição. Os poetas variam;
ora crêem no paraíso, ora no inferno, com ,esta particularidade que adotam o
pior para expô-lo em versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em
bonita prosa. Mas, como ia dizendo, no banquete da vida... Leve-me o diabo se
sei a que é que vinha este banquete. Talvez para notar que a distribuição dos
lugares põe a gente, às vezes, ao pé de maus vizinhos, em cujo caso não há mais
poderoso remédio que descansar do paradoxo da esquerda na banalidade da
direita, e vice-versa. Se a ideia não foi essa, então foi dizer que a crônica é
prato de pouca ou nenhuma resistência, simples molho branco. Ideia velha, mas
antes velha que nada. Uns fazem a história pela ação pessoal e coletiva, outros
a contam ou cantam pela tuba canora e belicosa... Tuba canora e belicosa é
expressão de
poeta - de Camões, creio. A crônica é frauta rude ou
agreste avena do mesmo poeta.
Vivam os poetas!
Não me acode outra gente para coroar este ano que
nasce.
Quanto ao que morre, 1893, não vai sem pragas nem
saudades, como os demais anos seus irmãos, desde que há astronomia e
almanaques. Tal é a condição dos tempos, que são todos duros e amenos, segundo
a condição e o lugar. Se esta banalidade da direita lhe parece cansativa,
volte-se o leitor para a esquerda, e ouvirá algum paradoxo que o descanse dela
- este, por exemplo, que o melhor dos anos é o pior de todos. Toda a questão
(lhe dirá a esquerda) está em definir o que seja bom ou mau. Por exemplo, a
guerra é má, em si mesma; mas a guerra pode ser boa, comparada com o
anarquismo. Se este vier, 1893, tu haverás sido uma das suas datas históricas,
pelos golpes que deste, pelo princípio de sistematização do mal. Que será o
mundo contigo? Não consultemos Xenofonte, que, ao ver as trocas de governo nas
repúblicas, monarquias e oligarquias, concluía que o homem era o animal mais
difícil de reger, mas, ao mesmo tempo, mirando o seu herói e a numerosa gente
que lhe obedecia, concluía que o animal de mais fácil governo era o homem. Se
já por essa noite dos tempos fosse conhecido o anarquismo, é provável que a
opinião do historiador fosse esta: que, embora péssimo, era um governo ótimo. A
variedade dos pareceres, a sua própria contradição, tem a vantagem de chamar
leitores, visto que a maior parte deles só lê os livros da sua opinião. É assim
que eu explico a universalidade de Xenofonte. Não me atribuam desrespeito ao
escritor; isto é rir, para não fazer outra cousa que deixe de aliviar o baço.
Em todo caso, antes gracejar de um homem finado há tantos séculos, que estrear
já o carnaval com este imenso calor, como fez ontem lima associação. Agora tu,
Terpsícore, me ensina ...
QUEM SERÁ esta cigarra que me acorda todos os dias
neste verão do diabo - quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro
que me matasse tanto? Um amigo meu conta-me cousas terríveis do verão de
Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo
vai para as redes. Aqui não há rede, não há descanso, não há nada. Este tempo
serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que
dizer a pessoas que conhecem pouco e são obrigadas a vinte ou trinta minutos de
bond Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas,
quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que pessoa passa bem de
saúde, a despeito da temperatura. Custa-me a suportar o calor, mas de saúde
passo maravilhes mente bem. Não sei se é isso que me diz todas as manhãs a tal
cigarra. Seja que for, é sempre a mesma cousa, e é notícia d'alma, porque é
dita com um grau de sonoridade e tenacidade que excede os maior exemplos de
gargantas musicais, serviçais e rijas. A minha memória que nunca perde essas
ocasiões, recita logo a fábula de Lã Fontai e reproduz a famosa gravura de
Gustavo Doré, a bela moça da rã ca, que o inverno veio achar com a rabeca na
mão, repelida p uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o
quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando
as figuras e contemplando os versos.
Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio,
relógio certo cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra u
concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça colijo os
trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito dossel da cama ou as
tábuas do teto. Às vezes fito um quintal Roma, de onde algum velho galo acorda
o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu
não serei o me míssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim
sucede ao sono. Subo então pela Via Appia, dobro a Rua do Ouvidor, e barro com
Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um manescente da Companhia Geral.
Segue-se a vez de um passarinho que me canta no jardim, depois outro, mais
outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da
cama e abro a janela Bom dia, belo sol! Já vejo as guias torcidas dos teus
magníficos bigodes de ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que reco tais o
céu azul, e tu, locomotiva do Corcovado, que trazes o sibilo da indústria
humana ao concerto da natureza, bom dia! Pregão d indústria, tu, "duzentos
contos, Paraná, último de resto!", recebo também a minha saudação. Que és
tu, senão a locomotiva da Fortuna? Tempo houve em que a gente ia dos arrabaldes
à casa do João Pedro da Veiga, Rua da Quitanda, comprar o número da esperança
Agora és tu mesmo, número solícito, que vens cá ter aos arrabalde como os
simples mascates de fazendas e os compradores de garrafa vazias. Progresso quer
dizer concorrência e comodidade. Melhor que eu compre a riqueza a duas pessoas,
à porta de minha casa, d que vá comprar à casa de uma só, a Dois tostões de
distância.
Eis aí começam a deitar fumo as chaminés vizinhas;
tratam do café ou do almoço. Na rua passa assobiando um moleque, que fa lembrar
aquele chefe do ministério austríaco, a que se referiu quinta feira, na Gazeta
de Notícias, Max Nordau. Ouço também uma cantiga, um choro de criança, um bond,
os prelúdios de alguma cousa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando
todos os seus erres sem effes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar
transparente. Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e
que eu te ouça, amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do
mesmo verão, que já sobe a cinqüenta pessoas diárias. Disseram-mo, eu não me
dou ao trabalho de contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela
freqüência dos carros de defuntos que encontro, quando volto para casa e eles
voltam do cemitério, com o seu aspecto fúnebre e os seus cocheiros menos
fúnebres. Não digo que os cocheiros voltem alegres; posso até admitir. para
facilidade da discussão, que tornem tristes; mas há grande diferença entre a
tristeza do veículo e a do automedonte. Este traz no rosto uma expressão de
dever cumprido e consciência repousada, que inteiramente escapa às frias tábuas
de um carro. De mim peço ao cocheiro que me levar, que já na ida para o
cemitério vá francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro
ao canto da boca. Pisque o olho às amas-secas e frescas, e criaturas análogas
que for encontrando na rua; creia que os meus manes não sofrerão no outro
mundo; ao contrário, alegrarse-ão de saber a cara ajustada ao coração, e a
indiferença interior não desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam
com igual passo César e João Fernandes. Ah! enquanto eu ia escrevendo essas
melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo
é mar; ao mar já faltam praias, dizia Ovídio por boca de Bocage. Aqui o dilúvio
é de claridade; mas uma claridade cantante, porque a cigarra não cessa,
continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o som no espetáculo. Como há pouco,
na cama, miro a cantiga e ouço o clarão. Se todos estes dias não fossem isto
mesmo, eu diria que era a comemoração da chegada dos três Reis.
Essa festa popular, não sei se perdurará no interior;
aqui morreu há muitos anos. Cantar os Reis era uma dessas usanças locais, como
o presepe, que o tempo demoliu e em cuias ruínas brotou a árvore do Natal,
produção do norte da Europa, que parece pedir os gelos do inverno. O nosso
presepe era mais devoto, mas menos alegre. Durava, em alguns lugares, até o dia
de Reis. A cantiga da festa de ontem era a mesma em toda a parte.
Ó de casa, nobre gente,
Acordai, e ouvireis,
E o resto, que pode parecer simplório e velho, mas o
velho foi moço e o simplório também é sinal de ingênuo.
QUANDO EU Li que este ano não pode haver carnaval na
rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Morno
for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de
1'homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é
público, universal, inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre
coxo Vulcano. Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos
chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com
os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ri roupas de veludo e cetim.
A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça,
que dispensa agora os cole e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer
que pega; p ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas?
Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que
vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo
traje; mas pouco a pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas,
conchas, pedras ver e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto,
em q as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha,
era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se
inaugurou com chapéus altos em toda a par nas portas, vidraças, balcões,
cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela,
não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e
formas variadíssimas. Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe
não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos
remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí.
Montaigne é de parecer que não fazemos m que repisar as mesmas cousas e andar
no mesmo círculo; e o Eci siastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi,
é o que há vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum
dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando
muito, nos bailes, um simulacro de gibus para ped com graça uma quadrilha ou
uma pólca. Oh! a polca das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a
polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar
às trevas, últimos deus ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do
infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu De derruba! Como se
disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar idade da miçanga?
Naturalmente com os trajes de hoje.
A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um
artigo, em que dirá: Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os
nossos leitores a Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é
evidente, mas violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando
possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao
corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas falsas. Tudo é obra do
orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis
mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma
ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem
sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no
nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, vara dar uma ideia
viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, Dois
homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos
redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os
tempos. Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e
repetir os ditos do Eciesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse
tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes,
para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco,
não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me
disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que,
apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa.
Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que
disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provai
nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha;
também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes
dias não fez mais que açular a canícula.
De resto, a morte escreveu esta semana em suas
tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva,
um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do
que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto
particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde,
e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão
os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o
merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com
ilustres. Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição
deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo
jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma...
Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu
ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao
carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não
termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e
viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.
ESCREVO com o pé no estribo. É um modo de dizer que
talvez esteja prestes a mudar de clima. Para onde, não sei. Se consultasse o
meu desejo, iria para a ilha da Trindade. Pelo que leio, foi um cidadão
norte-americano, casado com uma linda moça de New York, que entrou pela ilha
dentro, não achou viva alma, tomou conta do território e trata de colonizá-lo.
Dizem as notícias que a ilha será um principado, e já tem o seu brasão; um
triângulo de ouro com uma coroa ducal. Dizem mais que o posseiro já embarcou
para a Europa, a fim de ser reconhecido pelas potência. Justamente o contrário
do que eu faria; mas se os gostos fossem iguais, já não haveria mundo neste mundo.
Eu, entrando que fosse na ilha, começava por não sair
mais dela; far-me-ia rei sem súbditos. Ficaríamos três pessoas, eu, a rainha um
cozinheiro. Mais tarde, poetas e historiadores concordariam e dizer que as três
pessoas da ilha é que deram ocasião ao título desta diferença é que os poetas
diriam a cousa em verso, sem documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa
com documentos. Entre tanto, não só o título é anterior, como não haveria em
mim a menor intenção simbólica.
Rei sem súbditos! Oh! sonho sublime! imaginação única!
Rei se ter a quem governar, nem a quem ouvir, nem petições, nem aborrecimentos.
Não haveria partido que me atacasse, que me espiasse, que me caluniasse, nem
partido que me bajulasse, que me beijasse os pé que me chamasse sol radiante,
leão indómito, cofre de virtudes, e a vida do universo. Quando me nascesse uma
espinha na cara, não
haveria uma corte inteira para me dizer que era uma
flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite;
nenhum, mais engenhoso que os outros, acrescentaria: "Senhor, natureza
também tem as suas modas". Se eu perdesse um pé, na teria o desprazer de
ver coxear os meus vassalos. Entretanto, para que a mentira não se pudesse
supor exilada do meu reino, eu ensinaria à rainha e ao cozinheiro uma geografia
nova; dir-lhes-ia que a terra era um pão de açúcar, ou uma pirâmide, par ser
mais egípcio, e que a minha ilha era o cume da pirâmide. Tudo mais estava
abaixo. O sol não era propriamente um sol, mas um mensageiro que me traria todos
os dias as saudações da parte inferi da terra. As estrelas, suas filhas,
incumbidas de velar-me à noite eram as aias destinadas unicamente ao rei da
Trindade.
- Mas também em New York há estrelas e na Virgínia, e
n Califórnia, diria a rainha da Trindade durante as primeiras lições.-
Jasmim-do-cabo (este é o nome que eu lhe daria), jasmim-do-cabo e do meu
coração, as estrelas de New York, da Califórnia e Virgínia não são filhas do
sol, mas enteadas. Hás de saber que o s é casado em segundas núpcias com a lua,
que lhe trouxe todas e filhas que operam lá embaixo. As daqui são filhas dele
mesmo; são as de raça pura e divina. E eu acabaria crendo nos meus próprios
sonhos, que é a vantagem deles, e a mais positiva do mundo. Prova disso é a
notícia da moratória dada esta semana a um comerciante, por credores de cerca
sete mil contos. Foi tal o efeito que isto produziu em mim, que entrei a
supor-me devedor de sete, de dez, de vinte mil contos. Comecei por uma pontinha
de inveja; não pela moratória, que para mim seria indiferente; com ela ou sem
ela, o principal é dever tantos mil contos de réis. As pequenas dívidas são
aborrecidas como moscas. As grandes, logicamente. deviam ser terríveis como
leões, e são mansíssima.
Cri-me devedor dos sete mil contos, tanto mais feliz
quanto q não lidara com dinheiros tão altos. Este sonho, que afligiria a
espíritos menos sublimes, para mim foi tal que se converteu em realidade e não
pude acabar de crer que não devia nada, quando o meu cria me quis provar hoje
de manhã que todas as minhas pequenas contas estavam pagas. As pequenas, creio;
mas as grandes? Sim, eu de ainda, pelo menos uns cinco mil contos. Que não
possa dever vinte mil! Quem não prefere ser devedor de vinte mil
contos, a ser credor de quatro patacas? Demais, tenho
veneração aos grandes números. Acho que a marcha da civilização explica-se pelo
crescimento numeroso dos séculos. Que podia ser o século IV em comparação com o
século XIX? Que poderá ser o século XIX, em comparação com o século
MDCCCXXXVIII? O maior número implica maior perfeição. Vede o obituário. À
medida que vai crescendo, deixa de ser a lista vulgar dos outros dias: impõe,
aterra. Já é alguma cousa morrerem ara mais de cento e setenta pessoas. Podemos
chegar a duzentas e a trezentas. Certamente não é alegre; há espetáculos mais
joviais, leituras mais leves; mas o interesse não está na leveza nem na
alegria. A tragédia é terrível, é pavorosa, mas é interessante. Depois, se é
verdade que os mortos governam os vivos, também o é que os vivos vem dos mortos.
Esta outra ideia é banal, mas não podemos deixar reconhecer que os alugadores
de carros, os cocheiros, os farmacêuticos, os físicos (para falar à antiga), os
marmoristas, os escrivães, os juízes, alfaiates, sem contar a Empresa
Funerária, ganham com o que os outros perdem. Ex fumo dare lucem.
Mas deixemos números tristes, e venhamos aos alegres.
O dos concorrentes literários da Gazeta é respeitável. Por maior que seja a
lista os escritos fracos, certo é que ainda ficou boa soma de outros, e dos
vencidos ainda os haverá que pugnem mais tarde e vençam. Bom é e, no meio das
preocupações de outra ordem, as musas não tenham perdido os seus devotos e
ganhem novos. Magalhães de Ázeredo, que ficou à frente de todos, pode servir de
exemplo aos que, tendo talento ele, quiserem perseverar do mesmo modo. Vivam as
musas! belas moças antigas não envelhecem nem desfeiam. Afinal é o à mais firme
debaixo do sol.
QUE se anunciou a batalha do dia 13, recolhi-me à
casa, disposto a não aparecer antes de tudo acabado. Convidaram-me a subir a os
morros, onde o perigo era muito menor que o sol; mas o sol grande. Nem a vista
dos homens que passavam, desde manhã, com óculos e Binóculos, me animou a ir
também ver a batalha. A preguiça ajudou o temor, e ambos me ataram as pernas. Em
casa, ocorreu-me que podia ter a visão da batalha, sem sol nem diga. Era
bastante que me ajudasse o gênio humano com o seu poder divino. A história, por
mais animada que fosse, não sei se me daria a própria sensação da cousa. A
poesia era melhor; Homero, por exemplo, com a Ilíada. Nada mais apropriado que
este poema. Troia, um campo entre a cidade e os navios, e no campo e nos avios
as tropas gregas. Aqui as fortalezas e as balas formariam o campo. Ouço uma
objeção. A pólvora não estava inventada no tempo de mero. É certo; mas também é
certo que outras cousas havia no tempo de Homero, que totalmente se perderam.
Nem eu pedia mais que a vista da realidade por sugestão da poesia. Ao meio-dia,
troando os primeiros tiros, abri o poeta. Pouco a pouco fui mergulhando na ação
cantada. As pancadas que os cocheiros de bonds davam com os pés, para instigar
as multas, cansadas de puxar tanta gente, )a me pareciam o tumulto dos carros
dos guerreiros. Percebi o efeito da leitura. Quando o meu criado me levou ao
gabinete uma cajuada, cuidei que era a deusa Hebe que me servia uma taça de
néctar, e disse:
- Hebe divina, graças à tua excelsa bondade, vou
apreciar esta delícia, desconhecida aos homens.
José Rodrigues, com espanto de si mesmo, retorquia-me:
- Tu és já um deus, tu estás no próprio Olimpo, ao
lado de Júpiter.
Vi que era assim mesmo. Mas, em vez de entrar na luta
dos homens,- como os outros deuses, meus colegas, deixei-me estar mirando o
furor dos combates, o retinir das lanças nos broquéis, o estrondo das armaduras
quebradas, o sangue que corria dos peitos, das pernas e dos ombros, os homens
que morriam e as vozes grandes de todos. Era belo ver os deuses intervindo na
pugna, disfarçados em pessoas da terra, desviando os golpes de uns, guiando a
mão de outros, cobrindo a estes com uma nuvem opaca, fazê-los sair do campo,
falando, animando, descompondo, se era preciso. Os seus próprios ardis eram
admiráveis.
De quando em quando, a memória e o ouvido juntavam-se
à leitura, e a realidade ia de par com a ficção. Assim no momento em que Marte,
lanceado por Diomedes, volta ao céu, onde Paeon lhe deita um bálsamo
suavíssimo, na ferida, que o faz sarar logo, veio-me à lembrança a notícia lida
naquela manhã de estarem fechadas todas as farmácias da cidade, menos a do Sr.
Honório Prado. Depois, quando o capacete de Agamenon recolhe os sinais dos
guerreiros, o arauto os agita, e, tira-se à sorte qual será o valente que terá
de lutar com Heitor, ouvi, lembro-me bem que ouvi uma voz conhecida na rua:
"Um resto! vinte contos!" Tudo, porém, se confundia na minha
imaginação; e a realidade presente ou passada era prontamente desfeita na
contemplação da poesia.
Todos os guerreiros me apareciam, com as armas
homéricas, rutilantes e fortes, com os seus escudos de sete e oito couros de
boi, cobertos de bronze, os arcos e setas, as lanças e capacetes. Agamenon, rei
dos reis, o divino Aquiles, Diomedes, os Dois Ájax, e tu, artificioso Ulisses,
enfrentando com Heitor, com Enéias, com Páris, com todos os bravos defensores
da santa Ílion. Via o campo coalhado de mortos, de armas, de carros. As
cerimônias do culto, as libações e os sacrifícios vinham temperar o espetáculo
da cólera humana; e, posto que a cozinha de Homero seja mais substancial que
delicada, gostava de ver matar um boi, passá-lo pelo fogo e comê-lo com essa
mistura de mel, cebola, vinho e farinha, que devia ser muito grata ao paladar
antigo.
A ação ia seguindo, com a alternativa própria das
batalhas. Ora perdia um, ora outro. Este avançava até à praia, depois recuava,
terra dentro. O clamor era enorme, as mortes infinitas. Heróis de ambos os
lados caíam, ensopados em sangue. O terror desfazia as linhas, a coragem as
recompunha, e os combates sucediam aos combates. Eu, do Olimpo, mirava tudo,
tudo tranqüilo como agora que escrevo isto. Minto; não podia esquivar-me à
comoção dos outros deuses. Assim, quando Pátroclo, vendo os seus quase
perdidos, saiu a combater co-rn as armas de Aquiles, senti a grandeza do
espetáculo; mas nem esse nem outro gosto algum pode ser comparado ao que me deu
o próprio Aquiles, quando soube que o amigo morrera às mãos de Heitor.
Vi, ninguém me contou, vi as lágrimas e a fúria do
herói. Vi-o sair com as novas armas que o próprio Vulcano fabricou para ele;
vi, depois, ainda novos e terríveis combates. No mais renhido deles, desceram
todos os deuses e dividiram-se entre os exércitos, conforme as suas simpatias.
Só ficamos Júpiter e eu. E disse-me o rei dos deuses:
- Anônimo (chamo-te assim, porque ainda não tens nome
no céu), contempla comigo este quadro não menos deleitoso que acerbo. Até os
rios buscaram combater Aquiles; mas o filho de Peleu vencerá a todos. Não direi
o que vi, nem o que ouvi; teria de repetir aqui uma interminável história. Foi
medonho e belo. Os deuses, mais que nunca, ajudavam os homens. Momento houve em
que eles próprios combateram uns com outros, entre grandes palavradas, cão,
cadela, e muito murro, muita pedrada, uma luta de raivas e despeitos. Enfim,
Aquiles matou Heitor. Jamais esquecerei as lamentações das mulheres troianas.
Assisti depois às festas da vitória, corridas a cavalo e a pé, o disco e o
pugilato. Eram seis horas da tarde, quando me chamaram para jantar. Pessoas
vindas dos morros próximos contaram que não houvera batalha nenhuma; desmenti
esse princípio de balela, referindo tudo o que vira, que foi muito, longo e
áspero. Não me deram crédito. Um insinuou que eu tinha o juízo virado. Outro
quis fazer-me crer que a fogueira em que ardiam os restos de Heitor, era um
simples incêndio na ilha das Cobras. Os jornais estão de acordo com os meus
contraditores; mas eu prefiro crer em Homero, que é mais velho.
A SEMANA foi santa - mas não foi a semana santa que eu
conheci, quando tinha a idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai.
Deus meu! Há pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que
fazem a barba, que namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante,
nasceram depois da batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa
fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar
com a eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de López,
andam muito mais depressa. Antigamente tinham o andar próprio de uma quadra em
que as notícias de Ouro Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de
Janeiro. Ia-se a São Paulo por Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de
Direito desciam a serra de Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio.
Que digo? Ca houve em que vieram unicamente assistir à primeira representação
um apeça de teatro. Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te Sisenando
Nabuco? Não respondem; creio que estão mortos. Aí vou escorrendo para o
passado, cousa que não interessa no presente. O passado que o jovem leitor há
de saborear é o presente lá para 1920, quando os relógios e os almanaques
criarem asas. Ei tão, se ele escrever nesta coluna, aos domingos, será
igualmente insípido com as suas recordações. Tempo houve (dirá ele) em que o
primeiro Frontão da Rua do Ouvidor descendo, à esquerda, perto da Rua de
Gonçalves Dias, era uma confeitaria, Confeitaria Pascoal. Este nome, que
nenhuma comoção produz na alma do rapaz nascido com o século, acorda em mim
saudades vivíssimas. A casa mesma rua, esquina da dos Ourives, onde ainda ontem
(perdoem ao guloso) comprei um excelente paio, era uma casa de jóia,
pertencente a um italiano, um Faràni, Cesar Farâni, creio, na qual passei horas
excelentes. Fora, for memórias importunas!
Assim poderá escrever o leitor, em 1920, nesta ou
noutra coluna para os jovens desse ano não será menos aborrecido. Mas, por isso
mesmo que os há de enfadar, deixe-me enfadá-lo um pouco, repetindo que a semana
santa que acabou ontem ou acaba hoje não é a semana santa anterior à passagem
do Passo da Pátria ou ao último ministério Olinda. As semanas santas de outro
tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O Domingo de Ramos valia por
três. As palmas que traziam das igrejas eram muito mais verdes que as de hoje,
mais melhor. Verdadeiramente já não há verde. O verde de hoje é um amarelo
escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não longas; não sei se
percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem vazias. Raiava,
porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de cerimônias, e de
ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o sábado de aleluia, em que a
alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a chave de ouro.
Tenho mais critério que meu sucessor de 1920; não quero
matá-lo com algumas notícias que ele não há de entender. Como entender, depois
da passagem de Humaitá, que as procissões do enterro, uma de São Francisco de
Paula, outra do Carmo, eram tão compridas que não acabavam mais? Como
pintar-lhe os andores, as filas tochas inumeráveis, as Marias Behús, segundo a
forma popular, centurião, e tantas outras partes da cerimônia, não contando as
janelas das casas iluminadas, acolchoadas e atapetadas de moças bonitas - moças
e velhas - porque já naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas.
Tudo era da idade e da cor das palmas verde. A velhice
é uma ideia recente. Data do berço de um menino que vi nascer com o ministério
Sinimbu. Antes deste - ou mais exatamente, antes do ministério Rio Branco -
tudo era juvenil no mundo, não juvenil de passagem, mas perpetuamente juvenil.
As exceções que eram raras, vinham confirmar a regra.
Não entenderíeis nada. Nem sei se chegareis a entender
o que sucedeu agora, indo ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando
de todo o sermão da montanha eu só conhecia o padre-nosso, a impressão que
recebia era mui particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver
as luzes, de ouvir os cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o
turíbulo. Entrei na igreja. A gente não era muita; sabe-se que parte da
população está fora daqui. Metade dos fiéis ali presentes eram senhoras, e
senhoras de chapéu. Nunca. me esqueceu o escândalo
produzido pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais dias;
escândalo sem tumulto, nada mais que murmuração. Mas o costume venceu a
repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão. Algumas senhoras rezavam por
livros, outras desfiavam rosários, as restantes olhavam só ou rezariam
mentalmente. Não quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e
que, em criança, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra
cousa, salvo o curto período em que o vi no coro da defunta ópera Nacional. Que
idade teria?
Sessenta, setenta, oitenta...
Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação
deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a
levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga.
E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e
ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios,
disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.
- Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está
o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os
consolava.
- Bem-aventurados os que choram, porque eles serão
consolados. - Vede a injustiça do mundo. "Nem sempre o prêmio é dos que
melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e
casualidade."
- Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque eles serão fartos.
- Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos,
aos quais provêm males...
- Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da
justiça, porque deles é o reino do céu.
E assim por diante. A cada palavra de lástima
respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me
aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo
com o povo. E o sermão continuava. Bem aventurados os pacíficos. Bem-aventurados
os mansos...
ENFIM! Vai entrar em discussão no Conselho Municipal o
projeto que ali apresentou o Sr. Dr. Capelli, sobre higiene. Ainda assim, foi
preciso que o autor o pedisse, anteontem. Já tenho lido que o Conselho trabalha
pouco, mas não aceito em absoluto esta afirmação. Conselho Municipal ou Câmara
Municipal, a instituição que dirige os serviços da nossa velha e boa cidade,
foi sempre objeto de censuras, às vezes com razão, outras sem ela, como aliás
acontece todas as instituições humanas. Trabalhe pouco ou muito, é de estimar
que traga para a discussão o projeto do Sr. Dr. Capelli. Se ele não resolve
totalmente a questão higiênica, nem a isso se propõe, pode muito bem resolvê-la
em parte. Não entro no exame dos seus diversos artigos; basta-me o primeiro. 0
primeiro artigo estabelece concurso para a nomeação dos comissários de higiene,
que se chamarão de ora avante inspetores sanitários. É discutível a ideia do
concurso. Não me parece claro que melhore o serviço, e pode não passar de
simples ilusão. O artigo, porém, dispõe, como ficou dito, que os comissários de
higiene se chamem de ora avante inspetores sanitários, e essa troca de um nome
para outro é meio caminho andado para a solução. Os nomes velhos ou gastos
tornam caducas as instituições. Não se melhora verdadeiramente um serviço
deixando o mesmo nome aos seus oficiais. É do Evangelho, que não se põe remendo
novo em pano velho. O pano aqui é a denominação. O próprio Conselho Municipal
tem em si um exemplo do que levo dito. Câmara Municipal não era mau nome, tinha
até um ar democrático; mas estava puído. O nome criou a personagem da cousa, e
a má fama levou consigo a obra e o título. Conselho Municipal, sendo nome
diverso, exprime a mesma ideia democrática, é bom e é novo. Outro exemplo, e de
fora. Sabe-se que a Câmara dos Lords está arriscada a descambar no ocaso, ou a
ver-se muito diminuída. Não duvido que os seus últimos atos tenham dado lugar à
guerra que lhe movem, com o próprio chefe do governo à frente, se é certo o que
nos disse há pouco um telegrama. Mas quem sabe se, trocando oportunamente o
título, não teria ela desviado o golpe iminente, embora ficasse a mesma cousa,
ou quase?
Conta-se de um homem (creio que já referi esta
anedota) que não podia achar bons copeiros. De Dois em Dois meses, mandava
embora o que tinha, e contratava outro. Ao cabo de alguns anos chegou ao
desespero; descobriu, porém, um meio com que resolveu a dificuldade. O copeiro
que o servia então, chamava-se José. Chegado o momento de substituí-lo,
pagou-lhe o aluguel e disse:
- José, tu agora chamas-te Joaquim. Vai pôr o almoço,
que são horas.
Dois meses depois, reconheceu que o copeiro voltava a
ser insuportável. Fez-lhe as contas, e concluiu:
- Joaquim, tu passas agora a chamar-te André. Vai lá
para dentro.
Fê-lo João, Manuel, fê-lo Marcos, fê-lo Rodrigo,
percorreu toda a onomástica latina, grega, judaica, anglo-saxônia, conseguindo
ter sempre o mesmo ruim criado, sem andar a buscá-lo por essas ruas.
Entendamo-nos; eu creio que a ruindade desaparecia com a investidura do nome, e
voltava quando este principiava a envelhecer. Pode ser também que não fosse
assim, e que a simples novidade do nome trouxe ao amo a ilusão da melhoria. De
um ou de outro modo, a influência dos nomes é certa. Por exemplo, quem ignora a
vida nova que trouxe ao ensino da infância a troca daquela velha tabuleta
"Colégio de Meninos" por esta outra "Externato de Instrução
Primária"? Concordo que o aspecto
científico da segunda forma tenha parte no resultado;
antes dele, porém, há o efeito misterioso da simples mudança. Mas eu vou mais
longe. Vou tão longe, que ouso crer nas reabilitações históricas, unicamente ou
quase unicamente pelo alteração do nome das pessoas. O atual processo para
esses trabalhos é rever os documentos, avaliar as opiniões, e contar os fatos,
comparar, retificar, excluir, incluir, concluir. Todo esse trabalho é inútil,
se não trocar o nome por outro. Messalina, por exemplo. Esta imperatriz chegou
à celebridade do substantivo, que é a maior a que pode aspirar uma criatura real
ou fingida: uma messalina, um tartufo. Se quiserdes tirá-la da lama histórica,
em que ela caiu, não vos bastará esgravatar o que disseram dela os autores;
arranca-lhe violentamente o nome. Chama-lhe Anastácia. Quereis fazer uma
experiência? Pegai em Suetônio e lede com o nome de Anastácia tudo o que ele se
refere de Messalina; é outra cousa. O asco diminui, o horror
afrouxa, o escândalo desaparece; e a figura emerge,
não digo para o céu, mas para uma colina. Em história, o ocupar uma colina é
alguma cousa. Gregorovius, como outros autores deste século, quis reabilitar
Lucrécia Bórgia; acho que o fez, mas esqueceu-se de lhe mudar o nome, e toda
gente continua a descompô-lo em prosa com Vítor Hugo, ou em verso e por música
com Donizetti.
Voltando aos comissários de higiene, futuros
inspetores sanitários, repito que o serviço melhorará muito com essa alteração
do título, e não é pouco. Mas é preciso que, sem dizê-lo na lei, nem no
parecer, nem nos debates, fiquem todos combinados em alterar periodicamente o
título, desde que o serviço precise reforma. Não me compete lembrar outros, nem
me ocorre nenhum. Digo só que, passados mais quatro ou cinco títulos, não será
má política voltar ao primeiro. Os nomes têm, às vezes, a propriedade de criar
pele nova, só com o desuso ou descanso. Comissário de higiene, que vai ser
descalçado agora, desde que repouse alguns anos, ficará com sola nova e tacão
direito. Assim acontecesse aos meus sapatos!
QUINTA-FEIRA à tarde, pouco mais de três horas, vi uma
cousa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica.
Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto
que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe.
Releve-me a impertinência; os gostos não são iguais. Entre a grade do jardim da
Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos
trilhos de bonds, estava uni burro deitado. O lugar não era próprio para
remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes
depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio
corpo. Os nossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando
em quando. O infeliz cabeceava, mas tão frouxamente, que parecia estar próximo
do fim. Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo,
não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que
é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena
ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta. receba daqui
um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava para
outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal.
Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de
dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer
meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da
anca. Diga-se a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram
poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se
há justiça na terra, valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu
fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. O que me pareceu, é que o burro
fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água,
tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e
profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o
fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a
causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do
pensamento, não há dúvida que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame
da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali
gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras
escritas, más ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
"Por mais que vasculhe a consciência, não acho
pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não
ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três couces, foi o mais,
isso mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do
verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quanto ao zurro, usei dele como
linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar
por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no
chão. Quando passei do tílburi ao bond, houve algumas vezes homem morto ou
pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o
cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a autoridade.
"Passando à ordem mais elevada de ações, não acho
em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública.
Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que,
não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não
existem. Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os
abrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em
conta os interesses dá minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau.
O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima, que é, em resumo, o
meu único defeito. Quando não teimava, mordia freio, dando assim um bonito
exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas;
bastava sentir o freguês o tílburi ou o apito do bond, para sair logo. Até aqui
os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei. "A mais de uma
aventura amorosa terei servido, levando depressa tílburi e o namorado à casa da
namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bond podia
mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para
longede um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia
que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos.
Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria
fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio dele, deixando que me desse tapas e
punhadas na cara. Enfim... " Não percebi o resto, e fui andando, não menos
alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza
de que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos
os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam,
não seriam menos exemplares que esse. Por que se não investigará mais
profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao
homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas
instituições políticas são superiores às nossas, mais
racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro,
achei o animal já morto. Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver,
espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De
tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem
exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora,
também não inventou a dinamite. Já é alguma cousa neste final de século.
Requiescat in pace.
ONTEM DE MANHÃ, indo ao jardim, como de costume, achei
lá um burro. Não leram mal, não, meus senhores, era um burro de carne e osso,
de mais osso que carne. Ora, eu tenho rosas no jardim, rosas que cultivo com
amor, que me querem bem, que me saúdam todas as manhãs com os seus melhores
cheiros, e dizem sem pudor cousas mui galantes sobre as delícias da vida,
porque eu não consinto que as cortem do pé. Hão de morrer onde nasceram. Vendo
o burro naquele lugar, lembrei-me de Lucius, ou Lucius da Tessália, que, só com
mastigar algumas rosas, passou outra vez de burro a gente. Estremeci, e
confesso a minha ingratidão - foi menos pela perda das rosas, que pelo terror
do prodígio. Hipócrita, como me cumpria ser, saudei o burro com grandes
reverências, e chamei-lhe Lucius. Ele abanou as orelhas, e retorquiu:
- Não me chamo Lucius.
Fiquei sem pinga de sangue; mas para não agravá-lo com
demonstrações de espanto, que lhe seriam duras, disse:
- Não? Então o nome de Vossa Senhoria.. .?- Também não
tenho senhoria. Nomes só se dão a cavalos, e quase exclusivamente a cavalos de
corrida. Não leu hoje telegramas de Londres, noticiando que nas corridas de
Oaks venceram os cavalos Fulano e Sicrano? Não leu a mesma cousa quinta-feira,
a respeito das corridas de Epsom? Burro de cidade, burro que puxa bond ou
carroça não tem nome; na roça pode ser. Cavalo é tão adulado que, vencendo uma
corrida na Inglaterra, manda-se-lhe o nome a todos os cantos da terra. Não
pense que fiz verso: às vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para
cias, se quisesse; irias não tendo ambições literárias. Falo rimado, porque e
falo poucas vezes, e atrapalho-me. Pois, sim senhor. E sabe de quem é o
primeiro dos cavalos vencedores de Epsom, o que se chama Ladas? É do próprio
chefe do governo, lord Roseberry, que ainda não há muito ganhou com ele deus
mil guinéus.
- Quem é que lhe conta todas essas cousas inglesas?-
Quem? Ali! meu amigo, é justamente o que me traz a seus pós, disse o burro
ajoelhando-se, mas levantando-se, a meu pedido. E continuou: Sei que o senhor
se dá com gente de imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por mim e
por uma classe inteira, que devia merecer alguma compaixão ...
- Justiça, justiça, emendei eu com hipocrisia e
servilismo.
-Vejo que me compreende. Ouça-me; serei breve. Em
regra, só se devia ensinar aos burros a língua do país; mas o finado Greenough
o primeiro gerente que teve a companhia do Jardim Botânico, achou que devia
mandar ensinar inglês aos burros dos bonds. Compreende-se o motivo do ato.
Recém-chegado ao Rio de Janeiro, trazia mais vivo que nunca o amor da língua
natal. Era natural crer que nenhuma outra cabia a todas as criaturas da terra.
Eu aprendi com facilidade...- Como? Pois o senhor é contemporâneo da primeira
gerência?- Sim, senhor; eu e alguns mais. Somos já poucos, mas vamos
trabalhando.
Admira-me que se admire. Devia conhecer os animais de
1869 pela valente decrepitude com que, embora deitando a alma pela boca,
puxamos os carros e os ossos. Há nisto um resto da disciplina, que nos deu a
primeira educação. Apanhamos, é verdade, apanhamos de chicote, de ponta de pé,
de ponta de rédea, de ponta de ferro, mas é só quando as poucas forças não
acodem ao desejo; os burros modernos, esses são teimosos, resistem mais à
pancadaria. Afinal, são moços.
Suspirou e continuou:
- No meio da tanta aflição, vale-nos a leitura,
principalmente de folhas inglesas e americanas, quando algum passageiro as
esquece no bond. Um deles esqueceu anteontem um número do Pruth. Conhece o
Pruth?
- Conheço.
- É um periódico radical de Londres, continuou o
burro, dando à força, a notícia, como um simples homem. Radical e semanal. É
escrito por um cidadão, que dizem ser deputado. O número era o último,
chegadinho de fresco. Mal me levaram à manjedoura, ou cousa que o valha,
folheei o periódico de Labouchère... Chamava-se Labouchère o redator. O
periódico publica sempre em duas colunas notícia comparativa das sentenças
dadas pelos tribunais londrinos, com o fim de mostrar que os pobres e
desamparados têm mais duras penas que os que o não são, e por atos de menor
monta. Ora, que hei de ler no número chegado? Cousas destas. Um tal John Fearon
Bell, convencido de maltratar quatro potros, não lhes dando suficiente comida e
bebida, do que resultou morrer um e ficarem três em mísero estado, foi
condenado a cinco libras de multa; ao lado desse vinha o caso de Fuão Thompson,
que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um mês de cadeia. Outra
comparação. Eliott, acusado de maltratar dezesseis bezerros, cinco libras de
multa e custas. Mary Ellen Connor, acusada de vagabundagem, um
mês de prisão. William Poppe, por não dar comida
bastante a oito cavalos, cinco libras e custas. William Dudd, aprendiz de
pescador, réu de desobediência, vinte e Dois dias de prisão. Tudo mais assim.
Um rapaz tirou um ovo de faisão de um ninho: quatorze dias de cadeia. Um senhor
maltratou quatro vacas: cinco libras e custas.
- Realmente, disse eu sem grande convicção, a
diferença é enorme...
- Ah! meu nobre amigo! Eu e os meus pedimos essa
diferença, por maior que seja. Condenem a um mês ou a um ano os que tirarem
ovos ou dormirem na rua; mas condenem a cinqüenta ou cem mil réis aqueles que
nos maltratam por qualquer modo, ou não nos dando comida suficiente, ou, ao
contrário, dando-nos excessiva pancada. Estamos prontos a apanhar, é o nosso
destino, e eu já estou velho para aprender outro costume; mas seja com
moderação, sem esse furor de cocheiros e carroceiros. O que o tal inglês acha
pouco para punir os que são cruéis conosco, eu acho que é bastante. Quem é
pobre não tem vícios. Não exijo cadeia para-os nossos opressores, mas uma
pequena multa e custas, creio que serão eficazes. O burro ama só a pele; o
homem ama a pele e a bolsa. Dê-se-lhe na bolsa; talvez a nossa pele padeça
menos.
- Farei o que puder; mas ...
- Mas quê? O senhor afinal é da espécie humana, há de
defender os seus. Ela, fale aos amigos da imprensa; ponha-se à frente de um
grande movimento popular. O conselho municipal vai levantar um empréstimo, não?
Diga-lhe que, se lançar uma pena pecuniária sobre os sue maltratam burros, cobrirá
cinco ou seis vezes o empréstimo, sem pagar juros, e ainda lhe, sobrará
dinheiro para o Teatro Municipal, e para teatros paroquiais, se quiser. Ainda
uma vez, respeitável senhor, cuide um pouco de nós. Forarm os homens que
descobriram que nós éramos seus tios, senão diretos, por afinidade. Pois, meu
caro sobrinho, é tempo de reconstituir a família. Não nos abandone, como no
tempo em que os burros eram parceiros dos escravos. Faça o nosso treze de Maio.
Lincoln dos teus maiores, segundo o evangelho de Darwin, expede a proclamação
da nossa liberdade!
Não se imagina a eloqüência destas últimas palavras.
Cheio de entusiasmo, prometi, pelo céu e pela terra, que faria tudo.
Perguntei-lhe se lia o português com facilidade; e, respondendo-me que sim,
disse-lhe que procurasse a Gazeta de hoje. Agradeceu-me com voz lacrimosa, fez
um gesto de orelhas, e saiu do jardim vagarosamente, cai aqui, cai acolá.
QUINTA-FEIRA de manhã fiz como Noé, abri a janela da
arca e soltei um corvo. Mas o corvo não tornou, de onde inferi que as cataratas
do céu e as fontes do abismo continuavam escancaradas. Então disse comigo: As
águas hão de acabar algum dia. Tempo virá em que este dilúvio termine de uma
vez para sempre, e a gente possa descer e palmear a Rua do Ouvidor e outros becos.
Sim, nem sempre há de chover. Veremos ainda o céu azul como a alma da gente
nova. O sol, deitando fora a carapuça, espalhará outra vez os grandes cabelos
louros. Brotarão as ervas. As flores deitarão aromas capitosos.
Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e
tornei depois aos animais que trouxera comigo, à imitação de Noé. Todos eles
aguardavam notícias do fim. Quando souberam que não havia notícia nem fim,
ficaram desconsolados. - Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de
chuva? perguntei-lhes, Vocês aqui estão comigo, dou-lhes tudo; além da minha
conversação, viveis em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros,
gatos e ratos. Que vos importa que chova ou não chova?- Senhor meu, disse-me um
espadarte, eu sou grato, e todos os nossos o são, ao cuidado que tivestes em
trazer para aqui uma piscina, onde podemos nadar e viver - mas piscina não vale
o mar; falta-nos a onda grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em
que nos comemos uns aos outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que
tendes bom coração, mas nós não vivemos do bom coração dos homens. Vamos
comendo, é verdade, mas comendo sem apetite, porque o melhor apetite ...
Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e,
depois de cantar três vezes, como nos dias de Pedro, proferiu esta alocução:
- Pela minha parte, não é a chuva que me aborrece. O
que me aborreceu desde o princípio do dilúvio, foi a vossa ideia de trazer sete
casais de cada vivente, de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, proporção
absolutamente contrária às mais simples regras da aritmética, ao menos as que
eu conheço. Não brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em
tréguas, não por falta de casus belli. Há aqui seis galos de mais. Se os
madássemos procurar o corvo?
Não lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante
enroscando a tromba no surucucu, e o surucucu enroscando-se na tromba do
elefante. O camelo esticava o pescoço, procurando algumas léguas de deserto, ou
quando menos, uma rua do Cairo. Perto dele, o gato e o rato ensinavam histórias
um ao outro. O gato dizia que a história do rato era apenas uma longa série de
violências contra o gato, e o rato explicava que, se perseguia o gato, é porque
o queijo o perseguia a ele. Talvez nenhum deles estivesse convencido. O sabiá
suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o crocodilo palestravam em
família. Cousa digna da atenção do filósofo é quea lagartixa via no crocodilo
uma formidável lagartixa, e o crocodilo achava a lagartixa um crocodilo mimoso;
ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um ambicioso sem gênio (versão
lagartixa) e um presumido do sem graça (versão crocodilo).
- Quando lhe perguntaram pelos avós, observou o
crocodilo, costuma responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo,
o que pode provar com papiros antiquíssimos e autênticos ...
Tendo nascido, concluiu a lagartixa, tendo nascido na
mais humilde fenda de parede, como eu...
Crocodilo de bobagem!
- Notai que ele fala muito do loto e do nenúfar,
refere casos do hipopótamo, para enganar os outros, confunde Cleópatra com o
Khediva, e as antigas dinastias com o governo inglês ...
Tudo isso era dito sem que o lagarto fizesse caso. Ao
contrário, parecia rir, e costeava a parede da arca, a ver se achava algum
calor de sol. Era então sexta-feira, à tardinha. Pareceu-me verpor uma fresta
uma linha azul. Chamei uma pomba e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o
burro, com uma águia pousada na cabeça, ente as orelhas. Vinha pedir-me, em
nome das outras alimarias, que as soltasse. Falou-me teso e quieto, não tanto
pela circunspeção da raça, como pelo medo, que me confessou, de ver fugir-lhe
aáguia, se mexesse muito a cabeça. E dizendo-lhe euque acabava de soltar a
pomba, agradeceu-me e foi andando. Pelas dez horas da noite, voltou a pomba com
lima flor no bico. Era o primeiro sinal de que as águas iam descendo. As águas
são ainda grandes, disse-me a pomba, mas parece que foram maiores. Esta flor
não foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de tinia arca, cheia de
homens, porque há muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma
porção de flores, colhi esta que não é das menos lindas. Examinei a flor; era
de retórica. Nenhum dos animais conhecia til planta. Expliquei-lhes que era uma
flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre a flor de pano e a da
campina. Há de haver alguma academia aí perto, concluí, academia ou parlamento.
Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba,
dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam
inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e
janelas, e despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a
alegria geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava
o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voavam e saltavam
ao mesmo tempo ... Viva o dilúvio! e viva o sol!
O PUNHAL DE MARTINHA
QUEREIS VER o que são destinos? Escutai. Ultrajada por
Sexto Tarqüínio, uma noite, Lucrécia resolve não sobreviver a desonra, mas
primeiro denuncia ao marido e ao pai a aleivosia daquele hóspede, e pede-lhes
que a vinguem. Eles juram vingá-la, e procuram tirá-la da aflição dizendo-lhe
que só a alma é culpada, não o corpo, e que não há crime onde não houve
aquiescência. A honesta moça fecha os ouvidos à consolação e ao raciocínio, e,
sacando o punhal que trazia escondido, embebe-o no peito e morre. Esse punhal
podia ter ficado no peito da heroina, sem que ninguém mais soubesse dele; mas,
arrancado por Bruto, serviu de lábaro à revolução que fez baquear a realeza e
passou o governo à aristocracia romana. Tanto bastou para que Tito Lívio lhe
desse um lugar de honra na história, entre enérgicos discursos de vingança. O
punhal ficou sendo clássico. Pelo duplo caráter de arma doméstica e pública,
serve tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz à eloqüência
política. Bem sei que Roma não é a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade
balaria podem competir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo que
deploro. Essa parcialidade dos tempos, que só recolhem, conservam e transmitem
as 'ações encomendadas nos bons livros, é que me entristece, para não dizer que
me indigna. Cachoeira não é Roma, mas o punhal de Lucrécia, por mais digno que
seja dos encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história, que não fique um
canto para o punhal de Martinha. Entretanto, vereis que esta pobre arma vai ser
consumida pela ferrugem da obscuridade. Martinha não é certamente Lucrécia.
Parece-me até, se bem entendo uma expressão do jornal A Ordem,
que é exatamente o contrário. "Martinha (diz ele)
é uma rapariga franzina, moderna ainda, e muito conhecida nesta cidade, de onde
é natural". Se é moça, se é natural da Cachoeira, onde é muito conhecida,
que quer dizer moderna? Naturalmente quer dizer que faz parte da última leva de
Citera. Esta condição, em vez de prejudicar o paralelo dos punhais, dá-lhe
maior realce, como ides ver. Por outro, lado, convém notar que, se há
contrastes das pessoas, há uma coincidência de lugar: Martinhá mora na Rua do
Pagão, nome que faz lembrar a religião da esposa de Colatino. As circunstâncias
dos Dois atos são diversas. Martinha não deu hospedagem a nenhum moço de sangue
régio ou de outra qualidade. Andava a passeio, à noite, um domingo do mês
passado. O Sexto Tarqüínio da localidade, cristãmente chamado João, corri o
sobrenome de Limeira, agrediu e insultou a moça, irritado naturalmente com os
seus desdéns. Martinha recolheu-se a casa. Nova agressão, à porta. Martinha,
indignada, mas ainda prudente, disse ao importuno: "Não se aproxime, que
eu lhe furo". João Limeira aproximou-se, ela deu-lhe uma punhalada, que o
matou instantaneamente.
Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria.
Esperaríeis o impossível, e mostraríeis que me não entendesses. A diferença das
duas ações é justamente a que vai do suicídio ao homicídio. A romana confia a
vingança ao marido e ao pai. A cachoeirense vinga-se por si própria, e, notai
bem, vinga-se de uma simples intenção. As pessoas são desiguais, mas força é
dizer que a ação da primeira não é mais corajosa que a da segunda, sendo que
esta cede a tal ou qual subtileza de motivos, natural deste século complicado.
Isto posto, em que é que o punhal de Martinha é inferior ao de Lucrécia? Nem é
inferior, mas até certo ponto é superior. Martinha não profere uma frase de
Tito Lívío, não vai a João de Barros, alcunhado o Tito Lívio português, nem ao
nosso João Francisco Lisboa, grande escritor de igual valia. Não quer sanefas
literárias, não ensaia atitudes de tragédia, não faz daqueles gestos oratórias
que a história antiga põe nos seus personagens. Não; ela diz simplesmente e
incorretamente: "Não se aproxime que eu lhe firo". A palmatória dos
gramáticas pode punir essa expressão; não importa, o eu lhe furo traz um valor
natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucrécia. E depois, que
tocante eufemismo! Furar por matar; não sei se Martinha inventou esta aplicação;
mas, fosse ela ou outra a autora, é um achado do povo, que não manuseia
tratados de retórica, e sabe às vezes mais que os retóricas de ofício. Com tudo
isso, arrojo de ação, defesa própria, simplicidade de palavra, Martinha não
verá o seu punhal no mesmo feixe de armas que os tempos resguardam da ferrugem.
O punhal de Carlota Corday, o de
Ravaillac, o de Booth, todos esses e ainda outros
farão cortejo ao punhal de Lucrécia, luzidos e prontos para a tribuna, para a
dissertação, para a palestra. O de Martinha irá rio abaixo do esquecimento,
Tais são as cousas deste mundo! Tal é a desigualdade dos destinos! Se, ao
menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma, nem tal ação,
nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda, que a história meteu
nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de
Martinha, que existiu e existe, não logrará ocupar um lugarzinho ao pé do de
Lucrécia, pura ficção. Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas,
acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o
destino das cousas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria
é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar
acreditando que não há pássaros com asas ... Mas não falemos mais em Martinha.
TEM HAVIDO grandes cercos e entradas da polícia em
casas de jogo. Sistematicamente, a autoridade procura dispersar os
religionários da Fortuna, e trancar os antros da perdição. Esta frase não é
nova, mas o vício também é velho, e não se põe remendo novo em pano velho, diz
a Escritura. Já se jogava no tempo da Escritura; lançaram-se dados sobre a
túnica de Jesus Cristo. Na China, em que há tudo desde muitos milhares de anos,
é provável que o jogo se perca na noite dos tempos. Maomé, que tinha algumas
partes de grande homem, apesar de ser o próprio cão tinhoso, consentiu o uso do
xadrez aos seus árabes, e fez muito bem; é um jogo que não admite quinielas, e,
apesar de ter cavalos, não se dá ao aperfeiçoamento da raça cavalar, como os
vários derbys deste mundo. Antes de ir adiante, deixem-me pôr aqui uma
observação que fiz e me pareceu digna de nota. Compilador do século vinte,
quando folheares a coleção da Gazeta de Notícias, do ano da graça de 1894, e
deres com estas linhas, não vás adiante sem saber qual foi a minha observação.
Não é que lhe atribua nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser
agradável aos meus manes saber que um homem de 1944 dá alguma atenção a uma
velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em
algum livro ou revista: "Um escritor do século XIX achou um caso de cor
local que não nos parece destituído de interesse... ", se fizeres isto,
podes acrescentar como o soldado da canção francesa:
Du haut du ciel, - ta demeure dernière, -
Mon colonel, tu dois être content.
Sim, meu jovem capitão, ficarei contente, desde que te
abençoou, compilador do século vinte; mas vamos à minha observação. A marcha
ordinária da polícia é entrar na casa, apreender a roleta, as cartas, os dados,
multar o dono em quinhentos mil-réis e sair. Enquanto ela entra, os fregueses
escondem-se ou fogem pelos muros ou pelos telhados. O dono da casa raramente
foge; afeito à guerra, sabe que recebeu um balázio, e força é deixar algum
sangue. Quando, porém, acontece serem todos apanhados entre o 10 e o 22, ou
entre a sota e o ás, parece que há gestos de acatamento e consideração. É quase
provável que, terminada a ação policial, todos eles acompanhem os agentes até o
patamar, com reverências.
Ora bem; telegramas de Espanha dizem que a polícia deu
em uma casa de jogo de Madri, onde achou muitos fidalgos. Que pensais que
fizeram os fregueses? Que fugiram pelos fundos ou pelos telhados? Não, senhor,
os fregueses correram aos trabucos que haviam trazido consigo e travaram
combate com a polícia. Não dizem os telegramas se venceram ou foram vencidos,
nem quantos morreram. Também não quero sabê-lo. O que me importa em tudo isso é
a cor local. Vêde bem como estamos na Espanha. Um fidalgo, que terá talvez o direito
de se cobrir diante do rei, jamais consentirá que um alguazil lhe deite mão ao
ombro, e primeiro a decepará com uma bala. Essa notícia, que parece nada,
explica o fracasso da nossa ópera Nacional. O caso da tavolagem de Madri daria
nas mãos de um Mérimée uma novela como a Carmen, de onde viria um maestro
extrair uma ópera. Os espanhóis têm a sua ópera, que é a zarzuela. Não lhes hão
de faltar assuntos, pois que sabem fugir da realidade chata das lutas
incruentas, e os bons fidalgos defendem o rei de copas com o mesmo brio e
prontidão com que defenderiam o rei da Espanha. Como
fazermos a mesma cousa? Não só não há trabucos nas nossas casas de jogo, mas as
próprias bengalas são esquecidas nos momentos de crise. Ao primeiro apito,
pernas. Ao primeiro vulto, muros. Quando sucede faltarem as pernas e os muros,
sobram sorrisos e barretadas. Nunca deixarei de aprovar uma atitude ou um
movimento que exprima respeito à autoridade e reconhecimento implícito do erro;
mas com isto fazem-se catecismos, apólogos morais e partes de polícia. óperas é
que não. Explicado assim o fracasso da nossa ópera Nacional, deixem-me
confessar que nem tudo são óperas neste mundo. Há palavras sem música. Daí as
nossas diligências, que, se perdem pelo lado estético, lucram pelo lado moral.
Por isso mesmo, convém apoiá-las. Toda repressão é pouca. Se, porém, basta o
zelo da autoridade e a energia dos seus agentes, não sei. Pode suceder que a
ação da polícia seja igual à das Danaides, e que o imenso tonel não chegue a
depositar um litro de água. Primeiro seria preciso calafetá-lo, a fim de que a
água não se escoe da Rua do Lavradio para a dos Inválidos. Onde está, porém,
esse tanoeiro ciclópico? Não induzam daqui que eu quero ver interrompido o
serviço das Danaides, nem concluam da. citação do telegrama de Madri que aprovo
o uso do trabuco. Não, Deus meu; tanto não quero uma cousa, nem
aprovo outra, que aplaudo ambas as contrárias. E
perdoem-me se insisto neste ponto. Nem todos os leitores concluem logicamente.
Muitos há que, se alguém acha o Rangel mais elegante que o Bastos, exclamam
convencidos:
- Ah! já sei, é amigo do Rangel!
E todo o tempo é pouco para replicar:
Não, homem de Deus, não sou amigo nem inimigo do
Rangel; creio até que ele me deve dez tostões. O que digo, é que, comparado com
o Bastos, o Rangel é mais elegante.
- Pobre Bastos! Ódio velho não cansa. Por que não
confessa logo que o detesta?
- Mas eu não detesto o Bastos; simpatizo até com ele,
e, se bem me lembro, devo-lhe um favor, não pequeno, aqui há anos, tanto mais
digno de lembrança quanto foi espontâneo...
- Mas por que lhe chama lapuz?
- Que lapuz? Não disse tal. Disse que acho o Rangel
mais elegante...
- Que o adora, em suma.
Não há sair daqui. O melhor, em tais casos é calar a
boca, ou encerrar o escrito, se se escreve. Viva Deus!
Creio que está finda a crônica.
ACABO DE LER que os condutores de bonds tiram
anualmente para si, das passagens que recebem, mais de mil contos de réis. Só a
Companhia do Jardim Botânico perdeu por essa via, no ano passado, trezentos e
sessenta contos. Escrevo por extenso todas as quantias, não só por evitar
enganos de impressão, fáceis de dar com algarismos, mas ainda para não assustar
logo à primeira vista, se os números saírem certos. Pode acontecer também, que
tais números, sendo grandes, gerem incredulidade, e nada mais duro que escrever
para incrédulos. Parece que as companhias têm experimentado vários meios de
fiscalizar a cobrança, sem claro efeito. Atribui-se ao finado Miller, gerente
que foi da Companhia do Jardim Botânico, um dito mais gracioso que verdadeiro,
assaz expressivo do ceticismo que distinguia aquele amável alemão. Dizia ele,
se é verdade, que, pondo fiscais aos condutores, comiam condutores e fiscais,
melhor era que só comessem condutores. Há nisso parcialidade. Ou o espiritismo
é nada, ou Miller foi condutor de bond em alguma existência anterior, e daí
essa proteção exclusiva a uma classe. Não haveria bonds, mas havia homens.
Miller terá sido condutor de homens, os quais, juntos em nação, formam um vasto
bond, ora atolado e parado, como a China, ora tirado por eletricidade, como o
Japão. Mas eu não creio que Miller tenha dito semelhante cousa; há de ser
invenção do cocheiro. Ninguém acusa o cocheiro de conivência na subtração dos
mil e tantos coitos, sendo aliás certo que, no organismo político e parlamentar
do bond, ele é o presidente do conselho, o chefe do gabinete. O condutor é o
rei constitucional, que reina e não governa, os passageiros são os
contribuintes. Que o condutor não governa, vê-se a todo instante pela
desatenção do cocheiro à campainha, que o manda parar. "Advirto Vossa
Majestade, diz o cocheiro com o gesto, que a responsabilidade do governo é
minha, e eu só obedeço à vontade do parlamento, cujas rédeas levo aqui seguras.
"Segundo toque de campainha recomenda ao chefe do gabinete que, nesse
caso, peça às câmaras um voto de aprovacão. "Perfeitamente", responde
o cocheiro, e requer o voto com duas fortes lambadas. O parlamento, cioso das
suas prerrogativas, empaca; é justamente a ocasião que o passageiro ágil e
sagaz aproveita para descer e entrar em casa. Não é preciso demonstrar que as
sociedades anônimas, como as políticas, são outros tantos bond, e se Miller não
foi condutor de algumas destas, é que o foi de algumas daquelas. Mas deixemos
suposições gratuitas. Ninguém jura ter ouvido ao próprio Miller as palavras que
à lenda lhe atribui. Que ficam elas valendo? Valem o que valem outras tantas
palavras históricas. Não percamos tempo com ficções. Vamos antes a duas
espécies de subtração, que devem ser contadas na soma total - uma contra as
companhias, outra contra os passageiros. A primeira é rara, mas existe, como as
anomalias do organismo. Tem-se visto algum passageiro tirar modestamente do
bolso o níquel da passagem, - ou não tirá-lo (há duas escolas) - e ir olhando
cheio de melancolia pelas casas que lhe ficam à direita ou à esquerda, segundo
a ponta do banco em que está. Os olhos derramam ideias tristes. Se o condutor,
distraído ou atrapalhado na cobrança, não convida o passageiro a ideias chistosas,
dá-se este por pago, e o níquel torna surdamente para a algibeira de onde saiu,
ou, se não saiu, lá fica.
A segunda espécie de subtração é também rara, e ainda
mais prejudicial ao passageiro que espere o troco da nota que este lhe deu. Às
vezes nem é preciso pedir, faz um gesto ou não faz nada: subentende-se que toda
nota tem troco. O passageiro prossegue na leitura ou na conversação
interrompida, se não vai simplesmente pensando na instabilidade das cousa desta
vida. Acontece que chega à casa ou à esquina da rua em que mora, e manda parar
o bond. Igualmente sensível ao aspecto melancólico das habitações humanas, o
condutor toca maquinalmente a campainha, e o homem desce, louvando ainda uma
vez esta condução tão barata, que lhe permite ir por um tostão do Largo de São
Francisco ao Campo de São Cristóvão. Este segundo caso é de consciência. Com
efeito, se o condutor não deu troco ao passageiro, há de entregar a nota à
companhia? Não; seria fazer com que cobrasse dez vezes a mesma passagem. Há de
trocar a nota para entregar só a passagem e ficar com o resto? Seria legitimar
uma divisão criminosa. Há de anunciar a nota? Seria publicar a sua própria
distração, e demais arriscar o emprego, cousa que um pai de família não deve
fazer. A única solução é guardar tudo. Mas ainda, sem estes Dois elementos,
parece que a perda anual é grande, e algum remédio é necessário. A ideia de
interessar os próprios passageiros, ligados por um laço de caridade, pode ser
fecunda, e, em todo caso, é elevada. O único receio que tenho, é da pouca
resistência nossa, por preguiça de ânimo ou outra cousa. O interesse é mais
constante. José Rodrigues, a quem consultei sobre esta matéria, disse-me que
isto de perder são os Ônus do ofício; também a companhia de que ele tinha
debêntures, perdeu-os todos. Mas lembrou-me um meio engenhoso e útil: incumbir
os acionistas de vigiarem por seus próprios olhos a cobrança das passagens.
Interessados em recolher todo o dinheiro, serão mais severos que ninguém, mais
pontuais, não ficará vintém nem conto de réis da caixa.
A MORTE de Mancinelli deu lugar a uma observação,
naturalmente tão velha ou pouco menos velha que o mundo, a saber, que o homem é
um animal de sonhos e mistérios. Não gosta das verdades simples. Assim,
relativamente no motivo do suicídio, ouvi muitas versões remotas e complicadas.
A mais espantosa foi que Mancinelli estava com ordem de prisão, por ter mandado
lançar fogo ao Politeama, e recorrera à morte, não por desespero, mas por
temor. Confessemos que é ir um pouco longe. Entretanto, façamos justiça aos
homens, a realidade era mais difícil de crer que a invenção e a fantasia. Um
empresário que se mata por não poder pagar aos credos, orça pela Fênix e pela
Sibila. Era natural não admitir que, em tal situação, um empresário prefira a
bala ao paquete. O paquete é a solução comum, mas também há casos de simples
discurso explicativo, palavras duras, uma redução, uma convenção, uma infração
e o silêncio. Não me lembra nenhum caso mortal.
O pobre e fino artista foi o primeiro, e por muitos e
muitos anos será o único. porque eu não creio que nenhum outro, nas mesmas
condições, se meta tão cedo em tal ofício, para o qual não basta o sentimento
da arte. Não o conheci de perto, nem de longe, mas parece que era profundamente
sensível, tinha o orgulho alto, o pundonor agudo e o sentimento da
responsabilidade vivíssimo. Não podendo lutar, preferiu a morte, que se lhe
afigurou mais fácil que a vida e mais necessária também. Há justamente um mês,
deu-se em Oxford um suicídio, que, a certo respeito é o de Mancinelli. Foi o de
John Mowat. Este erudito era bibliotecário da Universidade. Nomeado membro do
Congresso das Ciências que ali se reunia agora, teve medo de não poder
desempenhar cabalmente o mandato, pegou de uma corda e enforcou-se. Sabia-se
que era homem de grande impressibilidade. Vivendo feliz, sossegado, entregue
aos livros, temeu cá fora um fiasco. Compreendendo que a gente inglesa também
recusasse tal motivo, e preferisse crer, visto tratar-se de um bibliotecário,
que ele deitara fogo à biblioteca de Alexandria. Realmente, matar-se um homem
por suspeitar que pode ficar abaixo de um cargo. é coisa que, ainda escrita,
ninguém crê; parece uma página de Swift. Antes de tudo, esse sentimento de
inferioridade é raríssimo. Quando existe, fica tão fundo na consciência, que só
o olho perspicaz do observador pode senti-lo e palpá-lo cá de fora. A aparência
é contrária; o ar da pessoa, o tom, o aspecto, tudo persuade à multidão que o
cargo é que é pequeno. A verdade, porém, é que Mowat matou-se por causa dessa
modéstia doentia, quando o seu dever era ser sadio e forte, crer que podia
arrancar uma estrela do céu, e, obrigado a fazê-lo, tirá-la da algibeira.
Num e noutro caso, como nos demais, surge a questão de
saber se o suicídio é um ato de coragem ou de fraqueza. Questão velha. Tem sido
muito discutida, como a de sabe, qual é maior, se César ou Napoleão;
mas esta é a mais recente e indígena. Pode dizer-se
que os Dois grandes homens equilibram-se, nos votos, mas a questão do suicídio
é antes resolvida no sentido da fraqueza que no da coragem. É um problema
psicológico fácil de tratar entre o Largo do Machado e o da Carioca. Se o bond
for elétrico, a solução é achada em metade do caminho.
Segundo os cânones, o suicídio é um atentado ao
Criador, e o nosso primeiro e recente arcebispo aproveitou o caso Mancinelli
para lembrá-lo aos párocos e a todo o clero, e consequentemente que os
sufrágios eclesiásticos são negados aos que se matam. A circular de D. João
Esberard é sóbria, enérgica e verdadeira; recorda que a sociedade civil e a
filosofia condenam o suicídio, e que a natureza o considera com horror. No
mesmo dia da expedição da circular (quinta-feira) um homem que padecia de
moléstia dolorosa ou incurável, talvez uma e outra cousa, recorreu à morte como
a melhor das tisanas. Suponho que não terá lido a palavra do prelado; mas
outros suicidas virão depois dela, pois que os cânones são mais antigos, a
filosofia também, e mais que todos a natureza.
Conta Plutarco que houve, durante algum tempo, em
Mileto, uma cousa que ele chama conjuração, mas que eu, mais moderno, direi
epidemia, e era que as moças do lugar entraram a matar-se umas após outras.
A autoridade pública, para acudir a tamanho perigo,
decretou que os cadáveres das moças que dali em diante se matassem, seriam
arrastados pelas ruas, inteiramente nus. Cessaram os suicídios. O pudor acabou
com o que não puderam conselhos nem lágrimas. A privação dos sufrágios
eclesiásticos é assaz forte para os crentes, embora não seja sempre decisiva:
mas a incredulidade do século e a frouxidão dos próprios crentes hão de tornar
improfícua muita vez a intervenção do prelado.
Pela minha parte, estou com os cânones, com a
filosofia, com a sociedade e com a natureza, sem negar são Dois belos versos
aqueles com que o poeta Garção fecha a ode que compôs ao suicídio:
Todos podem tirar a vida ao homem, Ninguém lhe tira a
morte.
Convenho que a morte seja propriedade inalienável do
homem, mas há de ser com a condição de a conservar inculta, de lhe não meter
arado nem enxada. Condição que não se pode crer segura, nem
geralmente aceita. São matérias complicadas, longas, e
cada vez sinto menos papel debaixo da pena.
Enchamos o que falta com uma revelação e uma
observação.
A revelação é um grito d'alma que ouvi, quando a
notícia do suicídio de Mancinelli chegou a um lugar onde estávamos eu e um
amigo. "Ora pílulas! bradou este meu amigo; é outro empresário que me leva
a assinatura." Consolei-o dizendo que as assinaturas do Teatro Lírico,
perdidas ou interrompidas neste mundo, são pagas em tresdobro no céu. A
esperança de ouvir eternamente os Huguenotes e o Lohengrin alegrou a alma diletante
e cristã do meu amigo. Disse-lhe que os anjos, como a eternidade é longa,
estudam as óperas todas, para indenização das
algibeiras e dos ouvidos defraudados pelo suicídio ou pelo paquete; acrescendo
que os maestros no céu serão os regentes da orquestra das suas óperas, menos os
judeus, que poderão mandar pessoa de confiança.
Quanto ao reparo, é um pouco velho, mas serve.
Verificou-se ainda Lima vez a supremacia da música em nossa alma. Certamente,
as circunstâncias da morte de Mancinelli, as qualidades simpáticas do homem, os
dons do artista, a honradez do caráter, contribuíram muito para o terrível
efeito da notícia. Creio, porém, que uma parte do efeito originou-se na
condição de empresário lírico. A verdade é que nós amamos a música sobre todas
as cousas e as prima-donas como a nós mesmos.
Que boas que são as semanas pobres. As semanas ricas
são ruidosas e enfeitadas. aborrecíveis, em suma.
Uma semana pobre chega à porta do gabinete, humilde é
medrosa:
- Meu caro senhor, eu pouco tenho que lhe dar. Trago
as algibeiras vazias; quando muito, tenho aqui esta cabeça quebrada, a cabeça
do Matias ...
- Mas que quero eu mais, minha amiga? Uma cabeça é uma
mundo ... Matias, que Matias?
- Matias, o leiloeiro que passava ontem pela Rua de
São José, escorregou e caiu... Foi uma casca de banana.
- Mas há cascas de banana na Rua de São José?
- Onde é que não há cascas de bananas? Nem no céu,
onde não se come outra fruta, com toda certeza, que é fruta celestial. Mate-me
Deus com bananas, Gosto delas cruas, com queijo de Minas, assada com açúcar,
açúcar e canela ... Dizem que é mui nutritiva.
Confirmo este parecer, e aí vamos, eu a semana pobre,
papel abaixo. falando de mil cousas que se ligam à banana, desde a botânica até
a política. Tudo sai da cabeça do Matias. Não há tempo nem espaço, há só
eternidade e infinito, que nos levam consigo; vamos pegando aqui de uma flor,
ali de uma pedra, uma estrela, um raio, os cabelos de Medusa, as pontas do
Diabo, micróbios e beijos, todos os beijos que se têm consumido, até que damos
por nós no fim do papel. São assim as semanas pobres.
Mas as semanas ricas! Uma semana como esta que ontem
acabou farta de sucessos, de aventuras, de palavras, uma semana em que até o
câmbio começou a esticar o pescoço pode ser boa para quem gostar de bulha e de
acontecimentos. Para mim que amo o sossego e a paz é a pior de todas as
visitas. As semanas ricas exigem várias cerimônias, algum serviço, muitas
cortesias. Demais, são trapalhonas, despejam as algibeiras sem ordem e a gente
não sabe por onde lhes pegue, tantas e tais são as cousas que trazem consigo.
Não há tempo de fazer estilo com elas, nem abrir a porta à imaginação. Todo ele
é pouco para acudir aos fatos.
- Como é que V. Ex.a pôde vir tão carregado assim, não
me dirá?
- Não é tudo.
- Ainda há mais fitos?
- Tenho-os ali fora, na carruagem; trouxe comigo os de
maior melindre, e vou mandar trazer os outros pelo lacaio ... Pedro!
- Não se incomode V. Ex.a; eu mando o José Rodrigues.
José Rodrigues! Vá ali à carruagem desta senhora e traga os pacotes que lá
achar. Vêm todos os pacotes?
- Todos, menos o edifício da Fábrica da Chitas, que
afinal recebeu o último piparote do tempo e caiu.
Pelo resultado, podemos dizer que foi o dedo da
Providência que o deitou abaixo; não matou ninguém.
Imagine se o bond que descia passasse no momento de
cair o monstro, e que o homem que queria ir ver na casa arruinada a cadela que
dava leite aos filhos houvesse chegado ao lugar onde estavam os cães.
Que desastre, santo Deus! Que terrível desastre -
Terrível. minha senhora? Não nego que fosse feio, mas o mal seria muito menor
que o bem. Perdão;
não gesticule antes de ouvir até o fim . . Repito que
o bem compensaria o mal. Imagine que morria gente, que havia pernas
esmigalhadas, ventres estripados, crânios arrebentados, lágrimas, gritos,
viúvas, órfãos, angústias, desesperos ... Era triste, mas que comoção pública!
que assunto fértil para três dias!
Recorde-se da Mortona.
- Que Mortona?
- Creio que houve um desastre deste nome; não me lembro
bem, mas foi negócio em que se falou três dias. Nós precisamos de comoções
públicas, são os banhos elétricos da cidade. Como duram pouco,
devem ser fortes. Olhe o caso Mancinelli ...
- A minha mana mais velha é que o trouxe consigo. Foi
um suicídio, creio.
- Foi, um horrível suicídio que abalou a cidade em
seus fundamentos. No dia da morte, cerca de mil pessoas foram ver o cadáver do
triste empresário. Quando se deu o primeiro espetáculo a favor dos artistas,
acudiram ao teatro dezessete pessoas, não contando os porteiros, que entram por
ofício. Não há que admirar nessa diferença de algarismos; as comoções fortes
são naturalmente curtas. Fortes e longas, seriam a mais horrível das nevroses.
Foi uma pena não ter passado um bond cheio de gente, na ocasião em que ruiu a
Fábrica das Chitas; cheio de gente, isto é, de crianças sem mães, maridos sem
esposas, viúvas costureiras, sem os filhos, e muitos passageiros, muitos
pingentes, como dizem dos que vão pendurados nos estribos, incomodando os
outros. Creia V. Ex.a; uma vez que os homens já não
compõem tragédias, é preciso que Deus as faça, para
que este teatro do mundo varie de espetáculo. Tudo fandango, minha senhora!
Seria demais.
- Como o senhor é perverso!
- Eu? Mas ...
- Vamos aos outros sucessos destes sete dias; trago
muitos.
- Perdão; quero primeiro lavar-me da pecha que me pôs.
Eu perverso?
- Danado.
- Eu danado? Mas em que é que sou danado e perverso?
Não lhe disse, note bem, que eu faria ruir o edifício da Fábrica das Chitas,
quando passasse o bond, mas que era bom que ele ruísse quando o bond passasse.
Há um abismo ...
Pois sim; vamos ao mais. Aqui estão Dois fatos
importantes... . um grande abismo. Nem falo só pelas outros. mas também por
mim. Não tenho dúvida em confessar que o espetáculo de uma perna alanhada,
quebrada, ensangüentada, é muito mais interessante que o da simples calça que a
veste. As calças, esses simples e banais canudos de pano, não dão comoção. As
próprias calças femininas, quando comovem não é por serem calças...
- Vamos aos sucessos.
- ...mas por serem calças calçadas. É outro abismo.
Repare que hoje só vejo abismos. Há uma chuva de abismos; a imagem não é boa,
mas que há bom neste século, minha senhora, excluindo a ocupação do Egito?
Dizem que se descobriu um elemento novo. Talvez seja falso, mas pode ser que
não; tudo é relativo. O relativo é inimigo do absoluto: o absoluto, quando não
é Deus, é (com licença) o tenor que canta as glórias divinas. Começo a variar,
minha senhora; não me sinto bem...
- Então acabemos depressa; é tarde, preciso
retirar-me.
- E ... se é que não estou pior. O pior é inimigo do
bom, dizem; mas os dicionários negam absolutamente essa proposição, e eu vou
com eles ...
- Oh! o senhor faz-me nervosa!
- ...não só por serem dicionários, mas por serem
livros grossos. Oh! V. Ex.a não sabe o que são esses livros altos e de
ponderação. Os dicionários, se não são eternos, deviam sê-lo. Uma só página, um
só dicionário, eterno; era o ideal da sistematização. A sistematização é, para
falar verdade ...
- Não posso mais, adeus!
- José Rodrigues, fecha a porta; se esta senhora
voltar, dize-lhe que saí. Ah!
OS DEPOIMENTOS desta semana complicaram de tal maneira
o caso da bigamia Louzada, que é impossível destrinchá-lo [sic], sem o auxílio
de uma grande doutrina. Essa doutrina, eu, que algumas vezes me ri dela, venho
proclamá-la bem alto, como a última e verdadeira.
Com efeito, vimos que a primeira mulher do capitão é
negada por ele, que afirma ser apenas sua cunhada. Outros, porém, dizem que a
primeira mulher é esta mesma que aí está, e quem o diz é o vigário que os casou
em 1870, e o padrinho, que assistiu à cerimônia. Mas eis aí surge a certidão de
óbito e o número da sepultura da primeira esposa, que, de outra parte, são
negadas, porque a pessoa morta não é a mesma e tinha nome diverso. Há assim uma
pessoa enterrada e viva, mulher, cunhada e estranha, um enigma para cinco
polícias juntas, quanto mais uma.
Vinde, porém, ao espiritismo, e vereis tudo claro como
água. Eu não cria no espiritismo até junho último, quando li na União Espírita
que, há anos, um distinto jurisconsulto nosso, antigo deputado por Mato Grosso,
consentiu em assistir a uma experiência. Foi invocado o espírito da sogra do
deputado e respondeu o Marquês de Abaeté: "Meu amigo; o espiritismo é uma
verdade. Abaeté". Caíram-me as cataratas dos olhos. Certamente o caso não
era novo; mais de uma resposta destas aparecem, que eu sempre atribuí à
simulação. A circunstância, porém, da assinatura é que me clareou a alma, não
só porque o marquês era homem verdadeiro, mas ainda porque o espírito assinara,
não o seu nome de batismo mas o título mobiliário. Se houvesse charlatanismo,
teria saído o nome de Antônio, para fazer crer que os espíritos desencarnados
deixam neste mundo todas as distinções. A assinatura do título prova a
autenticidade da resposta e a verdade da doutrina.
Sendo a doutrina verdadeira, está explicada a confusão
da esposa, da cunhada e da senhora estranha, que se dá no processo do capitão,
porquanto os doutores da escola ensinam que os espíritos renascem muita vez
mortos, isto é, os filhos encarnam-se nos pais, nas mães e não é raro um menino
voltar a este mundo filho de um primo. Daí essa complicação de pessoas, que a
polícia não deslindará nunca, sem o auxílio desta grande doutrina moderna e
eterna.
Converta-se a polícia. Não há desdouro em abraçar a
verdade, ainda que outros a contestem; todas as grandes verdades acham grandes
incrédulos. A resposta do marquês prova que os homens, de envolta com a carne,
que é matéria, não deixam o título, que é uma forma particular de espírito.
Quando o Japão começou a ter espírito, não adotou só o regímem parlamentar,
nacionalizou também os condes, e lá tem, entre outros, o seu Conde Ito, que
dizem ser estadista eminente. A China, invejosa e preguiçosa, ergueu a custo as
pálpebras e murmurou como no nosso antigo Alcazar da Rua Uruguaiana: Vous avez
de 1'esprit?Nous aussi. E criou um marquês, o Marquês Tcheng, mas não foi
adiante.
Quanto a mim, não só creio no espiritismo, mas
desenvolvo a doutrina. Desconfiai de doutrinas que nascem à maneira de Minerva,
completas e armadas. Confiai nas que crescem com o tempo. Sim, vou além dos
meus doutores; creio firmemente que um espírito de homem pode reencarnar-se em
um animal.
Em Mogi-Mirim, Estado de São Paulo, acaba de
enlouquecer um burro. Assim o conta a Ordem por estas palavras:
"Segunda-feira passada, um burro do Dr. Santo di Prospero enlouqueceu
repentinamente". E refere os destroços que o animal fez até achar a morte.
Ora, esta loucura do burro mostra claramente que o infeliz perdeu a razão. Que
espírito estaria encarnado nesse pobre animal, amigo do homem, seu companheiro,
e muita vez seu substituto? Talvez um gênio. A prova é que o perdeu. Com quatro
pés, não pode entrar onde nós entramos com Dois. Quanta vez teria ele dito
consigo: - Não fosse a minha ilusão em reencarnar-me nesta besta, e estaria
agora entre pessoas honradas e ilustradas, falando em vez de zurrar, colhendo
palmas, em vez de pancadaria. É bem feito; a minha ideia de incorporar o burro
na sociedade humana, se era generosa, não era prática, porque o homem nunca
perderá o preconceito dos seus Dois pés.
Outro ponto que me parece deve ser examinado e
adicionado à nossa grande doutrina, é a volta dos espíritos, encarnados (se
assim posso dizer) em simples obras humanas, veículo ou outro objeto. Penso,
entretanto, que a gradação necessária a todas as cousas exige para esta nova
encarnação que o espírito haja primeiro tornado em algum bruto. Assim é que um
espírito, desde que tenha sido reencarnado na tartaruga, logo que se
desencarne, pode voltar novamente encarnado no bond elétrico. Não dou isto como
dogma, mas é doutrina assaz provável. Já não digo o mesmo da ideia (se a há) de
que um serviço pode ser reencarnado em outro. Serviço é propriamente o efeito
da atividade e do esforço humano em uma dada aplicação. Tirai-lhe essa
condição, e não há serviço. É um resultado, nada mais. Pode não prestar, ser
descurado, não valer Dois caracóis, ou ao contrário pode não ser excelente e
perfeito, mas é sempre um resultado. Quem disser, por exemplo, que o serviço da
antiga Companhia de Bonds do Jardim Botânico está reencarnado no novo, provará
com isto que de certo tempo a esta parte só tem andado de carro, mas andar de
carro não é condição para ser espírita. Ao contrário, a nossa doutrina prefere
os humildes aos orgulhosos. Quer a fé e a ciência, não cocheiros embonecados,
nem cavalos briosos.
Voltando à bigamia do capitão, digo novamente à
polícia que estude o espiritismo e achará pé nessa confusão de senhoras. Sem
ele, nada há claro nem sólido. tudo é precário, escuro e anárquico. Se vos
disserem que é vezo de todas as doutrinas deste mundo darem-se por salvadoras e
definitivas, acreditai e afirmai que sim, excetuando sempre a nossa, que é a
única definitiva e verdadeira. Amen.
É VERDADE trivial que, quando o rumor é grande,
perdem-se naturalmente as vozes pequenas. Foi o que se deu esta semana.
A semana foi toda de combatividade, para falar como os
frenologistas. Tudo esteve na tela da discussão, desde a luz esteárica até a
demora dos processos, desde as carnes verdes até a liberdade de cabotagem.
De algumas questões, como a da luz esteárica, sei
apenas que, se a lesse, não estaria vivo. A das carnes verdes é propriamente de
nós todos; mas a disposição em que me acho, de passar à vegetariano,
desinteressa-me da solução, e tanto faz que haja monopólio, como liberdade. A
liberdade é um mistério, escreveu Montaigne, e eu acrescento que o monopólio é
outro mistério, e, se tudo são mistérios neste mundo, como no outro, fiquem-se
com os seus mistérios, que eu me vou aos meus espinafres.
De resto, nos negócios que não interessam diretamente,
não é meu costume perder o tempo que posso empregar em cousas de obrigação. É
assim que aprovo e aprovarei sempre uma passagem que li na ata da reunião de
comerciante, que se fez na Intendência Municipal, para tratar da crise de
transportes. Orando, o Sr. Antônio Wernek observou que havia pouca gente na
sala. Respondeu-lhe um dos presentes, em aparte: "Eu, se não fosse o
pedido de um amigo, não estaria aqui". Digo que aprovo, mas com
restrições, porque não há amigos que me arranquem de casa, para ir cuidar dos
seus negócios. Os amigos têm outros fins, se não amigos, se não são mandados
pelo diabo para tentar um homem que está quieto.
Não obstante a pequena concorrência, parece que o
rumor do debate foi grande, pouco menor que o da questão de cabotagem na Câmara
dos Deputados. Mas, para mim, em matéria de navegação, tudo é navegar, tudo é
encomendar a alma a Deus e ao piloto. A melhor navegação é ainda a daquelas
conchas cor de neve, com uma ondina dentro, olhos cor do céu, tranças de sol,
toda um verso e toda no aconchego do gabinete. Mormente em dias de chuva, como
os desta semana, é navegação excelente, e aqui a tive, em primeiro lugar com o
nosso Coelho Neto, que aliás não falou em verso, nem trouxe daquelas figuras do
Norte ou do Levante, ainda a musa costuma levá-lo, vestido, ora de névoas, ora
de sol. 2.Não foi o Coelho Neto das Baladilhas, mas o dos Bilhetes Postais (Dois
livros em um ano), por antonomásia Anselmo Ribas. Páginas de humour e de
fantasia, em que a imaginação e o sentimento se casam ainda uma vez, ante esse
pretor de sua eleição. Derramados na imprensa, pareciam esquecidos; coligidos
no livro, vê-se que deviam ser lembrados e relembrados. A segunda concha...
A segunda concha trouxe deveras uma ondina, uma
senhora, e veio cheia de versos, os Versos, de Júlia Cortines. Esta poetisa de
temperamento e de verdade disse-me cousas pensadas e sentidas, em uma linguagem
inteiramente pessoal e forte. Que poetisa é esta? Lúcio de Mendonça é que
apresenta o livro em um prefácio necessário, não só para dar-nos mais uma
página vibrante de simpatia, mas ainda para convidar essa multidão de
distraídos a deter-se um pouco a ler. Lede o livro; há nele uma vocação e uma
alma, e não é sem razão que Júlia Cortines traduz à p. 94, um canto de
Leopardi. A alma desta moça tem uma corda dorida de Leopardi. A dor é velha; o
talento é que a faz nova, e aqui a achareis novíssima.
Júlia Cortines vem sentar-se ao pé de Zalina Rolim,
outra poetisa de verdade, que sabe rimar os seus sentimentos com arte fina,
delicada e pura. O Coração, livro desta outra moça, terno, a espaços triste,
mas é menos amargo que o daquela; não tem os mesmos desesperos ...
Eia! foge, foge, poesia amiga, basta de recordar as
horas de ontem e de anteontem. A culpa foi da Câmara dos Deputados, com a sua
navegação de cabotagem, que me fez falar da tua concha eterna, para a qual tudo
são mares largos e não há leis nem Constituições que vinguem. Anda, vai, que o
cisne te leve água fora com as tuas hóspedes novas e nossas.
Voltemos ao que eu dizia do rumor grande, que faz
morrer as vozes pequenas. Não ouviste decerto uma dessas vozes discretas, mas
eloqüentes; não leste a punição de três jóqueis. Um, por nome José Nogueira,
não disputou a corrida com ânimo de ganhar; foi suspenso por três meses. Outro,
H. Cousins, "atrapalhou a carreira ao cavalo Sílvio"; teve a multa de
quinhentos mil-réis. Outro, finalmente. Horácio Perazzo, foi suspenso por seis
meses, porque, além de não disputar a corrida com ânimo de ganhar, ofendeu com
a espora uma égua.
Estes castigos encheram-me de espanto, não que os ache
duros, nem injustos; creio que sejam merecidos, visto o delito, que é grave. Os
capítulos da acusação são tais, que nenhum espírito reto achará defesa para
eles. O meu assombro vem de que eu considerava o jóquei parte integrante do
cavalo. Cuidei que, lançados na corrida, formavam uma só pessoa, moral e
física, um lutador único. Não supunha que as duas vontades se dividissem, a
ponto de uma correr com ânimo de ganhar a palma, e outra de a perder; menos
ainda que o complemento humano de um cavalo embaraçava a marcha de outro cavalo,
e muito menos que se lembrasse de ofender uma égua com a espora. Se os animais
fossem cartas, em vez de cavalos, dir-se-ia que os homens furtavam no jogo.
Quinhentos mil-réis de multa! Pelas asas do Pégaso!
devem ser ricos, esses funcionários. Três e seis meses de suspensão! Como
sustentarão agora as famílias, se as têm, ou a si mesmos, que também comem? Não
irão empregar-se na Intendência Municipal, onde a demora dos ordenados faz
presumir que os jóqueis do expediente andam suspensos por ações semelhantes.
Não hão de ir puxar carroça. Vocação teatral não creio que possuam. Se são
ricos, bem; mas, então, por que é que não fundaram, há Dois ou três anos, uma
sociedade bancária, ou de outra espécie, onde podiam agora atrapalhar a marcha
dos outros cavalos, esporear as éguas alheias, e, em caso de necessidade,
correr sem ânimo de ganhar a partida? Este último ponto não seria comum, antes
raríssimo; mas basta que fosse possível. Nem é outra a regra cristã, que manda
perder a terra para ganhar o céu. Sem contar que não haveria suspensões nem
multas.
A ANTIGUIDADE cerca-me por todos os lados. E não me
dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a cousas modernas, como
que lhes toca a natureza. Os bandidos da atual Grécia, por exemplo, têm melhor
sabor que o clavinoteiros da Bahia. Quando a gente lê que alguns sujeitos foram
estripados na Tessália ou Maratona, não sabe se lê um jornal ou Plutarco. Não
sucede o mesmo com a comarca de Ilhéus. Os gatunos de Atenas levam o dinheiro e
o relógio, mas em nome de Homero.
Verdadeiramente não são furtos, são reminiscências
clássicas. Quinta-feira um telegrama de Londres noticiou que acabava de ser
publicada urna versão inglesa da Eneida, por Gladstone. Aqui há antigo e velho.
Não é o caso do Sr. Zama, que, para escrever de capitães, foi buscá-los à
antiguidade, e aqui no-los deu há duas semanas; o Sr. Zama é relativamente
moço.
Gladstone é velho e teima em não envelhecer. É
octogenário, podia contentar-se com a doce carreira de macróbio e só vir à
imprensa quando fosse para o cemitério. Não quer; nem ele, nem Verdi. Um faz
óperas, outro saiu do parlamento com uma catarata, operou a catarata e publicou
a Eneida em inglês, para mostrar aos ingleses como Virgílio escreveria em
inglês, se fosse inglês. E não será inglês Virgílio?
Como se não bastasse essa revivescência antiga, e mais
o livro do Sr. Zama, parece-me Carlos Dias com os Cenários, um banho enorme da
antiguidade. Já é bom que um livro responda ao título, e é o caso deste, em que
os cenários são cenários, sem ponta de drama, ou raramente. Que levou este moço
de vinte anos ao gosto da antiguidade? Diz ele, na página última, que foi uma
mulher; eu, antes de ler a última página, cuidei que era simples efeito de
leitura, com extraordinária tendência natural. Leconte de Lisle e Flaubert lhe
terão dado a ocasião de ir às grandezas mortas, e a Profissão de Fé, no desdém
dos modernos, faz lembrar o soneto do poeta romântico.
Mas não se trata aqui da antiguidade simples, heróica
ou trágica, tal como a achamos nas páginas de Homero ou Sófocles. A antiguidade
que este moço de talento prefere, é a complicada, requintada ou decadente, os
grandes quadros de luxo e de luxúria, o enorme, o assombroso, o babilônico. Há
muitas mulheres neste livro, e de toda casta, e de vária forma. Pede-lhe vigor,
pede-lhe calor e colorido,
achá-los-ás. Não lhe peças - ao seu Nero, por exemplo
- a filosofia em que Hamerling envolve a vida e a morte do imperador. Este
grande poeta deu à farta daqueles quadros lascivos ou terríveis, em que a sua
imaginação se compraz; mas, corre por todo o poema um fluido interior, a ironia
final do César sai de envolta com o sentimento da realidade última: "O
desejo da morte acabou a minha insaciável sede da vida".
Ao fechar o livro dos Cenários, disse comigo:
"Bem, a antiguidade acabou". - "Não acabou, bradou um jornal;
aqui está uma nova descoberta, uma coleção recente de papiros gregos. Já estão
discriminados cinco mil". - "Cinco mil!" pulei eu. E o jornal,
com bonomia: "Cinco mil, por ora; dizem cousas interessantes da vida comum
dos gregos, há entre eles uma paródia da Ilíada, uma novela, explicações de um
discurso de Demóstenes ... Pertence tudo ao museu de Berlim".
- Basta, é muita antiguidade; venhamos aos modernos.
- Perdão, acudiu outra folha, a França também descobriu
agora alguma cousa para competir com a rival germânica; achou em Delos duas
estátuas de Apolo. Mais Apolos. Puro mármore. Achou também paredes de casas
antigas, cuja pintura parece de ontem. Os assuntos são mitológicos ou
domésticos, e servem ...
- Basta!
- Não basta; Babilônia também é gente, insinua uma
gazeta; Babilônia, em que tanta cousa se tem descoberto, revelou agora uma
vasta sala atualhada de retábulos inscritos ... Cousas preciosas! já estão com
a Inglaterra, a França, a Alemanha e os Estados Unidos da América. Sim; não é à
toa que estes americanos são ingleses de origem. Têm o gosto da antiguidade; e,
como inventam telefone e outros milagres, podem pagar caro essas relíquias. Há
ainda ...
Sacudi fora os jornais e cheguei à janela. A antiguidade
é boa, mas é preciso descansar um pouco e respirar ares modernos. Reconheci
então que tudo hoje me anda impregnado do antigo e, que, por mais que busque o
vivo e o moderno, o antigo é que me cai nas mãos. Quando não é o antigo, é o
velho, Gladstone substitui Virgílio. A comissão uruguaia que aí está, trazendo
medalhas comemorativas da
campanha do Paraguai, não sendo propriamente antiga,
fala de cousas velhas aos moços. Campanha do Paraguai! Mas então, houve alguma
campanha do Paraguai? Onde fica o Paraguai? Os que já forem entrados na
história e na geografia, poderão descrever essa guerra, quase tão bem como a de
Jugurta.
Faltar-lhes-á, porém, a sensação do tempo.
Oh! a sensação do tempo! A vista dos soldados que
entravam e saíam de semana em semana, de mês em mês, a ânsia das notícias, a
leitura dos feitos heróicos, trazidos de repente por um paquete ou um
transporte de guerra... Não tínhamos ainda este cabo telegráfico, instrumento
destinado a amesquinhar tudo, a dividir as novidades em talhadas finas, poucas
e breves. Naquele tempo as batalhas vinham por inteiro, com as bandeiras
tomadas, os mortos e feridos, número de prisioneiros, nomes dos heróis do dia,
as próprias partes oficiais. Uma vida intensa de cinco anos. Já lá vai um
quarto de século. Os que ainda mamavam quando Osório ganhava a grande batalha,
podem aplaudi-lo amanhã revivido no bronze, mas não terão o sentimento exato
daqueles dias ...
UMA SEMANA que inaugura na segunda-feira uma estátua e
na quinta um governo, que é qualquer dessas outras semanas que se despacham
brincando. Isto em princípio; agora, se atenderdes à solenidade especial dos Dois
atos, à significação de cada um deles, à multidão de gente que concorreu a
ambos, chegareis à conclusão de que tais sucessos, não cabem numa estreita
crônica. Um mestre de prosa, autor de narrativas lindas, curtas e duradouras,
confessou um dia que o que mais apreciava na história, eram as anedotas. Não
discuto a confissão; digo só que, aplicada a este ofício de cronista, é mais
que verdadeira.
Não é para aqui que se fizeram as generalizações, nem
os grandes fatos públicos. Esta é, no banquete dos acontecimentos, a mesa dos
meninos.
Já a imprensa, por seus editoriais, narrou e comentou
largamente os dois acontecimentos. Osório foi revivido, depois de o ser no
bronze, e Bernardelli glorificado pela grandeza e perfeição com que perpetuou a
figura do herói. Quando à posse do Sr. presidente da República, as
manifestações de entusiasmo do povo, e as esperanças dessa primeira transmissão
do poder, por ordem natural e pacífica,
foram registradas na imprensa diária, à espera que o
sejam devidamente no livro. Nem foram esquecidos os serviços reais daquele que
ora deixou o poder, para repousar das fadigas de Dois longos anos de luta e de
trabalho.
Não nego que um pouco de filosofia possa ter entrada
nesta coluna, contanto que seja leve e ridente. As sensações também podem ser
contadas, se não cansarem muito pela extensão ou pela matéria; para não ir mais
longe, o que se deu comigo, por ocasião da posse, no Senado. Quinta-feira,
quando ali cheguei, ia achei mais convidados que congressistas, e mais pulmões
que ar respirável. Na entrada da sala das sessões, fronteira à mesa da
presidência, muitas senhoras iam invadindo pouco a pouco à mesa da presidência,
muitas senhoras iam invadindo pouco a pouco o espaço até conquistá-lo de todo.
Era novo;
mais novo ainda a entrada de uma senhora, que foi
sentar-se na cadeira do Barão de S. Lourenço. Ao menos, o lugar era o mesmo; a
cadeira pode ser que fosse outra. Daí a pouco, alguns deputados e senadores
ofereciam às senhoras as suas poltronas, e todos aqueles vestidos claros vieram
alternar com as casacas pretas.
Quando isto se deu, tive uma visão do passado, uma
daquelas visões chamadas imperiais (duas por ano), em que o regimento nunca
perdia os seus direitos. Tudo era medido, regrado e solitário. Faltava agora
tudo, até a figura do porteiro, que nesses dias solenes calçava as meias pretas
e os sapatos de fivela, enfiava os calções, e punha aos ombros a capa. Os senadores,
como tinham farda especial, vinham todos com ela, exceto algum padre, que
trazia a farda da igreja. O Barão de S. Lourenço se ali ressuscitasse,
compreenderia, ao aspecto da sala, que as instituições eram outras, tão outras
como provavelmente a sua cadeira. Aquela gente numerosa, rumorosa e mesclada
esperava alguém, que não era o imperador. Certo,
eu amo a regra e dou pasto à ordem. Mas não é só na
poesia que souvent un beau désordre est un effet de l'art. Nos atos públicos
também; aquela mistura de damas e cavalheiros de legisladores e convidados, não
das instituições, mas do momento, exprimia um "estado da alma"
popular. Não seria propriamente um efeito da arte, concordo, e sim da natureza;
mas que é a natureza senão uma arte anterior?
Gambetta achava que a República Francesa "não
tinha mulheres". A nossa, ao que vi outro dia, tem boa cópia delas.
Elegantes, cumpre, dizê-lo, e tão cheias de ardor, que foram as primeiras ou
das primeiras pessoas que deram palmas, quando entrou o presidente da República.
Vede a nossa felicidade: sentadas nas próprias cadeiras do legislador, nenhuma
delas pensava ocupar, nem pensa ainda em ocupá-las à força de votos.
Não as teremos tão cedo em clubes, pedindo direitos
políticos. São ainda caseiras como as antigas romanas, e, se nem todas fiam lã,
muitas as vestem, e vestem bem, sem pensar em construir ou destruir
ministérios.
Nós é que fazemos ministérios, e, se já os não fazemos
nas Câmaras, há sempre a imprensa, por onde se podem dar indicações ao chefe de
Estado. O velho costume de recomendar nomes, por meio de listas publicadas a
pedido nos jornais, ressuscitou agora, de onde se deve concluir que não havia
morrido.
Vimos listas impressas, desde muito antes da posse, a
maior parte com algum nome absolutamente desconhecido. Esta particularidade
deu-me que pensar. Por que esses colaboradores anônimos do Poder Executivo? E
por que, entre nomes sabidos, um que se não sabe a quem pertence? Resolvi a
primeira parte da questão, depois de algum esforço. A segunda foi mais difícil,
mas não impossível. Não há impossíveis.
O que me trouxe a chave do enigma, foi a própria
eleição presidencial. As umas deram cerca de trezentos mil votos ao Sr. Dr.
Prudente de Morais, muitas centenas a alguns nomes de significação republicana
ou monárquica, algumas dezenas a outros, seguindo-se uma multidão de nomes
sabidos ou pouco sabidos, que apenas puderam contar um voto. Quando se apurou a
eleição, parei diante do problema. Que queria dizer essa multidão de cidadãos
com um voto cada um? A razão e a memória explicaram-me o caso. A memória
repetiu-me a palavra que ouvi, há ano, a alguém, eleitor e organizador de uma
lista de candidatos à deputação. Vendo-lhe a lista, composta de nomes
conhecidos, exceto um, perguntei quem era este.
- Não é candidato, disse-me ele, não terá mais de
vinte a vinte e cinco votos, mas é um companheiro aqui do bairro; queremos
fazer-lhe esta manifestação de amigos.
Concluí o que o leitor já percebeu, isto é, que a
amizade é engenhosa, e a gratidão infinita, podendo ir do pudding ao voto. O
voto, pela sua natureza política, é ainda mais nobre que o pudding, e deve ser
mais saboroso, pelo fato de obrigar à impressão do nome votado. Guarda-se a ata
eleitoral, que não terá nunca outono.
Toda glória é primavera. A estátua de Osório vinha
naturalmente depois desta máxima, mas o pulo é tão grande, e o papel vai
acabando com tal presteza, que o melhor é não tornar ao assunto. Fique a
estátua com os seus Dois colaboradores, o escultor e o soldado; eu contento-me
em contemplá-la e passar, e a lembrar-me das gerações futuras que não hão de
contemplar como eu.
VÃO ACABANDO as festas uruguaias. Daqui a pouco,
amanhã, não haverá mais que lembranças das luminárias, músicas, flores, danças,
corridas, passeios, e tantas outras cousas que alegraram por alguns dias a
cidade. Hoje é a regata de Botafogo, ontem foi o baile do Cassino, anteontem
foi a festa do Corcovado... Não escrevo pic-nic, por ter a respeito deste
vocábulo duas dúvidas, uma maior outra menor, como diziam os antigos pregoeiros
de praças judiciais Aqui está a maior. Sabe-se que esta palavra veio-nos dos
franceses que escrevem pique-nique. Como é que nós, que temos o gosto de adoçar
a pronúncia e muitas vezes alongar a palavra, adotamos esta forma ríspida e breve:
pic-nic! Eis aí um mistério, tanto mais profundo quanto que eu, quando era
rapaz (anteontem, pouco mais ou menos), lia e escrevia pique-nique, à francesa.
Que a forma pic-nic nos viesse de Portugal nos livros e correspondências dos
últimos anos sendo a forma que mais se ajusta à pronúncia da nossa antiga
metrópole, é o que primeiro ocorre aos inadvertidos. Eu, sem negar que assim
escrevam os últimos livros e correspondências daquela origem lembrei que Caldas
Aulete adota pique-nique;
resposta que não presta muito para o caso, mas não
tenho outra à mão.
Não me digas, leitor esperto, que a palavra é de
origem inglesa mas que os ingleses escrevem pick-nick.
Sabes muito bem que ela no veio de França, onde lhe
tiraram as calças londrinas, para vesti-la à moda de Paris, neste caso
particular é a nossa própria moda. Vede frac dos franceses. Usamos hoje esta
forma, que é a original, nós que tínhamos adotado anteontem (era eu rapaz) a
forma adoçada de fraque.
A outra dúvida, a menor, quase não chega a ser dúvida,
se refletirmos que as palavras mudam de significado com o andar do tempo ou
quando passam de uma região a outra. Assim que, pique-nique era aqui, banquete,
ou como melhor nome haja, em que cada conviva entra com a sua quota. Quando um
só é que paga a pato e o resto a cousa tinha outro nome. A palavra ficou
significando, ao que parece, um banquete campestre.
Foi naturalmente para acabar com tais dúvidas que o
Sr. Dr. Castro Lopes inventou a palavra convescote.
O Sr. Dr. Castro Lopes a nossa Academia Francesa.
Esta, há cerca de um mês, admitiu no seu dicionário a palavra atualidade. Em
vão a pobre atualidade andou por livros e jornais, conversações e discursos; em
vão Littrée, a incluiu no seu dicionário. A academia não lhe deu ouvidos. Só
quando uma espécie de sufrágio universal decretou a expressão, é que ela
canonizou. Donde se infere que o Sr. Castro Lopes, sendo a nossa Academia
Francesa, é também o contrário dela. É a academia pela autoridade, é o
contrário pelo método. Longe de esperar que as palavras envelhecem cá fora, ele
as compõe novas. com os elemento que tira da sua erudição, dá-lhes a bênção e
manda-as por esse mundo. O mesmo paralelo se pode fazer entre ele e a Igreja
Católica. Igreja, tendo igual autoridade, procede como a academia, não inventa
dogmas, define-os.
Convescote tem prosperado, posto não seja claro, à
primeira vista, corno engrossador, termo recente, de aplicação política,
expressivo que faz imagem, como dizem os franceses. É certo que a clareza de
vem do verbo donde saiu. Quem o inventou? Talvez algum cético, por horas
mortas, relembrando uma procissão qualquer; mas também pode ser obra de algum
religionário, aborrecido com ver aumentar o número de fiéis. As religiões
políticas diferem das outras em que os fiéis da primeira hora não gostam de ver
fiéis das outras horas. Parecem-lhes inimigos; é verdade que as conversões,
tendo os seus motivos na consciência, escapam à verificação humana e é possível
que um homem se ache, repentinamente, católico menos pelos dogmas que pelas galhetas.
As galhetas fazem engrossar muito. Mas fosse quem fosse o inventor do vocábulo,
certo e que este, apesar da anônimo e popular, ou por isso mesmo, espalhou-se e
prosperou; não admirará que fique na língua, e se houver, aí por 1950, uma
Academia Brasileira, pode bem ser que venha a incluí-lo no seu dicionário. O
Sr. Dr. Castro Lopes poderia recomendá-lo a um alto destino.
Oh! se o nosso venerando latinista me desse uma
palavra que, substituindo mentira, não fosse inverdade!
Creio que esta segunda palavra nasceu no parlamento,
obra de algum orador indignado e cauteloso, que, não querendo ir até a mentira,
achou que inexatidão era frouxa demais. Não nego perfeição à inverdade, nem
eufonia, nem cousa nenhuma. Digo só que me é antipática. A simpatia é o meu
léxico. A razão por que eu nunca explodo, nem gosto que os outros explodam, não
é porque este verbo não seja elegante, belo, sonoro, e principalmente
necessário; é porque ele não vai com o meu coração. Le coeur a des raisons que
la raison ne connait pas, disse um moralista.
A outra palavra, mentira, essa é simpática, mas
faltam-lhe maneiras e anda sempre grávida de tumultos.
Há cerca de quinze dias, em sessão do Conselho
Municipal, caiu da boca de um intendente no rosto de outro, e foi uma agitação
tal, que obrigou o presidente a suspender os trabalhos por alguns minutos.
Reaberta a sessão, o presidente pediu aos seus colegas
que discutissem com a maior moderação; pedido excessivo, eu contentar-me-ia com
a menor, era bastante para não ir tão longe.
De resto, a agitação é sinal de vida e melhor é que o
Conselho se agite que durma. Esta semana o caso da bandeira, que é um dos mais
graciosos, agitou bastante a alma municipal. Se o leste, é inútil contar; se o
não leste, é difícil. Refiro-me à bandeira que apareceu hasteada na sala das
sessões do Conselho, em dia de gala, sem se saber o que era nem quem a tinha
ali posto. Pelo debate viu-se que a bandeira era positivista e que um empregado
superior a havia hasteado, depois de consentir nisso o presidente. O presidente
explicou-se. Um intendente propôs que a bandeira fosse recolhida ao Museu
Nacional, por ser "obra de algum merecimento". Outro chamou-lhe
trapo. O positivismo foi atacado. Crescendo o debate, alargou-se o assunto e as
origens da revolução do Rio Grande do Sul foram achadas no positivismo, bem
como a estátua de Monroe e um episódio do asilo de mendicidade.
Se assim é, explica-se o apostolado antipositivista,
fundado esta semana, e não pode haver maior alegria para o apostolado
positivista; não se faz guerra a fantasmas, a não ser no livro de Cervantes.
Mas que pensa de tudo isto um habitante do planeta Marte, que está espiando cá
para baixo com grandes olhos irônicos?
A bandeira não teve destino, foi a conclusão de tudo,
e não ser de admirar que torne a aparecer no primeiro dia de gala, para da
lugar a nova discussão - cousa utilíssima, pois da discussão nasce a verdade.
Para mim, a bandeira caiu do céu. Sem ela esta página
que começou pedante, acabaria ainda mais pedante.
QUANDO me leres, poucas horas terão passado depois da
tua volta do Cassino. Vieste da festa Alencar, é domingo, não tens de ir aos
teu negócios, ou aos teus passeios, se és mulher, como me pareces. O teus dedos
não são de homem. Mas, homem ou mulher, quem quer que sejas tu, se foste ao
Cassino, pensa que fizeste uma boa obra, e se não foste, pensa em Alencar, que
é ainda uma obra excelente Verás em breve erguida a estátua. Uma estátua por
alguns livros!
Olha, tens um bom meio de examinar se o homem vale o
monumento, etc. É domingo, lê alguns dos tais livros. Ou então, se queres uma
boa ideia dele, pega no livro de Arararipe Júnior, estudo imparcial e completo,
publicado agora em segunda edição. Araripe Júnior nasceu para a crítica; sabe
ver claro e dizer bem. É o autor de Gregório de Matos, creio que basta. Se já
conheces José de Alencar não perdes nada em relê-lo; ganha-se sempre em reler o
que merece, acrescendo que acharás aqui um modo de amar o romancista, vendo-lhe
distintamente todas as feições, as belas e as menos belas, que é perpétuo, e o
que é perecível. Ao cabo, fica sempre uma estátua do chefe dos chefes.
Queres mais? Abre este outro livro recente, Estudos
Brasileiros, de José Veríssimo. Aí tens um capítulo inteiro sobre Alencar, com
particularidade de tratar justamente da cerimônia da primeira pedra do
monumento, e, a propósito dele, da figura do nosso grande romancista nacional.
É a segunda série de estudos que José Veríssimo publica, e cumpre o que diz no
título; é brasileiro, puro brasileiro. Da competência dele nada direi que não
saibas: é conhecida e reconhecida. Há lá certo número de páginas que mostram
que há nele muita benevolência. Não digo quais sejam: adivinha-se o enigma
lendo o livro; se, ainda lendo, não o decifrares, é que me não conheces.
E assim, relendo as críticas, relendo os romances,
ganharás o teu domingo, livre das outras lembranças, como desta ruim semana.
Guerra e peste; não digo fome, para não mentir, mas os preços das cousas são já
tão atrevidos, que a gente come para não morrer.
A peste, essa anda perto, como espiando a gente. Oh!
grão de areia de Cromwell, que vales tu, ao pé do bacilo vírgula? Qualquer
Cromwell de hoje, com infinitamente menos que um grão de areia cai do mais alto
poder da terra no fundo da maior cova. Francamente, prefiro os tempos em que as
doenças, se não eram maleitas, barrigas d'água, ou espinhela caída, tinham
causas metafísicas e curavam-se com rezas e sangrias, benzimentos e
sanguessugas. A descoberta bacilo foi um desastre. Antigamente, adoecia-se;
hoje mata-se primeiro o bacilo de doença, depois adoece-se, e o resto da vida
dá apenas para morrer.
Tantas pessoas têm já visto o bacilo vírgula e toda a
mais pontuação bacilar, que não se me dá dizer que o vi também. Começa a ser
distinção. Um homem capaz não pode já existir sem ter visto, uma vez que seja,
essa extraordinária criatura. O bacilo vírgula é a Sarah Bernhardt da
patologia, o cisne preto dos lagos intestinais, o bicho de sete cabeças, não
tão raro, nem tão fabuloso. Quero crer que todas essas vírgulas que vou
deitando entre as orações, não são mais que bacilos, já sem veneno, temperando
assim a patologia com a ortografia - ou vice-versa.
Quanto à guerra, houve apenas duas noites de combate,
investidas a quartéis e corpos de guarda, nacionais contra policiais, gregos
contra troianos, tudo por causa de uma Helena, que se não sabe quem seja. Ouvi
ou li que foi por causa de um chapéu. É pouco; mas lembremo-nos que assim como
o bacilo vírgula substituiu o grão de areia de Cromwell, assim o chapéu
substitui a mulher, e tudo irá diminuindo.
Somos chegados às cousas microscópicas, não tardam as
invisíveis, até que venham as impossíveis. Um chapéu de palhinha de Itália deu
para um vaudeville; este, de palha mais rude, deu para uma tragédia, Tudo é
chapéu..
Não quero saber de assassinatos, nem de suicídios, nem
das longas histórias que eles trouxeram à hora da conversação; é sempre demais.
Também não vi nem quero saber o que houve com as pernas de um pobre moço no
Catete. que ficaram embaixo de um bond da Companhia Jardim Botânico. Ouvi que
se perderam. Não é a primeira pessoa a quem isto acontece, nem será a última. A
Companhia pode defender-se muito bem, citando Vítor Hugo, que perdeu uma filha
por desastre, e resignadamente comparou a criação a uma roda:
Que la création est une grande roue Qui ne peut se
mouvoir sans écraser quelqu'un.
A mesma cousa dirá a Companhia Jardim Botânico, em
prosa ou verso, mas sempre a mesma cousa: - "Eu sou como a grande roda da
criação, não posso andar sem esmagar alguma pessoa". Comparação enérgica e
verdadeira. A fatalidade do ofício é que a leva a quebrar as pernas aos outros.
O pessoal desta
companhia é carinhoso, o horário pontual, nenhum
atropelo, nenhum descarrilamento, as ordens policiais
contra os reboques são cumpridas tão exatamente, que
não há coração bem formado que não chegue a
entusiasmar-se. Se ainda vemos Dois ou três carros
puxados por um elétrico, é porque a eletricidade atrai irresistivelmente, e os
carros prendem-se uns aos outros; mas a administração estuda um plano que ponha
termo a esse escândalo das leis naturais.
Terras há em que os casos, como os do Catete, são
punidos com prisão, indenização e outras penas: mas para que mais penas, além
das que a vida traz consigo? Demais, os processos são longos, não contando que
a admirável instituição do júri - é a melhor escola evangélica destes
arredores: "Quem estiver inocente, que lhe atire a primeira pedra!"
exclama ele com o soberbo gesto de Jesus. E o réu, seja de ferimento ou simples
estelionato, é restituído ao ofício de roda da criação. O melhor é não punir
nada. A consciência é o mais cru dos chicotes. O dividendo é outro. Uma
companhia de carris que reparta igualmente aleijões ao público e lucros a si
mesma, verá nestes o seu próprio castigo se é caso de castigo; se o não é, para
que fazê-la padecer duas vezes?
Não creio que o período anterior esteja claro. Este
vai sair menos claro ainda, visto que é difícil ser fiel aos princípios e não
querer que o prefeito saia das urnas. A verdade, porém, é que eu prefiro um
prefeito nomeado a um prefeito eleito - ao menos, por ora. José Rodrigues, a
quem consulto em certos casos, vai mais longe, entendendo que os próprios
intendentes deviam ser nomeados. homem de arrocho; o pai era saquarema.
Menos claro que tudo. é este período final. Tem-se
discutido se Hospício Nacional de Alienados deve ficar com o Estado ou tornar à
Santa Casa de Misericórdia. Consultei a este respeito um doudo, que me declarou
chamar-se Duque do Cáucaso e da Cracóvia, Conde Stellario, filho de Prometeu,
etc., e a sua resposta foi esta:
Se é verdade que o Hospício foi levantado com o
dinheiro de loterias e de títulos mobiliários, que o José Clemente chamava
impostos sobre a vaidade, é evidente que o Hospício deve ser entregue aos
doudos, e eles que o administrem. O grande Erasmo (ó Deus!) escreveu que andar
atrás da fortuna e da distinções é uma espécie de loucura mansa; logo, a instituição,
fundada por doudos, deve ir aos doudos,- ao menos, por experiência. É o que me
parece! é o que parece ao grande príncipe Stellario, bispo, episcopus,
papam........ seu a seu dono.
]
UM TELEGRAMA de S. Petersburgo anunciou anteontem que
a bailarina Labushka cometeu suicídio.
Não traz a causa; mas, dizendo que ela era amante do
finado imperador, fica entendido que se matou de saudade.
Que eu não tenha, ó alma eslava, ó Cleópatra sem
Egito, que eu não tenha a lira de Byron para cantar aqui a tua melancólica
aventura! Possuías o amor de um potentado. O telegrama diz que eras amante
"declarada", isto é, aceita como as demais instituições do país. Sem
protocolo, nem outras etiquetas, pela única lei de Eros, dançavas com ele a
redowa da mocidade. Naturalmente eras a professora, por isso que eras bailarina
de ofício; ele, discípulo, timbrava em não perder o compasso, e a Santa Rússia,
que dizem ser imensa, era para vós ambos infinita.
Um dia, a morte, que também gosta de dançar, pegou no
teu imperador e transferiu-o a outra Rússia, ainda mais infinita. A tristeza
universal foi grande, porque era um homem bom e justo, Daqui mesmo, desta
remota capital americana, vimos os grandiosos funerais e ouvimos as lamentações
públicas. Não nos chegaram as tuas, porque há sempre um recanto surdo para as
dores irregulares. Agora, porém, que tudo acabou, eis ai reboa o som de um
tiro, que faltava, para completar os funerais do autocrata. Rival da morte,
quiseste ir dançar com ele a redowa da eternidade.
Há aqui um mistério. Não é vulgar em bailarinas essa
fidelidade verdadeiramente eterna. Muitas vezes choram; estanques as Lágrimas,
recolhem as recordações do morto, outras tintas lágrimas cristalizadas em
diamantes, contam os títulos de dívida pública, estão certos; as sedas são
ainda novas, todos os tapetes vieram da Pérsia ou da Turquia. Se há palacete,
dado em dia de anos, as paredes, que viram o homem, passam a ver tão-somente a
sombra do homem, fixada nos ricos móveis do salão o do resto. Se
não há palacete, há leiloeiros para vender a mobília.
Como levá-la à velha hospedaria de outras terras, Belgrado ou Veneza, aonde a
meia viúva se abriga para descansar do morto, e de onde sai, às vezes, pelo
braço de um marido, barão autêntico e mais autêntico mendigo?
Eis o que se dá no mundo da pirueta. O teu suicídio,
porém, última homenagem, e (perdoem-me a exageração) a mais eloqüente das
milhares que recebeu a memória do imperador, o teu suicídio é um mistério.
Grande mistério, que só o mundo eslavo é capaz de dar. Foi telegrama o que li?
Foi alguma página de Dostoiévski? A conclusão última é que amavas. Sacrificaste
uma aposentadoria grossa, a fama, a curiosidade pública, as memórias que podias
escrever ou mandar escrever, e, antes delas, as entrevistas
para os jornais, os interrogatórios que te fariam
sobre os hábitos do imperador e os teus próprios hábitos, e quantos copos de
chá bebias diariamente, as cores mais do teu gosto, as roupas mais do teu uso,
quem foram teus pais, se tiveste algum tio, se esse tio era alto, se era
coronel, se era reformado, quando se reformou, quem foi o ministro que assinou
a reforma, etc., um rosário de notícias interessantes para o público de ambos
os mundos. Tudo sacrificaste por um mistério.
Mistérios nunca nos aborreceram; a prova é que
folgamos agora diante de Dois mistérios enormes, Dois verdadeiros abismos
(insondáveis). Sempre gostamos do inextrincável. Este país não detesta as
questões simples, nem as soluções transparentes, mas não se pode dizer que as
adore. A razão não está só na sedução do obscuro e do complexo, está ainda em
que o obscuro e o complexo abrem a porta à
controvérsia. Ora, a controvérsia, se não nasceu
conosco, foi pelo fato inteiramente fortuito, de haver nascido antes; se se não
tem apressado em vir a este mundo, era nossa irmã gêmea; se temos de a deixar
neste mundo, é porque ainda cá ficarão homens. Mas vamos aos nossos Dois
mistérios.
O primeiro deles anda já tão safado, que até me custa
escrever o .nome; é o câmbio. Está outra vez no "tapete da
discussão". O segundo é recente, é novíssimo, começa a entrar no debate; é
o bacilo vírgula.
Os mistérios da religião não nos ascendem uns contra
os outros; para crer neles basta a fé, e a fé não discute. Os do encilhamento
aturdiram por alguns dias ou semanas; mas desde que se descobriu que o dinheiro
caía do céu, o mistério perdeu a razão de ser. Quem, naquele tempo, pôs uma
cesta, uma gamela, uma barrica, uma vasilha qualquer, no luar ou às estrelas, e
achou-se de manhã com cinco, dez, vinte mil contos, entendeu logo que só por
falsificação é que fazemos dinheiro cá embaixo. Ouro puro e copioso é que cai
do eterno azul.
Eu, quando era pequenino, achei ainda uma usança da
noite de São João. Era expor um copo cheio d'água ao sereno, e despeja dentro
um ovo de galinha. De manhã ia-se ver a forma do ovo; se era navio, a pessoa
tinha de embarcar; se era um casa, viria a ser proprietária, etc. Consultei uma
vez o bom do santo; vi, claramente visto - vi um navio; tinha de embarcar.
Ainda não embarquei, mas enquanto houver navios no mar, não perco a esperança.
Por ocasião do encilhamento, a maior parte das pessoas, não podendo sacudir
fora as crenças da meninice, não punham gamelas vazias ao sereno, mas um copo
com água e ovo. De manhã, viam navios, e ainda agora não vêem outra coisa. Por
que não puseram gamelas? Vivam as gamelas! Ou, se é lícito citar versos,
digamos com o cantor d'Os Timbiras.
........ Paz aos Gamelas
Renome e glória...
Há quem queira filiar o câmbio aos costumes do
encilhamento. A pessoa que me disse isto, provavelmente soube explicar-se; eu é
que não soube entendê-la. É uma complicação de dinheiro que se ganha ou se
perde, sem saber como, anonimamente, com resignação geral de baixistas e
altistas. Um embrulho. Mas há de ser ilusão, por força. Quem se lembra daqueles
belos dias do encilhamento, sente que eles acabaram, como os belos dias de
Aranjuez. Onde está agora o delírio? onde estão as imaginações? As estradas na
lua, o anel de Saturno, a pele de ursos polares, onde vão todos esses sonhos
deslumbrantes, que nos fizeram viver, pois que a vida es sueño, segundo o
poeta?
Tais sonhos ainda são possíveis com o mistério do
bacilo vírgula. Toda esta semana andou agitado esse bicho da terra tão pequeno,
para citar outro poeta, o terceiro ou quarto que me vem ao bico da pena. Há
dias assim; mas eu suponho que hoje esta afluência de lembranças poéticas é
porque a poesia é também um mistério, e todos os mistérios são mais ou menos
parentes uns dos outros. Suponho, não afirmo;
depois do que tenho lido sobre o famoso bacilo, não
afirmo nada; também não nego. Autoridades respeitáveis dizem que o bacilo mata,
pelo modo asiático; outras também respeitáveis juram que o bacilo não mata.
Hippocrate
dit oui, et Gallien dit non.
A SEMANA acabou fresca, tendo começado e continuado
horrivelmente cálida. Até quinta-feira à noite ninguém podia respirar.
Sexta-feira trouxe mudança de tempo e baixa de temperatura. O fenômeno
explicar-se-ia naturalmente, em qualquer ocasião, mas houve uma coincidência
que me leva a atribuí-lo a causas transcendentais. Se cuidas que aludo ao
encerramento do Congresso Nacional, enganaste. O calor do Congresso tinha-se
ido, há muito, com a Câmara dos Deputados. O Senado, apesar da troca de regímen
e do mínimo da idade, há de ser sempre a antiga Sibéria, pelo próprio caráter
da instituição. Não, a causa foi outra.
A causa foi o banquete que o ministro da Suécia e
Noruega deu aos comandantes e oficiais da corveta e da canhoneira ancoradas no
nosso porto, banquete a que assistiram os cônsules da Holanda e da Dinamarca.
Homens do Norte, amassados com gelo, curtidos com ventos ásperos, uma vez
reunidos à volta da mesa, comunicaram uns aos outros as sensações antigas, e,
por sugestão, transportaram para aqui algumas braçadas daqueles climas remotos.
Estando em dezembro, evocaram o seu inverno deles, que não é o nosso moço
lépido de S. João, mas um velho pesado do Natal. Já antes da sopa, deviam
tremer de frio. Eu próprio, ao ler-lhes os nomes, levantei a cola do fraque. Os
bigodes pingavam neve. As rajadas de vento levavam os guardanapos.
Tendo sido na noite de quarta-feira o banquete
escandinavo, o nosso céu ainda resistiu durante a quinta-feira, e com tal
desespero que parecia queimar tudo; mas na sexta-feira já não pôde, e não teve
remédio senão chover e ventar. Não choveu, nem ventou muito, não chegou a
nevar, mas fez-nos respirar, e basta. O que talvez não baste é a explicação.
Espíritos rasteiros não podem aceitar razões de certa elevação, mas com esses
não se teima. Faz-se o que fiz sexta-feira ao meu criado, quando ele me entrou
no gabinete para anunciar que não havia carne. Trazia os cabelos em pé, os
olhos esbugalhados, a boca aberta, e só falou depois que a minha frieza,
totalmente escandinava, não correspondendo a tanto assombro, acendeu nele o
desejo de me dar a grande novidade. Eu, cada vez mais escandinavo,
respondia-lhe que, se havia carne, havia outras cousas. Não contestou a
sabedoria da resposta. mas confessou que a razão do espanto e consternação em
que vinha, era o receio de não haver mais carne neste mundo.
- Não entendo de leis, concluiu José Rodrigues, cuidei
que era alguma lei nova que mandava acabar com a carne ...
Este José Rodrigues é bom, é diligente, respeitoso,
mas coxeia do intelecto, não que seja doudo, mas é estúpido. Não digo burro:
burro com fala seria mais inteligente que ele. Ontem, depois do almoço, veio
ter comigo, trazendo uma folha na mão:
- Patrão, leio aqui estes Dois anúncios: "Para
tosses rebeldes, xarope de jaramacaru". - "Para intendente municipal,
Calixto José de Paiva". Qual destes Dois remédios é melhor? E que moléstia
é essa que nunca vi?
- Tu és tolo, José Rodrigues.
- Com perdão da palavra, sim, senhor.
- Pois se as moléstias são duas, como é que me
perguntas qual dos remédios é melhor? É claro que ambos são bons, um para
tosses rebeldes, outro para intendente municipal.
- E esta moléstia é como a neurastenia, que o patrão
me ensinou a dizer, e ainda não sei se digo direito, - a tal moléstia nova, que
é bem antiga, é a que chamávamos espinhela caída. Ou intendente será assim
cousa de dentes? ... O patrão desculpe; eu não andei por escolas; não aprendi
leis nem medicina...
- José Rodrigues, há cousas que, não se entendendo
logo, nunca mais se entendem. Onde andas tu que não sabes o que é intendente?
Sabes o que é vereador?
- Vereador, sei; é o homem que o povo põe na Câmara
para ver as cousas da cidade, a limpeza, a água, as lampiões.
- Pois é a mesma cousa.
- A mesma cousa? Entendo; é como a espinhela caída,
que hoje se chama anatomia ou neurastenia. Pois, sim, senhor. Intendente o
mesmo que vereador. Cura-se então com o Paiva do anúncio? Mas se o Paiva é
remédio, conforme diz o patrão, não entendo que se aplique a neurastenia ou
intendente ...
- Tu não estás bom, José Rodrigues; vai-te embora.
- Para dizer a minha verdade, bom, bom, não estou;
amanheci com uma dor do lado, que não posso respirar, e é por isso que vim
perguntar ao patrão se era melhor o xarope, se o Paiva. Talvez Paiva seja mais
barato que o xarope. Isto de remédios, não é o serem mais caros ... As vezes os
mais caros não prestam para nada, e um de pouco preço cura que faz gosto. Mas,
enfim, não faço questão de preço. A saúde merece tudo: Vou ao Paiva... isto é,
o jornal fala também de um Canedo, para a mesma moléstia ...
Não é Canedo que se diz? Talvez o Canedo seja ainda
mais barato que o Paiva.
- Isto é cousa que só à vista das contas do boticário.
Toma o que puderes; mas, antes disso, faz-me um favor. Vai ver se estou no
Largo da Carioca.
- Sim, senhor... Se não estiver, volto?
- Espera primeiro até às cinco horas; se até às cinco
horas não me achares, é que eu não estou, e então volta para casa.
- Muito bem; mas se o patrão lá estiver, que quer que
lhe faça?
- Puxa-me o nariz.
- Ah! isso não! Confianças dessas não são comigo.
Gracejar, gracejo e o patrão faz-me o favor de rir;
mas não se puxa o nariz a um homem ...
- Bem, dá-me então as boas tardes e vem-te embora para
casa.
- Perfeitamente.
Enquanto ele ia ao Largo da Carioca, fui-me eu às
notas da semana, e não achei mais nada que valesse a pena, salvo o planeta que
se descobriu entre Marte e Mercúrio. Mas isso mesmo, para quem não é astrônomo,
vale pouco ou nada; não que as grandezas do céu estejam trancadas aos olhos
ignaros, francas, estão, e o ínfimo dos homens pode admirá-las. Não é isto; é
que um astrônomo diria sobre este novo planeta cousas importantes. Que direi
eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que
aparecem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos. A Calábria
padeceu mais com eles que com os salteadores; pouco é o chão seguro debaixo dos
pés das belas italianas ou do fortíssimo Crispi. Na Hungria houve um tremor há Dois
dias; outras partes do mundo têm sido abaladas.
Andará a terra com dores de parto, e alguma cousa vai
sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o
planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos tremores italianos?
Assim, podemos fazer uma astronomia nova; todos os planetas são filhos do
consórcio da terra e do sol, cuja primogênita é a lua, anêmica e solteirona. Os
demais planetas nasceram pequenos, cresceram com os anos, casaram e povoaram o
céu com estrelas. Aí está uma astronomia que Júlio Verne podia meter em
romances, e Flammarion em décimas.
Também se pode tirar daqui uma política internacional.
Quando a África e o que resta por ocupar e civilizar, estiver, ocupado e
civilizado, os planetas que aparecerem, ficarão pertencendo aos países cujas
entranhas houverem sido abaladas na ocasião com terremotos; são propriamente
seus filhos. Restará conquistá-los; mas o tetraneto de Édison terá resolvido
este problema, colocando os planetas ao alcance dos homens, por meio de um
parafuso elétrico e quase infinito.
A SORTE é tudo. Os acontecimentos tecem-se como as
peças de teatro, e representam-se da mesma maneira. A única diferença é que não
há ensaios; nem o autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, começa
a representação, e todos sabem os papéis sem os terem lido. A sorte é o ponto.
Esse pequeno exórdio é a melhor explicação que posso dar do drama da Praça da
República, e a mais viva condenação da teimosia com que alguns jornais pediram
a demolição dos pavilhões e arcos das festas uruguaias. Ainda bem que não
pediram também a eliminação de três grinaldas de folhas, secas, já sem cara de
folhas, que ainda pendem dos arcos de gás na Rua de S. José. Oh! não me tirem
essas pobres grinaldas! Não fazem mal a ninguém, não tolhem a vista, não
escondem e são verdadeiras máximas.
Quando desço por ali, com a memória cheia de algumas
folhas verdes que vieram comigo, no bond, acontece-me quase sempre parar diante
delas. E elas dizem-me cousas infinitas sobre a caducidade das folhas verdes, e
o prazer com que as ouço não tem nome na terra nem provavelmente no céu. Ergo
bibamus! E aí me vou contente ao trabalho. Não é novo o que elas dizem, nem
serão as últimas que o dirão. A banalidade repele-se de século a século, e irá
até à consumação dos séculos; não é folha que
perca o viço.
Vindo ao pavilhão da Praça da República, o
acontecimento de quinta-feira provou que ele era necessário, porque a sorte,
que rege este mundo, já estava com o drama nas mãos para apontá-lo aos atores!
E os atores foram cabais no desempenho. O gatuno que resistiu ao ataque de
alguns homens de boa vontade dava um magnífico bandido. Um simples gatuno, não
defende com tanto ardor a liberdade, posto que a liberdade seja um grande
benefício. As armas do gatuno são as pernas. Ele foge ao clamor público, à
espada da polícia, à cadeia; pode dar um cascudo, um empurrão; matar, não mata.
É certo que o tal Puga não podia fugir; mas os Pugas de lenços e outras
miudezas, em casos tais, não tendo por onde fugir, entregam-se; preferem a
prisão simples aos complicados remorsos. A própria casa, apólices, terrenos e
outros bens, havidos capciosamente, não tiram o sono. O sangue, sim, o sangue
perturba as noites.
Daí veio a suspeita de ser este Puga doudo - e parece
confirmá-la a declaração que ele fez de chamar-se Jesus Cristo. A declaração
não basta, e podia ser um estratagema; mas há tal circunstância que me faz crer
que ele é deveras alienado: é ser espanhol. Os bandidos espanhóis, embora
salteiem e despojem a gente, não deixam de respeitar a religião. Dizem que
levam bentinhos consigo, ouvem missas, quase que confessam os seus pecados.
A tragédia, se deveras é doudo, foi assim mais
trágica. Essa luta em um desvão, entre um louco e alguns homens valentes, um dos
quais morreu e os outros saíram feridos, deve ter sido extraordinariamente
lúgubre. Tal espetáculo, é claro, estava determinado. Era preciso que fosse em
lugar que pudesse conter o milhar de espectadores que teve; logo, a Praça da
República; devia ser o alto de edifício vazio e livre, para onde só se pudesse
ir por uma escada de mão; logo, o pavilhão das festas. Tudo vinha assim
disposto, era só cumpri-lo à risca.
Os espectadores, que também fizeram parte do
espetáculo, desempenharam bem o seu papel, mas parece que o haviam aprendido em
Shakespeare. Assim é que, simultaneamente, aplaudiram os corajosos que subiam a
escada de mão, e apupavam os que iam só a meio caminho e desciam amedrontados.
Aclamações e assobios, de mistura, enchiam os ares,
até a cena final, quando o Puga, subjugado, desceu ferido também. Aí
Shakespeare cedeu o passo a Lynch, outro trágico, sem igual gênio, mas com a
mesma inconsciência do gênio, cujo único defeito é não ter feito mais que uma
tragédia em sua vida. A polícia interveio para se não representar outra peça,
e, se salvou a vida ao Puga, praticou um ato muito menos liberal, que foi
restaurar a censura dramática.
Ao enterramento do soldado que acabou a vida naquela
luta, creio que acompanhou menos gente, os que pegaram no caixão, e alguns
amigos particulares, se é que os tinha. O cocheiro acompanhou porque ia guiando
os burros. Concluamos que o homem ama a luta e respeita a morte; entusiasta
diante do herói, fica naturalmente triste e solitário diante do cadáver, e
deixa-o ir para onde todos havemos de ir, mais tarde ou mais cedo.
Resumindo, direi ainda mais uma vez que a sorte é
tudo, e não são os livros que têm os seus fados.
Também os têm os arcos e os pavilhões. Que digo?
Também os têm as próprias palavras. Há dias, o Sr. General Roberto Ferreira,
referindo-se a uma notícia, encabeçou o seu artigo com estas palavras: Consta,
não; é exato. E todos discutiram o artigo, afirmando uns que constava, outros
que era exato. A reflexão que tirei daí foi longa e profunda, não por causa da
matéria em si mesma, não é comigo, mas por outra cousa que vou dizer, não tendo
segredos para os meus leitores.
Conheço desde muito o velho Constar, era eu bem
menino; lembra-me remotamente que foi um carioca, Antônio de Morais Silva, que
o apresentou em nossa casa. Velho, disse eu! Na idade, era-o; mas na pessoa era
um dos mais robustos homens que tenho visto. Alto, forte, pulso grosso,
espáduas longas; dir-se-ia um Atlas. O moral correspondia ao físico. Era
afirmativo, autoritário, dogmático. Quando referia um caso, havia de crer-se
por força. As próprias histórias da carocha, que contava para divertir-nos,
deviam ser aceitas como fatos autênticos. O carioca Morais, que tenho grande fé
nele, dizia que era assim mesmo, e ninguém podia descrer de um, que era
arriscar-se a levar um peteleco de ambos.
Poucos anos depois, tornando a vê-lo, caiu-me a alma
aos pós a alma e o chapéu, porque ia justamente cumprimentá-lo, quando lhe ouvi
dizer com a voz trêmula e abafada: "Suponho ... ouvi que ... dar-se-á que
seja? ... Tudo é possível". Não me conhecia! Respondi-lhe que era eu
mesmo, em carne e osso, e indaguei da saúde dele. Algum tempo deixou vagar os
olhos em derredor, cochilou do esquerdo, depois do direito, e com um grande
suspiro, redargüiu que ouvira dizer que ia bem, mas não podia afirmá-lo; era
matéria incerta. "Macacoa", disse-lhe eu rindo para animá-lo.
"Também não, isto é, creio que não", respondeu o homem. Dei-lhe o
braço, e convidei-o a ir tomar café ou sorvete. Hesitou, mas acabou aceitando.
Conversamos cerca de meia hora. Deus de misericórdia!
Não era já o dogmático de outro tempo, cujas afirmações, como espadas, cortavam
toda discussão. Era um velho tonto, vago, dubitativo, incerto do que via, do
que ouvia, do que bebia. Tomou um sorvete, crendo que era café e achou o café
extremamente gelado. Há sorvetes de café, disse eu, para ver se o traria à
afirmação antiga; concordou que sim, embora pudesse ser que não. Um cético! um
triste cético!
Que é isto senão a sorte? A sorte, e só ela, tirou ao
velho Constar o gosto das ideias definitivas e dos fatos averiguados. A sorte,
e só ela, decidirá da eleição do dia 6 de janeiro. Podem contar, somar e
multiplicar os votos; a eleição há de ser o que ela quiser. A peça está pronta.
Não nos espantemos do que
virmos; preparemo-nos para analisar as cenas, os
lances, o diálogo, porque a peça está feita.
A sorte acaba de golpear-me cruamente. Sempre cuidei
que o meu silêncio modesto e expressivo indicasse ao Sr. Presidente da
República onde estava a pessoa mais apta (posso agora dizê-lo sem modéstia).
para o cargo de prefeito. S. Ex.a não me viu. Outrageons Fortune! Tu és a causa
desta prescrição. Sem ti, o prefeito era eu, e eu te pagaria, sorte afrontosa,
elevando-te um templo no mesmo
lugar onde está o pavilhão das festas uruguaias.
SE A PEDRA de Sísifo não andasse já tão gasta, era boa
ocasião de dar com ela na cabeça dos leitores, a propósito do ano que começa.
Mas tanto tem rolado esta pedra, que não vale um dos paralelepípedos das nossas
ruas. Melhor é dizer simplesmente que aí chegou um ano, que veio render o
outro, montando guarda às nossas esperanças, à espera que venha rendê-lo outro
ano, o de 1896, depois o de 1897, em seguida o de 1898, logo o de 1899, enfim o
de 1900...
Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta
mesma coluna o sol do século XX! Que belas cousas que ele há de dizer,
erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e
folhas, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, cousas que não trará
consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens,
dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é ofício de pacíficos.
A doutrina microbiana, vencedora na patologia, será
aplicada à política, e os povos curar-se-ão das revoluções e maus governos,
dando-se-lhes um mau governo atenuado e logo depois uma injeção
revolucionária. Terão assim uma pequena febre, suarão
um tudo nada de sangue e no fim de três dias estarão curados para sempre.
Chamfort, no século XVII, deu-nos a célebre definição da sociedade, que se compõe
de duas classes, dizia ele, uma que tem mais apetite que jantares, outra que
tem mais jantares que apetite.
Pois o século XX trará a equivalência dos jantares e
dos apetites, em tal perfeição que a sociedade, para fugir à monotonia e dar
mais sabor à comida, adotará um sistema de jejuns voluntários. Depois da fome,
o amor. O amor deixará de ser esta cousa corrupta e supersticiosa; reduzido à
função pública e obrigatória, ficará com todas as vantagens, sem nenhum dos
ônus. O Estado alimentará as mulheres e educará os filhos, oriundos daquela
sineta dos jesuítas do Paraguai, que o Senador Zacarias fez soar um dia no
Senado, com grave escândalo dos anciãos colegas. Grave é um modo de dizer, o
escândalo é outro. Não houve nada, a não ser o escuto explosivo da citação,
caindo da boca de homem não menos austero que eminente.
Mas não roubemos o cronista do mês de janeiro de 1900.
Ele, se lhe der na cabeça, que diga alguma palavra dos seus antecessores, boa
ou má, que é também um modo de louvar ou descompor o século extinto. Venhamos
ao presente.
O presente é a chuva que cai menos que em Petrópolis,
onde parece que o dilúvio arrasou tudo, ou quase tudo, se devo crer nas
notícias; mas eu creio em poucas cousas, leitor amigo. Creio em ti, e ainda
assim é por um dever de cortesia, não sabendo quem sejas, nem se mereces algum
crédito. Suponhamos que sim. Creio em teu avô, uma vez que és seu neto, e se já
é morto; creio ainda mais nele que em ti. Vivam os mortos! Os mortos não nos
levam os relógios. Ao contrário, deixam os relógios, e são os vivos que os
levam, se não há cuidado com eles. Morram os vivos!
Podeis concluir daí a disposição em que estou.
Francamente, se esta chuva que vai refrescando o verão, fosse, não digo um
dilúvio universal, mas uma calamidade semelhante à de Petrópolis, eu aplaudiria
d'alma, contanto que me ficasse o gosto do poeta, e pudesse ver da minha janela
o naufrágio dos outros.
Hoje há aqui, na capital da União, grandes naufrágios
de alguns salvamentos. Falo por metáfora, aludo às eleições. Recompõe-se a
intendência, e os primeiros naufrágios estão já decretados, são os intendentes
antigos. Com todo o respeito devido à lei, não entendi bem a razão que
determinou a incompatibilidade dos intendentes que acabaram. Só se foi
política, matéria estranha às minhas cogitações; mas indo só pelo juízo
ordinário, não alcanço a incompatibilidade dos antigos intendentes. Se eram
bons, e fossem eleitos, continuávamos a gozar das doçuras de uma boa
legislatura municipal. Se não prestavam para nada, não seriam refeitos; mas
supondo que o fossem, quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É
um direito anterior e superior a todas as leis. Assim se perde a liberdade.
Hoje impedem-me de meter um pulha na intendência, amanhã proíbem-me andar com o
meu colete de ramagens, depois de amanhã decreta-se o figurino municipal.
Entretanto (vede as inconseqüências de um espírito
reto!), entretanto, foi bom que se incompatibilizassem os intendentes; não
incompatibilizados, era quase certo que seriam eleitos, um por um, ou todos ao
mesmo tempo, e eu não teria o gosto de ver na intendência Dois amigos
particulares, um amigo velho, e um amigo moço, um pelo 2º distrito,
outro pelo 3º, e não digo mais para
não parecer que os recomendo. São do primeiro turno.
Mas deixemos a política e voltemo-nos para o
acontecimento literário da semana, que foi a Revista Brasileira. É a terceira
que com este título se inicia. O primeiro número agradou a toda gente que ama
este gênero de publicações, e a aptidão especial do Sr. J. Veríssimo, diretor
da Revista, é boa garantia dos que se lhe seguirem. Citando os nomes de Araripe
Júnior, Afonso Arinos, Sílvio Romero, Medeiros e Albuquerque, Said Ali e
Parlagreco, que assinam os trabalhos deste número, terei dito quanto baste para
avaliá-lo. Oxalá que o meio corresponda à obra. Franceses, ingleses e alemães
apóiam as suas publicações desta ordem, e, se quisermos ficar na América, é
suficiente saber que, não hoje, mas há meio século, em 1840, uma revista para a
qual entrou Poe, tinha apenas cinco mil assinantes, os quais subiram a
cinqüenta e cinco mil, ao fim de Dois anos. Não paguem o talento, se querem;
mas dêem os cinco mil assinantes à Revista Brasileira. É ainda um dos melhores
modos de imitar New York.
A AUTORIDADE recolheu esta semana à detenção duas
feiticeiras e uma cartomante, levando as ferramentas de ambos os ofícios.
Achando-se estes incluídos no código como delitos, não fez mais que a sua
obrigação, ainda que incompletamente. A minha questão é outra. As feiticeiras
tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte
réis, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feijão, arroz, farinha,
sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de frangos. Uma delas, porém, chamada
Umbelina, trazia no bolso não menos de quatrocentos e treze mil-réis. Eis o
ponto. Peço a atenção das pessoas cultas.
Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o
mais vai pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode
ser considerado delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que
pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os
mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos não falam de feitiçaria, mas de
furto. A feitiçaria, por isso mesmo que não está entre o homicídio e a
impiedade, é delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam,
é preciso examinar a sua afirmação, comparar o ato ao rendimento, e concluir.
Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas
crédulas. Sou indigno de criticar um código, mas deixem-me perguntar ao autor
do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto,
posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do
povo: "O nariz do povo é a sua imaginação; por ele é que a gente pode
levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser".
O que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o
seu próprio nariz. Como fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua,
se nós podemos puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais
que no fim do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns fizeram
virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo
de papel um palácio de mármore é o mesmo que dar um verdadeiro amor com Dois
pés de galinha. A feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas
bugigangas, talvez a ceroula velha e há
facultativo (não digo competente) que faz a mesma
cousa, levando a ceroula nova. Que razão há para fazer de um ato malefício, e
benefício de outro?
O código, como não crê na feitiçaria, faz dela um
crime, mas quem diz ao código que a feiticeira não é sincera, não crê realmente
nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A psicologia do código é curiosa.
Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo
verdade, não há quem creia outras verdades - como se a verdade fosse uma só e
tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao
que fica; e não falemos da cartomante, em quem se não achou dinheiro,
provavelmente porque o tem na caixa econômica. Relativamente às cartomantes,
confesso que não as considero como as feiticeiras. A cartomante nasceu com a
civilização, isto é, com a corrupção, pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é
natural do homem; vede as tribos primitivas. Que também o é da mulher,
confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa extremamente grave, já há de ter
chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na cadeia
uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem mais
ainda que cabeças de frangos ou pés de galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria
necessário indagar o ponto de semelhança, e não estou de alma inclinada à
demonstração. Nem à simples narração, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao
sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com grandes desejos de acudir à
feitiçaria, é que me dói (sempre o interesse pessoal!) a prisão das duas
mulheres. Talvez a moeda de dez réis me desse saúde, não digo uma só moeda, mas
um milhão delas.
Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de
Vila Isabel, outra feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema
tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila
Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa, e sem trabalho,
tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa e sem trabalho, tudo sem
trabalho, não contando a viagem de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se
mais do que se perde, e tal é o segredo que esses bons animais trouxeram da
natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e moderna, ainda não
alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos bichos dá mais dos quatrocentos e treze
mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já
disse, não vou adiante. A pena cai-me. Não trato sequer da política, aliás
assunto que dá saúde. Há quem creia que ela é uma bela feitiçaria, e não falta
quem acrescente que nesta, como na outra, o povo não pode nem anda desnarigado;
é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem
muitos. Ser-me-ia preciso examinar este ponto longamente, profundamente,
independentemente, e não há em mim agora profundeza. nem independência, nem me
sobra tempo para tais estudos. Eu aprecio esta instituição que exprime a grande
ideia do julgamento pelos pares; examina-se o fato sem prevenção de
magistrados, nem câmara própria de ofício, sem nenhuma atenção à pena. O crime
existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis ainda mais.
Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto
particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os pés, enquanto que
um bom par de sapatos folgados é como os dos próprios anjos guerreiros, Miguel,
etc., etc., etc.
DIVINO EQUINÓCIO, nunca me hei de esquecer que te devo
a ideia que vou comunicar aos meus concidadãos. Antes de ti, nos três primeiros
dias hórridos da semana, não é possível que tal ideia me brotasse do cérebro.
Depois, também não. Conheço-me, leitor. Há quem pense, transpirando; eu, quando
transpiro, não penso. Deixo essa função ao meu criado, que, do princípio ao fim
do ano pensa sempre, embora seja o contrário do que me é agradável; por
exemplo, escova-me o chapéu às avessas.
Naturalmente, ralho.
- Mas, patrão, eu pensava...
- José Rodrigues, brado-lhe exasperado; deixa de
pensar alguma vez na vida.
- Há de perdoar, mas o pensamento é influência que vem
dos astros; ninguém pode ir contra eles.
- Ouço, calo-me e vou andando. Nos dias que correm,
ter um criado que pense barato, é tão rara fruta, que não vale a pena discutir
com ele a origem das ideias. Antes mudar de chapéu que de ordenado.
A ideia que tive quinta-feira, em parte se pode
comparar ao chapéu escovado de encontro ao pêlo; mas será culpa da escova ou do
chapéu? Cuido que do chapéu. O dia correu fresco, a noite fresquíssima. As
estrelas fulguravam extraordinariamente, e se o meu criado tem razão, foram
elas que me influíram o pensamento. Saí para a rua. Havia próximo umas bodas. A
casa iluminada chamava a atenção pública, muita gente fora, moças
principalmente, que não perdem festas daquelas, e correm à igreja, às portas, à
rua, para ver um noivado. Qualquer pessoa de mediano espírito cuidará que era
este assunto que me preocupava. Não, não era; cogitava eleitoralmente, ao passo
que rompia os grupos, perguntava a mim mesmo: Por que não faremos uma reforma
constitucional?
Fala-se muito em eleições violentas e corruptas, a bico
de pena, a bacamarte, a faca e a pau. Nenhuma dessas palavras é nova aos meus
ouvidos. Conheço-as desde a infância. Crespas são deveras; na entrada do
próximo século é força mudar de método ou de nomenclatura. Ou o mesmo sistema
com outros nomes, ou estes nomes com diversa aplicação. Como em todas as
cousas, há uma parte verdadeira na acusação, e outra falsa, mas eu não sei onde
uma acaba, nem onde outra começa. Pelo que respeita à fraude, sem negar os seus
méritos e proveitos, acho que algumas vezes podem dar canseiras inúteis.
Quanto à violência, sou da família de Stendhal, que
escrevia com o coração nas mãos: Mon seul défaut est de ne pas aimer le sang.
Não amando o sangue, temendo as incertezas da fraude,
e julgando as eleições necessárias, como achar um modo de as fazer sem nenhum
desses riscos? Formulei então um plano comparável ao gesto do meu criado,
quando escova o chapéu às avessas. Suprimo as eleições. Mas como farei as
eleições, suprimindo-as? Faço-as conservando-as. A ideia não é clara; lede-me
devagar.
Sabeis muito bem o que eram os pelouros antigamente.
Eram umas bolas de cera, onde se guardavam, escritos em papel, os nomes dos
candidatos à vereação; abriam-se as bolas no fim do prazo da lei, e os nomes
que saíam, eram os escolhidos para a magistratura municipal. Pois este processo
do antigo regímen é o que me parece capaz de substituir o atual mecanismo,
desenvolvido, adequado ao número de eleitos. Um grave tribunal ficará incumbido
de escrever os nomes, não de todos os cidadãos que tiverem
condições de elegibilidade, mas só daqueles que, três
ou seis meses antes, se declararem candidatos.
Outro tribunal terá a seu cargo os pelouros, ler os
nomes, escrevê-los, atestá-los, proclamá-los e publicá-los. Esta é a metade da
minha ideia.
A outra metade é o seu natural complemento. Com
efeito, restaurar os pelouros, sem mais nada, seria desinteressar o cidadão da
escolha dos magistrados e universalizar a abstenção. Quem quereria sair de casa
para assistir à estéril cerimônia da leitura de nomes? Poucos, decerto,
pouquíssimos. Acrescentai a gravidade o tribunal e teremos um espetáculo
próprio para fazer dormir. Não tardaria que um partido se organizasse pedindo o
antigo processo, com todos os seus riscos e perigos, far-se-ia provavelmente
uma revolução, correria muito sangue, e este aparelho, restaurado para eliminar
o bacamarte, acabaria ao som do bacamarte.
Eis o complemento. O meneio das palavras será nem mais
nem menos o dos bichos do Jardim Zoológico. O cidadão, em vez de votar, aposta.
Em vez de apostar no gato ou no leão, aposta no Alves ou no Azambuja. O
Azambuja dá, o Alves não dá, distribuem-se os dividendos aos devotos do
Azambuja. Para o ano dará o Alves, se não der o Meireles.
Nem há razão para não amiudar as eleições, fazê-las
algumas vezes semestrais, bimestrais, mensais, quinzenais, e, tal seja a
pouquidade do cargo, semanais. O espírito público ficará deslocado; a opinião
será regulada pelos lucros, e dir-se-á que os princípios de um partido nos
últimos Dois anos têm sido mais favorecidos pela Fortuna que os princípios
adversos. Que mal há nisso? Os antigos não se regeram pela Fortuna? Gregos e
romanos, homens que valeram alguma cousa, confiavam a essa deusa o governo da
República. Um deles (não sei qual) dizia que três poderes governam este mundo:
Prudência, Força e Fortuna. Não podendo eliminar esta, regulemo-la.
O interesse público será enorme. Haverá palpites,
pedir-se-ão palpites; far-se-á até, se for preciso, uma legião de adivinhos,
incumbidos de segredar aos cidadãos os nomes prováveis ou certos. Haverá folhas
especiais, bonds especiais, botequins especiais, onde o cidadão receba um
refresco e um palpite, deixando Dois ou três mil-réis. Esta quantia parece ser
mais, e é menos que os mil e duzentos homens que acabam de morrer nas ruas de
Lima. Sendo as pequenas revoluções, em substância, uma questão eleitoral,
segue-se que o meu plano zoológico é preferível ao sistema de suspender a
matança de tanta gente, por intervenção diplomática. A zoologia exclui a
diplomacia e não mata ninguém. Mon seul défaut, etc.
CONTO-DO-VIGÁRIO
DE QUANDO em quando aparece-nos o conto-do-vigário.
Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores
da composição puderam receber integralmente os lucros do editor.
O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção
que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso
da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido,
foi o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver
quanto ao caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe
desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo
de que muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de
umas varas de plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a
um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas
varas, e os filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela
finura do genro; mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir,
ao passo que Jacó passa por um varão arguto e hábil.
O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro
do Chiaque, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe
perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali
apareceu também, tinha notícia da rua indicada.
Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado
da Bahia com vinte contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixar
dezesseis para os náufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se
encarregasse da entrega.
Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia
tão boa ocasião de ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não,
nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para
ir com ele depositar na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos,
ficando-lhe os quatro de remuneração.
- Não é preciso que o acompanhe, respondeu o
desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar
a este o que traz aí consigo.
- Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o
dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu
perfeitamente que este o juntou ao maço dos vinte; ação análoga à das varas de
Jacó.
O fazendeiro pegou do maço todo, despediu-se e guiou
para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria ficado com o dinheiro, sem
curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria
mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão, e tratou de dar os
dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi então que viu que
todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era de uma só cor,
como as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume.
A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o
fazendeiro do Chiador correu logo à polícia; é o que fazem todos ... Mas a
polícia, não podendo ir à cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de
pessoas hábeis em fugir, como os heróis dos melodramas, não fez mais que
distribuir o segundo milheiro do conto-do-vigário, mandando a notícia aos
jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher
os exemplares da primeira edição.
Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia
que podem escrever estudando o conto-do-vigário pelos séculos atrás, as suas
modificações segundo o tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve
ser imensa. É seguramente maior o número das tragédias, tanta é a gente que se
tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo
sol, desde as batalhas de Josué até aos combates das ruas de Lima, onde as
autoridades sanitárias, segundo telegramas de ontem, esforçam-se grandemente
por sanear a cidade "empestada pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar
livre". Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detestável
fedor de gente morta não custa a vitória de um princípio. O conto é menos
numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente
nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia à obra, é a feitura dela.
O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, mas
é conto, um conto
especial, tão célebre como os outros, e mais lucrativo
que nenhum.
NADA HÁ PIOR que oscilar entre Dois assuntos. A semana
santa chama-me para as cousas sagradas, mas uma ideia que me veio do Amazonas
chama-me para as profanas, e eu fico sem saber para onde me volte primeiro.
Estou entre Jerusalém e Manaus; posso começar pela cidade mais remota, e ir
depois à mais próxima; posso também fazer o contrário.
Havia um meio de combiná-las: era meter-me em uma das
montarias ou igarités do Amazonas, com o meu amigo José Veríssimo, e deixar-me
ir com ele, rio abaixo ou acima, ou pelos confluentes, à pesca do pirarucu, do
peixe-boi, da tartaruga ou da infinidade de peixes que há no grande rio e na
costa marítima.
Não podia ter melhor companheiro; pitoresco e exato,
erudito e imaginoso, dá-nos na monografia que acaba de publicar, sob o título A
Pesca na Amazônia, um excelente livro para consulta e deleite. Como se trata do
pescado amazônico e acabamos a semana santa, iria eu assim a Jerusalém e a
Manaus, sem sair do meu gabinete. Mas o bom cristão acharia que não basta pescar,
como S. Pedro, para ser bom cristão, e os amigos de ideias novas diriam que não
há ideia nem novidade em moquear o peixe à maneira dos habitantes de Óbidos ou
Rio Branco. Força é ir a Manaus e a Jerusalém.
Já que estou no Amazonas, começo por Manaus. As folhas
chegadas ontem referem que naquela capital a Câmara dos Deputados dividiu-se em
duas. Essa dualidade de câmaras de deputados e de senados tende a repetir-se, a
multiplicar-se, a fixar-se nos vários Estados deste país. Não são fenômenos
passageiros; são situações novas, idênticas, perduráveis. Os olhos de pouca
vista alcançam nisto um defeito e um mal, e não falta quem peça o conserto de
um e a extirpação de outro. Não será consertar unia lei natural, isto é,
violá-la? Não será extirpar uma vegetação espontânea, isto é, abrir caminho a
outra?
Geralmente, as oposições não gostam dos governos.
Partido vencido contesta a eleição do vencedor, e partido vencedor é
simultaneamente vencido, e vice-versa. Tentam-se acordos, dividindo os
deputados; mas ninguém aceita minorias. No antigo regímen iniciou-se uma
representação de minorias, para dar nas câmaras um recanto ao partido que
estava de baixo. Não pegou bem - ou porque a porcentagem era pequena - ou
porque a planta não tinha força bastante. Continuou praticamente o sistema da
lavra única.
Os fatos recentes vão revelando que estamos em
vésperas de um direito novo. Sim, leitor atento, é certo que a luta nasce das
rivalidades, as rivalidades da posse e a posse da unidade de governo e de
representação. Se, em vez de uma câmara, tivermos duas, Dois senados em vez de
um, tudo coroado por duas administrações, ambos os partidos trabalharão para o
benefício geral. Não me digam que tal governo não existe nos livros, nem em
parte alguma. Sócrates - para não citar Taine e consertes - aconselhava ao
legislador que, quando houvesse de legislar tivesse em vista a terra e os
homens. Ora, os homens aqui amam o governo e a tribuna, gostam de propor,
votar, discutir, atacar, defender e os demais verbos, e o partido que não
folheia a gramática política acha naturalmente que já não há sintaxe; ao
contrário, o que tem a gramática na mão julga a linguagem alheia obsoleta ou
corrupta. O que estamos vendo é a impressão em Dois exemplares da mesma
gramática. Virão breve os tempos messiânicos - melhores ainda que os de Israel,
porque lá os lobos deviam dormir com os cordeiros, mas aqui os cordeiros
dormirão com os cordeiros, à falta de lobos. Enquanto não vêm esses tempos
messiânicos, vamo-nos contentando com os da Escritura, e com a semana santa que
passou. Assim passo eu de Manaus a Jerusalém.
Há meia dúzia de assuntos que não envelhecem nunca;
mas há um só em que se pode ser banal, sem parecê-lo: é a tragédia do Gólgota.
Tão divina é ela que a simples repetição é novidade. Essa cousa eterna e
sublime não cansa de ser sublime e eterna. Os séculos passam sem esgotá-la, as
línguas sem confundi-la, os homens sem corrompê-la. "O Evangelho fala ao
meu coração" escrevia Rousseau; é bom que cada homem sinta este pedaço de
Rousseau em si mesmo...
Entretanto, se eu adoro o belo Sermão da Montanha, as
parábolas de Jesus, os duros lances da semana divina, desde a entrada em
Jerusalém até à morte no Calvário, e as mulheres que se abraçaram à cruz, e
cuja distinção foi tão finamente feita por Lulu Sênior, quinta-feira, se tudo
isso me faz sentir e pasmar, ainda me fica espaço na alma para ver e pasmar de
outras cousas. Perdoe-me a grandeza do assunto uma reminiscência, aliás
incompleta, pois não me lembra o nome do moralista, mas foi um moralista que
disse ser a fidelidade dos namorados uma espécie de
infidelidade relativa, que vai dos olhos aos cabelos, dos cabelos à boca, da
boca aos braços, e assim passeia por todas as belezas da pessoa amada.
Espiritualizemos a observação, e apliquemo-la ao
Evangelho. Assim é que, no meio das sublimidades do livro santo, há lances que
me prendem a alma e despertam a atenção dos meus olhos terrenos. Não é amá-lo
menos; é amá-lo em certas páginas. Grande é a morte de
Jesus, divina é a sua paciência, infinito é o seu
perdão. A fraqueza de Pilatos é enorme, a ferocidade dos algozes inexcedível...
Mas, não sendo primoroso o último ato dos discípulos,
não deixa de ser instrutivo. Um, por trinta dinheiros, vendeu o Mestre; os
outros, no momento da prisão, desapareceram, ninguém mais os viu. Um
só deles, sem se declarar, meteu-se entre a multidão,
e penetrou no pretório entre os soldados. Três vezes lhe perguntaram se também
não andava com os discípulos de Cristo; respondeu que não, que nem o conhecia,
e, à terceira vez, cantando o galo, lembrou-se da profecia de Cristo, e chorou.
São Mateus, contando o ato deste discípulo, diz que ele entrara no pretório,
com os soldados, "a ver em que parava o caso". Hoje diríamos, se o
Evangelho fosse de hoje, "a ver em que paravam as modas". Tal é a
mudança das línguas e dos tempos!
Este versículo do evangelista não vale o Sermão da
Montanha, mas, usando da teoria do moralista a que há pouco aludi, esta é a
pontinha da orelha do Evangelho.
QUANDO ME DERAM notícia da morte de Saldanha Marinho,
veio-me à lembrança aquele dia de julho de 1868, em que a Câmara liberal viu
entrar pela porta o Partido Conservador. Há vinte e sete anos; mas os
acontecimentos foram tais e tantos, depois disso, que parece muito mais.
Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a cair e a
voltar, até que se foram de vez, como os conservadores, e com uns e outros o
Império.
Jovem leitor, não sei se acabavas de nascer ou se
andavas ainda na escola. Dado que sim, ouvirás falar daquele dia de julho, como
os rapazes de então ouviam falar da Maioridade ou do fim da república de
Piratinim, que, foi a pacificação do Sul, há meio século.
Certo não ignoras o que eram as recepções de
ministérios ou de partidos, viste muitas delas, e a última há seis anos. Hás de
lembrar-te que a Câmara enchia-se de gente, galerias, tribunas, recinto. Na
última recepção, em 1889, ouvi que alguns espectadores, cansados de estar em
pé, sentaram-se nas próprias cadeiras dos deputados. Creio que antigamente não
vinha muita gente ao recinto, mas a população da cidade era muito menor. A
estatística é a chave dos costumes. Demais, não esqueças a ternura do nosso
coração, a cultura da amizade, o gosto de servir, a necessidade de mostrar
alguma influência, e por fim a indignação, que leva um grande número de pessoas
a entrar com os ombros. Compreende-se, aliás, a curiosidade pública. O
acontecimento em si mesmo era sempre interessante; depois, a certeza de que se
não ia ouvir falar de impostos, dava ânimo de penetrar no recinto sagrado.
Acrescentai que nós amamos a esgrima da palavra, e aplaudimos com prazer os
golpes certos e bonitos.
Também houve aplausos em 1868, como em 1889, como nas
demais sessões interessantes, ainda que fossem de simples interpelações aos
ministros. "As galerias não podem dar sinais de aprovação ou
reprovação", diziam sonolentamente os presidentes da Câmara. A primeira
vez que ouvi esta advertência, fiquei um pouco admirado; supunha que o
presidente presidia, e que o mais era uma questão de polícia interior; mas
explicaram-me que a mesa é que era a comissão de polícia. Compreendi então, e
notei uma virtude da galeria, é que aplaudia sempre e não pateava nunca.
Ouço ainda os aplausos de 1868, estrepitosos, sinceros
e unânimes. Os ministros entraram, com Itaboraí à frente, e foram ocupar as
cadeiras onde dias antes estavam os ministros 1iberais. Um destes ergueu-se, e
em poucas palavras explicou a saída do gabinete. Não me esqueceu ainda a
impressão que deixou em todos a famosa declaração de que a escolha de Torres
Homem não era acertada. Zacarias acabava de repeti-la no Senado. Geralmente, as
dissoluções dos gabinetes eram explicadas por frases vagas, e porventura nem
sempre verídicas. Daquela vez conheceu-se que a explicação era verdadeira.
Disse-se então que a palavra fora buscada para dar ao gabinete as honras da saída.
Alguém ouviu por esse tempo,
ao próprio Zacarias, naquela grande chácara de
Catumbi, que "desde a quaresma sentia que a queda era inevitável".
Grande atleta, quis cair com graça.
ltaboraí levantou-se e pediu os orçamentos. Foi então
que desabou uma tempestade de vozes duras e vibrantes. Posto soubesse que se
despedia a si mesma, a Câmara votou uma moção de despedida ao ministério
conservador. Um só espírito supôs que a moção podia desfazer o que estava
feito: não me lembra o nome, talvez não soubesse ler em política, e daí essa
credulidade natural, que se manifestou por um aparte cheio de esperanças.
Uma das vozes duras e vibrantes foi a de Saldanha
Marinho. Escolhido senador pelo Ceará, nessa ocasião, bastava-lhe pouco para
entrar no Senado - para esperá-lo, ao menos. O silêncio era o conselho do
sábio. Diz um provérbio árabe que "da árvore do silêncio pende o seu
fruto, a tranqüilidade". Diz mal ou diz pouco este provérbio, porque a
prosperidade é também um fruto do silêncio. Saldanha Marinho podia calar-se e
votar - votar contra o ministério, incluir o nome entre os que o recebiam na
ponta da lança, e até menos. Crises dessas alcançam as pessoas. Também se
brilha pela ausência. O senador escolhido deitou fora até a esperança..
Ergueu-se, e com poucas palavras atacou o ministério e a própria coroa; lembrou
1848, a que chamou estelionato, e deixou-se cair com os amigos. O Senado anulou
a eleição, e Saldanha Marinho não tornou na lista tríplice.
Caiu com os amigos. A ação foi digna e pode dizer-se
rara. Para ir ao Senado, não faltavam seges, nem animais seguros. Saldanha
ficou a pé. Não lhe custava nada ser firme; desde que, em 1860, tornara à
política pelo jornalismo, nunca soube ser outra cousa, 1860! Quem se não lembra
da célebre eleição desse ano, em que Otaviano, Saldanha e Otôni derribaram as
portas da Câmara dos Deputados à força de pena e de palavra? O lencinho branco
de Otôni era a bandeira dessa rebelião, que pôs na linha dos suplentes de
eleitores os mais ilustres chefes conservadores ... Ó tempos idos! Vencidos e
vencedores vão todos entrando na história. Alguns restam ainda, encalvecidos ou
encanecidos pelo tempo, e Dois ou três cingidos de honras merecidas. O que ora
se foi, separara-se há muito dos companheiros, sem perder-lhes a estima e a
consideração. Mudara de campo, se é que se não restituiu ao que era por
natureza.
O AUTOR DE SI MESMO
GUIMARÃES chama-se ele; ela Cristina. Tinham um filho,
a quem puseram o nome de Abílio.
Cansados de lhe dar maus tratos, pegaram do filho,
meteram-no dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno
passou três dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de
galinhas, até que veio a falecer. Contava Dois anos de idade. Sucedeu este caso
em Porto Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais
recolhidos à cadeia, e aberto o inquérito. A dor do pequeno foi naturalmente
grandíssima, não só pela tenra idade, como porque bicada de galinha dói muito,
mormente em cima de chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, fê-lo passar
"um mau quarto de hora", como dizem os franceses, mas um quarto de
hora de três dias; donde se pode inferir
que o organismo do menino Abílio era apropriado aos
tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente; mas a prova de que
não iria até lá, é que morreu.
Se não fosse Schopenhauer, é provável que eu não
tratasse deste caso diminuto, simples notícia de gazetilha. Mas há na principal
das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas
transcendentes do amor. Ele, que não era modesto, afirma que esse estudo é uma
pérola. A explicação é que Dois namorados não se escolhem um ao outro pelas
causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os
incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso Abílio.
Um dia Guimarães viu Cristina, e Cristina viu
Guimarães. Os olhos de um e de outro trocaram-se, e o coração de ambos bateu
fortemente. Guimarães achou em Cristina uma graça particular, alguma cousa que
nenhuma outra mulher possuía. Cristina gostou da figura de Guimarães,
reconhecendo que entre todos os homens era um homem único. E cada um disse
consigo: "Bom consorte para mim!" O resto foi o namoro mais ou menos
longo, o pedido da mão da moça, as formalidades, as bodas. Se havia sol ou
chuva, quando eles casaram, não sei; mas, suponho um céu escuro e o vento
minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de um céu claro.
Bem-aventurados os que se possuem, porque eles possuirão a terra. Assim
pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso filósofo, foi unicamente
Abílio. O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os
Dois se encontraram:
"Guimarães há de ser meu pai e Cristina há de ser
minha mãe; é preciso que nasça deles, levando comigo, em resumo, as qualidades
que estão separadas nos Dois". As entrevistas dos namorados era o futuro
Abílio que as preparava; se eram difíceis, ele dava coragem a Guimarães para
afrontar os riscos, e paciência a Cristina para esperá-lo. As cartas eram
ditadas por ele. Abílio andava no pensamento de ambos, mascarado com o rosto
dela, quando estava no dele, e com o dele, se era no pensamento dela. E fazia
isso a um tempo, como pessoa que, não tendo figura própria, não sendo mais que
uma ideia específica, podia viver inteiro em Dois lugares, sem quebra da
identidade nem da integridade. Falava nos sonhos de Cristina com a voz de
Guimarães, e nos de Guimarães com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma
outra voz era tão doce, tão pura, tão deleitosa.
Enfim, nasceu Abílio. Não contam as folhas cousa
alguma acerca dos primeiros dias daquele menino.
Podiam ser bons. Há dias bons debaixo do sol. Também
não se sabe quando começaram os castigos, - refiro-me aos castigos duros, os
que abriram as primeiras chagas, não as pancadinhas do princípio, visto que
todas as cousas têm um princípio, e muito provável é que nos primeiros tempos
da criança os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, é porque a
lágrima é o suco da dor. Demais, é livre - mais livre ainda nas crianças que
mamam, que nos homens que não mamam.
Chagado, encaixotado, foi levado à estrebaria, onde,
por um desconcerto das cousas humanas, em vez de cavalos, havia galinhas.
Sabeis já que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaços da carne
de Abílio. Aí, nesses três dias, podemos imaginar que Abílio, inclinado aos
monólogos, recitasse este outro de sua invenção: "Quem mandou aqueles Dois
casarem-se para me trazerem a este mundo?
Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam
fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não
era nascido? Que banquete é este em que o convidado é que é comido?".
Nesse ponto do discurso é que o filósofo de Dantzig,
se fosse vivo e estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritação:
"Cala a boca, Abílio. Tu não só ignoras a verdade, mas até esqueces o
passado.
Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se
tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando Guimarães passava e
olhava para Cristina, e Cristina para ele cada um cuidando de si, tu é que os
fizeste atraídos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a este mundo que os ligou
sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio,
e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não
sei se tua somente ... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te
sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as
cousas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo XLIV...
Anda, Abílio, a verdade é verdade - ainda à hora da
morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na
peste de Hegel ...
E Abílio, entre duas bicadas:
- Será verdade o que dizes, Artur; mas é também
verdade que, antes de cá vir, não me doía nada, e se eu soubesse que teria de
acabar assim, às mãos dos meus próprios autores, não teria vindo cá. Ui! Ai!
NÃO vou ao extremo de atribuir à Fênix Dramática
qualquer intenção filosófica ou simplesmente histórica. Não; a Fênix, como
todos os teatros, publicou um anúncio. Mas o que é que não há dentro de um
anúncio! Durante muitos anos acreditei que as "moças distintas, de boa
educação" que pedem pelos jornais "a proteção de um senhor
viúvo", eram vítimas de ódios de família ou da fatalidade, que buscavam um
resto de sentimento medieval neste século de guarda-chuvas. Como supor que eram
damas nobremente desocupadas que procuravam emprego honesto? Um anúncio é um
mundo de mistério!
O que a Fênix mandou inserir nos jornais não traz
mistérios. É a lista do espetáculo composto de várias partes, das quais duas
especialmente fazem assunto desta meditação. A primeiro é uma comédia: Artur ou
Dezesseis Anos Depois. Quando li este título tive um sobressalto; depois, não
sei que fada pegou em mim, pelos cabelos, e levou-me através dos anos até aos
meus tempos de menino. Caí em cheio entre os primeiros bonecos que vi na minha
vida: eram de pau e tinham graça. Santos bonecos, o bonecos do meu coração,
éreis sublimes, faláveis com eloqüência e sintaxe, conquanto fosse eu que
falasse por vós; mas criança tem o mau vezo de crer que tudo o que diz é
perfeito. Éreis sinceros; não conheceis isto que os Franceses chamam
fumisterie, e que, pela nossa língua poderíamos dizer (aproximadamente)
debique.
Não, bonecos da minha infância, vós não me debicáveis;
nem com a sintaxe, nem sem ela.
Nesse tempo não tinha visto a comédia, que era pelo
seu verdadeiro gênero, um vaudeville. Também não a vi depois, nem agora. Sei
que antigamente se representou no Teatro de S. Pedro de Alcântara e no de S.
Francisco. A data da composição está no próprio subtítulo, moda que se perdeu,
e na denominação dos atos: 1º O Batismo do Barco; 2º O Amor
de Mãe. Ignoro os nomes dos artistas que a representavam. Podia ser a Jesuína
Montani, que se fizera célebre na Graça de Deus, ou a Leonor Orsat, afamada na
Vendedora de Perus, títulos que trazem a mesma data. e o mesmo esquecimento. Em
volta da peça agora anunciada, vi aparecer uma infinidade de sombras, como D.
João via surgir as das mulheres que o tinham amado e perdido. As velhas
reminiscências têm a particularidade de trazerem a frescura antiga; eu fiquei
calado e cabisbaixo.
Pedro Luís, o epigramático forrado de poeta, contou-me
um dia que, estando em Roma, certa noite, ouviu tocar um realejo e não pôde
suster as lágrimas. Que os manés de meu amigo me perdoem esta revelação!!
Aquele espírito fino e sarcástico chorou ao som de um
banal instrumento. Certo, ele não estava ao pé das ruínas da antiga Roma, pois
que tais ruínas pediam antes a música do silêncio. Havia de ser em alguma rua
ou hospedaria; mas demos que fossem ruínas. A linguagem natural delas é a da
caducidade das cousas; nada mais fácil, em dado caso, que achar nelas um pouco
de nós mesmos. Revia ele os dias da meninice, as festas da roça e da cidade?
Foi então que algum tocador perdido na noite entrou a moer a música do seu
realejo; era a própria voz dos tempos que dava alma às reminiscências antigas;
daí algumas lágrimas.
Eu, não por ser mais forte, mas talvez por não estar
em Roma, não chorei quando li o título de Artur ou Dezesseis Anos Depois. Nem
foi porque este outro realejo me trouxesse lembranças perdidas ou que eu
julgava tais. Também eu vi, na infância, tocadores que paravam na rua, moíam a
música e estendiam o chapéu para receberem os Dois vinténs de espórtula. Cuido
que ainda hoje fazem o mesmo; os meninos é que são outros, e os Dois vinténs
subiram a tostão. Deus meu! eu bem sei que um trecho de música de realejo não
vale os Huguenotes como aquela comédia pacata e sentimental não valia o Filho
de Giboyer nem o Pai Pródigo, que nós íamos ver, tempos depois, no Ginásio
Dramático - o teatro que há pouco chamei S. Francisco, e hoje é, se me não
engano, uma loja de fazendas.
Agora a segunda parte do anúncio da Fênix, que parece
dar ao todo um ar de paralelo e compensação. A segunda parte é uma cançoneta,
com este título sugestivo: Ora Toma, Mariquinhas! Não posso julgar da
cançoneta, porque não a ouvi nunca; mas, se, como dizia Garret, há títulos que
dispensam livros, este dispensa as coplas; basta-lhe ser o que é para se lhe
adivinhar um texto picante, brejeiro, em fraldas de camisa. Não são dezesseis
anos como na comédia, mas trinta anos ou mais, que decorrem daquele Artur a
esta Mariquinhas. Há uma história entre as duas datas, história gaiata, ou não,
segundo a idade e os temperamentos. Daí a significação do anúncio e a sua inconsciente
filosofia.
Os que tiverem ido ao teatro, levados uns pela velha
comédia, outros pela cançoneta nova, saíram de lá satisfeitos, a seu modo.
Também pode suceder - e isto será a glória do anúncio - que os da cançoneta não
achassem inteiramente insípido o sabor da peça velha, e que os da peça velha
sentissem o vinho das coplas subir-lhes à cabeça. Esses foram pela rua abaixo,
de braço dado; enquanto o moço gargareja com a ingenuidade de Artur a rouquidão
da cantiga nova, o velho recompõe um pouco da vida exausta com Dois trinados da
cançoneta.
A cançoneta, como gênero, nasceu no antigo Alcazar. A
princípio as cantoras levantavam uma pontinha de nada do vestido, isso mesmo
com gesto encolhido e delicado. Anos depois, nos grandes cancãs, mandavam a
ponta do pé aos narizes dos cantores. O gesto era feio, mas haviam-se com tal
arte que não se descompunham, posto se lhes vissem as saias e as meias - meias
lavadas. Enfin Malherbe vint...
OS MORTOS não vão tão depressa, como quer o adágio;
mas que eles a governam os vivos, é cousa dita, sabida e certa. Não me cabe
narrar o que esta cidade viu ontem, por ocasião de ser conduzido ao cemitério o
cadáver de Floriano Peixoto, nem o que vira antes, ao ser ele transportado para
a Cruz dos Militares. Quando, há sete dias, falei de Saldanha da Gama e dos
funerais de Coriolano que lhe deram, estava longe de supor que poucas horas
depois, teríamos a notícia do óbito do marechal. O destino pôs assim, à curta
distância, uma de outra, a morte de um dos chefes da rebelião de 6 de setembro
e a do chefe de Estado que tenazmente a combateu e debelou.
A história é isto. Todos somos os fios do tecido que a
mão do tecelão vai compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus
vários aspectos morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes,
assim também os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se
perde nas cores de que é feito o fundo do quadro. O marechal Floriano era dos
fortes. Um de seus mais ilustres amigos e
companheiros, Quintino Bocaiúva, definiu na tribuna do
Senado, com a eloqüência que lhe é própria, a natureza, a situação e o papel do
finado vice-presidente. Bocaiúva. que tanta parte teve nos sucessos de 15 de
novembro, é um dos remanescentes daquele grupo de homens, alguns dos quais a
morte levou, outros se acham disperses pela política, restando os que ainda une
o mesmo pensamento de iniciação. A verdade é que temos vivido muito nestes seis
anos, mais que rios que decorreram do combate de Aquidabã à revolução de 15 de
novembro, vida agitada e rápida, tão depressa quão cheia de sucessos.
Mas, como digo, os mortos não vão tão depressa que se
percam todos de nossa vista. Ontem era um ex-chefe de Estado que a população
conduzia ou via conduzir ao último jazigo. Hoje comemora-se o centenário de um
poeta. Digo mal. Nem se comemora, nem é ainda o centenário. Este é no fim do
mês; o que se faz hoje, segundo li nas folhas, é convidar os homens de letras
para tratarem dos meios de celebrar o primeiro centenário da morte de José
Basílio da Gama. Não conheço o pio brasileiro que tomou a si essa iniciativa.
Não se vive só de política. As musas também nutrem a alma nacional. Foi o nosso
Gonzaga que escreveu com grande acerto que as pirâmides e os obeliscos
arrasam-se, mas que as Ilíadas e as Eneidas ficam.
José Basílio não escreveu Eneidas nem Ilíadas, mas o
Uruguai é obra de um grande e doce poeta, precursor de Gonçalves Dias. Os
quatro cantos dos Timbiras, escapos ao naufrágio, são da mesma família daqueles
cinco cantos do poema de José Basílio. Não tem este a popularidade da Marília
de Dirceu, sendo-lhe, a certos respeitos, superior, por mais incompleto e menos
limado que o ache Garrett; mas o próprio Garrett escreveu em 1826 que os
brasileiros têm no poema de José Basílio da Gama "a melhor coroa da sua
poesia, que nele é verdadeiramente nacional e legítima americana".
Neste tempo em que o uso do verso solto se perdeu
inteiramente, tanto no Brasil como em Portugal, Gonzaga tem essa superioridade
sobre o seu patrício mineiro. As rimas daquele cantam de si mesmas, quando não
baste a perfeição dos seus versos, ao passo que o verso solto de José Basílio
tem aquela harmonia, seguramente mais difícil, a que é preciso chegar pela só
inspiração e beleza do metro. Não serão sempre perfeitos. O meu bom amigo
Muzzio, companheiro de outrora, crítico de bom gosto, achava detestáveis
aqueles Dois famosos versos do Uruguai:
Tropel confuso de cavalaria,
Que combate desordenadamente.
- Isto nunca será onomatopéia, dizia ele; são Dois
maus versos.
Concordava que não eram melodiosos, mas defendia a
intenção do poeta, capaz de os fazer com a tônica usual. Um dia, achei em
Filinto Elísio uma imitação daqueles versos de José Basílio da Gama, por sinal
que ruim, mas o lírico português confessava a imitação e a origem. Não quero
dizer que isto tornasse mais belos os do poeta mineiro; mas é força lembrar o
que valia no seu tempo Filinto Elísio, tão acatado, que meia dúzia de versos
seus, elogiando Bocage, bastaram a inspirar a este o célebre grito de orgulho e
de glória: - Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!
A reunião de hoje pode ser prejudicada pela grande
comoção de ontem. Outro dia seria melhor. Se alguns homens de letras se
juntarem para isto, façam obra original, como original foi o poeta no nosso
mundo americano. Antes de tudo, seja-me dado pedir alguma cousa: excluam a
poliantéia. Oh! a poliantéia! um dia apareceu aqui uma poliantéia; daí em
diante tudo ou quase tudo se fez por essa forma. A cousa, desde que lhe não
presida o gosto e a escolha, descai naturalmente até a vulgaridade; o nome,
porém, fá-la-á sempre odiosa, tão usado e gasto se acha. Não lhe ponham tal
designação; qualquer outra, ou nenhuma, é preferível, para coligir as
homenagens da nossa geração.
No meu tempo de rapaz, era certo fazer-se uma reunião
literária, onde se recitassem versos e prosas adequadas ao objeto. Não
aconselho este alvitre; além de ser costume perdido, e bem perdido, seria
grandemente arriscado revivê-lo. Não se podem impor programas, nem se há de
tapar a boca aos que a abrirem para dizer alguma cousa fora do ajuste. Uma
daquelas reuniões foi notável pela leitura que alguém fez de um relatório, não
sei sobre que, mas era um relatório comprido e mal recitado. Um dos convidados
era oficial do exército, estava fardado, e passeava na sala contígua, obrigando
um chocarreiro a dizer que a diretoria da festa mandara buscar o oficial para
prender o leitor do relatório, apenas acabada a leitura; mas a leitura, a falar
verdade, creio que ainda não acabou.
Não; há vários modos de comemorar o poeta de Lindóia,
dignos do assunto e do tempo. Não busquem grandeza nem rumor; falta ao poeta a
popularidade necessária para uma festa que toque a todos. Uma simples festa
literária é bastante, desde que tenha gosto e arte. Oficialmente se poderá
fazer alguma cousa, o nome do poeta, por exemplo, dado pelo Conselho Municipal
a uma das novas ruas. Devo aqui notar que Minas Gerais, que tem o gosto de
mudar os nomes às cidades, não deu ainda a nenhuma delas o nome de Gonzaga, e
bem podia dar agora a alguma o nome de Lindóia, se o do cantor desta lhe parece
extenso em demasia; qualquer ato, enfim, que mostre o apreço devido à musa
deliciosa de José Basílio, o mesmo que, condenado a desterro, pôde com versos
alcançar a absolvição e um lugar de oficial de secretaria.
Eu não verei passar teus doze anos,
Alma de amor e de piedade cheia,
Esperam-me os desertos africanos,
Áspera, inculta, monstruosa areia,
Ah! tu fazes cessar os tristes danos ...
Assim falou ele à filha do Marquês de Pombal, como
sabeis, e dos versos lhe veio a boa fortuna. A má fortuna veio-lhe do caráter,
que se conservou fiel ao marquês, ainda depois de caído, e perdeu com isso o
emprego.
Para acabar com poetas. Valentim Magalhães tornou da
Europa. Viu muito em pouco tempo e soube ver bem. Parece-me que teremos um
livro dele contando as viagens. Com o espírito de observação que possui, e a
fantasia original e viva, dar-nos-á um volume digno do assunto e de si. O que
se pode saber já, é que, indo a Paris, não se perdeu por lá; viu Burgos e
Salamanca, viu Roma e Veneza - Veneza que eu nunca verei, talvez, se a morte me
levar antes, como diria M. de La Palisse - Veneza, a única, como
escrevia há pouco um autor americano.
CARNE E PAZ foram as doações principais da semana. A
carne é municipal, a paz é federal, mas nem por isso são menos aprazíveis ao
homem e ao cidadão, uma vez que a carne seja barata e a paz eterna.
Eterna! Que paz há eterna neste mundo? A mesma paz dos
túmulos é uma frase. Lá há guerra - guerra no próprio homem, luta pela vida.
Nem é raro ir cá de fora buscar o morto ao jazigo derradeiro para isto ou para
aquilo, como o célebre príncipe D. Pedro, que, unia vez rei, fez coroar o
cadáver de D. Inês de Castro. O nosso João Caetano, quando queria dar alguma
solenidade às representações da Nova Castro, anunciava que a tragédia acabaria
com a cena da coroação. Obtinha com isto mais uma ou duas centenas
de mil-réis. Não ficava mais bela a tragédia; mas o
espectador gostava tanto de prolongar a sua própria ilusão!
Paz e carne. Faz lembrar os jantares de S. Bartolomeu
dos Mártires: vaca e riso. Se com estas duas cousas o arcebispo não deixou de
ser canonizado, esperemos que nos canonizem também. Nem creio que haja melhor
caminho para o céu. Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que
um homem fraco pode cair na estrada, se não tiver alguma cousa no estômago. Que
essa seja barata, é o que presumo sair do ato da intendência; e basta isso para
ter feito uma sessão útil.
Um dos intendentes pensa o contrário; acha que só se
fizeram torneios oratórias. Foi o Sr. Honório Gurgel. Ao que retorquiu o Sr.
Vieira Fazenda: "Começando pelos de V. Ex.ª. " Replicou o
Sr. Honório Gurgel: "Verdadeiros jogos florais, onde o Sr. Fazenda, como
sempre, brilhou pela sua facúndia". E o Sr. Vieira Fazenda: "V.
Ex.ª está continuando a tornar tempo ao Conselho com longos
discursos". É difícil crer que haja paz depois de tais remoques; mas se há
leis que explicam tudo, alguma explicará este fenômeno. Pouco visto em legislação,
prefiro crer que, se algum sangue correu depois daquilo, foi somente o da vaca
aprovada e contratada.
Vaca e riso. Agora é o riso que se anuncia, por meio
da pacificação do Sul. A guerra é boa, e, dado que seja exato, como pensa um
filósofo, que ela é a mãe de todas as cousas, preciso é que haja guerras, como
há casamentos. A leitura de batalhas é agradável ao espírito. As proclamações
napoleônicas, as descrições homéricas, as oitavas camoneanas, lidas no
gabinete, dão ideia do que será o próprio espetáculo no campo. A mais de um
combatente ouvi contar as belezas trágicas da luta entre homens armados, e
tenho acompanhado muita vez o jovem Fabrício del Dongo na batalha de Waterloo,
levados ambos nós pela mão de Stendhal. O destino trouxe-me a este campo quieto
do gabinete, com saída para a Rua do Ouvidor, de maneira que, se adoeci de um
olho, não o perdi em combate, como sucedeu a Camões. Talvez por isso não
componha iguais versos. Homero, que os perdeu ambos, deixou um grande modelo de
arte.
Entre parêntesis, uma patrícia nossa que não perdeu
nenhum dos seus belos olhos de vinte e um anos, mostrou agora mesmo que se
podem compor versos, sem quebra da beleza pessoal. Não é a primeira, decerto. A
Marquesa de Alorna já tinha provado a mesma cousa. A Sevigné, se não compôs
versos, fez cousas que os merecem, e era bonita e mãe. Não cito outras, nem
George Sand, que era bela, nem George Eliot, que era feia. Francisca Júlia da
Silva, a patrícia nossa, se é certo o que nos conta João Ribeiro, no excelente
prefácio dos Mármores, já escrevia versos aos quatorze anos. Bem podia dizer,
pelo estilo de Bernardim: "Menina e moça me levaram da casa de meus pais
para longes terras" ... Essas terras são as da pura mitologia, as de Vênus
talhada em mármore, as terras dos castelos medievais, para cantar diante deles
e delas impassivamente. "Musa Impassível", que é o título do último
soneto do livro, melhor que tudo pinta esta moça insensível e fria. Essa
impassibilidade será a própria natureza da poetisa, ou uma impressão literária?
Eis o que nos dirá aos vinte e cinco anos ou aos trinta. Não nos sairá jamais
uma das choramingas de outro tempo; mas aquele soneto da p. 74, em que "a
alma vive e a dor exulta, ambas unidas", mostra que há nela uma corda de
simpatia e outra de filosofia.
Outro parêntesis. A Gazeta noticiou que alguns
habitantes da estação de Lima Duarte pediram ao presidente da Companhia
Leopoldina a mudança do nome da localidade para o de Lindóia, agora que é o
centenário de Basílio da Gama. Pela carta que me deram a ler, vejo que põem
assim em andamento a ideia que me ocorreu há sete dias. Eu falei ao governo de
Minas Gerais; mas os habitantes de Lima Duarte deram-se pressa em pedir para si
a designação, e é de crer que sejam servidos. Ao que suponho, o presidente da
Companhia é o Sr. conselheiro Paulino de Sousa, lido em cousas pátrias, que não
negará
tão pequeno favor a tão grande brasileiro. Demais, a
história tem encontros: o filho do Visconde de Uruguai honrará assim o cantor
do Uruguai. É quase honrar-se a si próprio. Provemos sue o lemos:
Serás lido, Uruguai. Cubra os meus olhos Embora um dia
a escura noite, eterna, Tu, vive e goza a luz serena e pura;
Vai aos bosques...
Fechados ambos os parêntesis, tornemos à paz
anunciada. Também ela é útil, como a guerra, e tem a sua hora. O mundo romano
dormia em paz algumas vezes. Venha a paz, unia vez que seja honrada e útil.
Não falo por interesse pessoal. Como eu não saio a
campo a combater, deixo-me nesta situação que o povo chama: "ver touros de
palanque". O poeta Lucrécio, mais profundamente, dizia que era doce,
estando em terra, ver naufragar, etc. O resto é sabido. Carne e paz: é muito
para uma semana única. Vaca e riso: não é preciso mais para uma vida inteira -
salvo o que mais vale e não cabe na crônica.
ANTES DE ESCREVER o nome de Basílio da Gama, é força
escrever o do Dr. Teotônio de Magalhães.
A este moço se deve principalmente a evocação que se
fez esta semana do poeta do Uruguai. Pessoas que educaram os ouvidos de rapaz
com versos de José Basílio, não tinham na memória o centenário da morte do
poeta. Não as crimino por isso, seria criminar-me com elas. Também não ralho
dos últimos ano deste século, tão exaustivos para nós, tão cheios de sucesso,
terra marique. Não há lugar para todos, para os vivos e para os mortos
principalmente os grandes mortos. Mas como alguém se lembrou do poeta, esse
faiou pôr todos, e muitos seguiram a bandeira do jovem piedoso e modesto, que
mostrou possuir o sentimento da glória e da pátria.
Não se fez demais para quem muito merecia; mas fez-se
bem e com alma. Que os nossos patrícios de 1995, chegado o dia 20 de julho,
recordem-se igualmente que a língua, que a poesia da sua terra, adornam-se
dessas flores raras e vividas. Se a vida pública ainda impedir que os nomes representativos
do nosso gênio nacional andem na boca e memória do povo, alguém haverá que se
lembre dele, como agora, e o segundo centenário de Basílio da Gama será
celebrado, e assim os ulteriores. Que esse modo de viver na posteridade seja
ainda urna consolação! Quando a pá do arqueólogo descobre uma estátua divina e
truncada, o mundo abala-se, e a maravilha é recolhida aonde possa ficar por
todos os tempos; mas a estátua será uma só. Ao poeta ressuscitado em cada a
aniversário restará a vantagem de ser uma nova e rara maravilha.
Tal foi uma das festas da semana, que teve ainda
outras. Há tempo de se afligir e tempo de saltar de gosto, diz o Eclesiastes;
donde se pode concluir, sem truísmo, que há semanas festivas e semanas
aborrecidas. No Eclesiastes há tudo para todos. A pacificação do Sul lá está:
"Há tempo de guerra e tempo de paz". Muita gente entende que este é
que é o tempo de paz; muita outra julga, pelo contrário, que é ainda o tempo da
guerra, e de cada lado se ouvem razões caras e fortes. O Eclesiastes, que tem
respostas para tudo, alguma dará a ambas as opiniões; se não fosse a urgência
do trabalho, iria buscá-la ao próprio livro, não podendo fazê-lo, contento-me
em supor que ele dirá aquilo que tem dito a todos, em todas as línguas,
principalmente no latim, a que o trasladaram: "Vaidade das vaidades, e
tudo é vaidade".
Napoleão emendou um dia essas palavras do santo livro.
Foi justamente em dia de vitória. Quis ver os cadáveres dos velhos imperadores
austríacos, foi aonde eles estavam depositados, e gastou largo tempo em
contemplação, ele, imperador também, até que murmurou, como no livro:
"Vaidade das vaidades, tudo é vaidade". Mas, logo depois, para
corrigir o texto e a si, acrescentou: "Exceto talvez a força". Seja
ou não exata a anedota, a palavra é verdadeira. Podeis emendá-la ao corso
ambicioso, se quiserdes, como ele fez ao desconsolado de Israel, mas há de ser
em outro dia. Os minutos correm: agora é falar da semana e das suas festas
alegres.
Uma dessas festas foi o regresso do Sr. Rui Barbosa.
Coincidiu com o de Basílio da Gama; mas aquele veio de Londres, este da
sepultura, e por mais definitiva que soja a sepultura, força é confessar que o
autor do Uruguai não veio de mais longe que o ilustre ministro do governo
provisório. Talvez de mais perto. A sepultura é a mesma em toda a parte,
qualquer que seja o mármore e o talento do escultor, ou a simples pedra sem
nome ou com ele, posta em cima da cova. A morte é universal. Londres é Londres,
tanto para os que a admiram, como para os que a detestam. Um membro da comuna
de Paris, visitando a Inglaterra há anos, escreveu que era um país
profundamente insular, tanto no sentido moral, como no geográfico. Os que leram
as cartas do Sr. Rui Barbosa no Jornal do Comércio terão sentido que ele, um
dos grandes admiradores do gênio britânicoreconhece aquilo mesmo na nação, e
particularmente na capital da Inglaterra.
A recepção do Sr. Rui Barbosa foi mais entusiástica e
ruidosa que de Basílio da Gama; diferença natural, não por causa dos talentos
que são incomparáveis entre si, mas porque a vida fala mais ao ânimo dos
homens, porque o Sr. Rui Barbosa teve grande parte na história dos últimos
anos, finalmente porque é alguém que vem dizer ou fazer alguma cousa. Como essa
cousa, se a houver, é certamente política, troco de caminho e torno-me às
letras, ainda que aí mesmo ache o culto espírito do Sr. Rui Barbosa, que também
as prática e com intimidade. Não importa, aqui, o que houver de dizer ou fazer,
será bem-vindo a todos.
Outra festa, não propriamente a primeira em data ou
lustre, mas em interesse cá da casa, foi o aniversário da Gazeta de Notícias.
Completou os seus vinte anos. Vinte anos é alguma cousa na vida de um jornal
qualquer, mas na da Gazeta é uma longa página da história do Jornalismo. O
Jornal do Comércio lembrou ontem que ela fez uma transformação na imprensa. Em
verdade, quando a Gazeta apareceu, a Dois vinténs, pequena, feita de notícias,
de anedotas, de ditos picantes, apregoada pelas ruas, houve no público o
sentimento de alguma cousa nova, adequada ao espírito da cidade. Há vinte anos.
As moças desta idade não se lembraram de fazer agora um gracioso mimo à Gazeta,
bordando por suas mãos uma bandeira, ou, em seda o número de 2 de agosto de
1875. São duas boas ideias que em 1896 podem realizar as moças de vinte e um
anos, e depressa, depressa antes que a Gazeta chegue aos trinta. Aos trinta,
por mais amor que haja a esta folha, não é fácil que as senhoras da mesma idade
lhe façam mimos.
Se lessem Balzac, fá-los-iam grandes, e achariam mãos
amigas que os recebessem; mas as moças deixaram Balzac, pai das mulheres de
trinta anos.
QUE POUCO se leia nesta terra é o que muita gente
afirma, há longos anos; é o que acaba de dizer um bibliômano na Revista
Brasileira. Este, porém, confirmando a observação, dá como uma das causas do
desamor à leitura o ruim aspecto dos livros, a forma desigual das edições, o
mau gosto, em suma. Creio que assim seja, contanto que essa causa entre com
outras de igual força. Uma destas é a falta de estantes.
As nossas grandes marcenarias estão cheias de móveis
ricos, vários de gosto; não há só cadeiras, mesas, camas, mas toda a sorte de
trastes de adorno fielmente copiados dos modelos franceses, alguns com o nome
original, o bijou de salon, por exemplo, outros em língua híbrida, como o
porte-bibelots Entra-se nos grandes depósitos, fica-se deslumbrado pela
perfeição da obra, pela riqueza da matéria, pela beleza da forma. Também se
acham lá estantes, é verdade, mas são estantes de músicas para piano e canto,
bem acabadas, vário tamanho e muita maneira.
Ora, ninguém pode comprar o que não há. Mormente os
noivos nem tudo acode. A prova é que, se querem comprar cristais, metais louça,
vão a outras casas, assim também roupa branca, tapeçaria etc.; mas não é nelas
que acharão estantes. Nem é natural que um mancebo, prestes a contrair
matrimônio, se lembre de ir a lojas de ferro ou de madeira; quando se
lembrasse, refletiria certamente que a mobília perderia a unidade. Só as
grandes fábricas poderiam dar boas estantes, com ornamentações, e até sem elas.
A Revista Brasileira é um exemplo de que há livroscom
excelente aspecto. Creio que se vende, se não se vendesse, não seria por falta
de matéria e valiosa. Mudemos de caminho, que este cheira a anúncio.
Falemos antes da impressão que este último número me
trouxe. Refiro-me às primeiras páginas de um longo livro, uma biografia de
Nabuco, escrita por Nabuco, filho de Nabuco. É o capítulo da infância do finado
estadista a e jurisconsulto . As vidas dos homens que serviramnoutro tempo, e são
os seus melhores representantes, hão de interessar sempre às gerações que
vierem vindo. O interesse, porém, será maior, quando o autor juntar o talento e
a piedade filial, como na presente caso. Dizem que na sepultura de Chatham se
pôs este letreiro: "O pai do Sr. Pitt". A revolução de 1889 tirou,
talvez, ao filho de Nabuco uma consagração análoga. Que ele nos dê com a pena o
que nos daria com a palavra e a ação parlamentares, e outro fosse o regimen, ou
se ele adotasse a constituição republicana. Há muitos modos de servir a terra
de seus pais.
A impressão de que fale;. vem de anos longos. Desde
muito morrera Paraná e já se aproximava a queda dos conservadores, por
intermédio de Olinda, precursor da ascensão de Zacarias. Ainda agora vejo
Nabuco, já senador, no fim da bancada da direita, ao pé da janela, no lugar
correspondente ao em que ficava, do outro lado, o Marquês de Itanhaém, um molho
de ossos e peles, trôpego, sem dentes nem valor político. Zacarias, quando
entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior à da Nabuco. Eis aqui
Eusébio de Queirós, chefe dos conservadores, respeitado pela capacidade
política, admirado pelos dotes oratórios, invejado talvez pelos seus célebres
amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu nome.
Perdoe-me esta menção. Era uma senhora alta, outoniça... São migalhas da
história, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as
relíquias de Nélson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa
Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou políticas se deixa de ter
coração. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco
senatoriais. Lá estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo,
bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se
chamava?-Ribeiro, um que tinha ao pé da cadeira. no chão atapetado o dicionário
de Morais consultava a miúdo, para verificar se tais palavras de um orador eram
ou não legítimas; era um varão instruído e lhano. Quem especificar mais, São
Vicente, Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, ltaboraí, Otôni, e
tantos, tantos, uns no fim da vida, outros para lá do meio dela, e todo
presididos pelo Abaeté, com os seus compridos cabelos brancos.
Eis aí o que fizeram brotar as primeiras páginas de Um
Estadista do Império. Ouço ainda a voz eloqüente do velho Nabuco, do mesmo modo
que ele devia trazer na lembrança as de Vasconcelos, Ledo Paula Sousa, Lino
Coutinho, que ia ouvir, em rapaz, na galeria da Câmara, segundo nos conta o
filho. Que este faça reviver aqueles e outros tempos, contribuindo para a
história do século XIX, quando algum sábio de 1950 vier contar as nossas
evoluções políticas.
Como não se há de só escrever história política, aqui
está Coelho Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de
contar a vida das almas e dos costumes dos nossos primeiros romancistas, e,
geralmente falando, dos nossos primeiros escritores mas é como autor de obras
de ficção que ora vos trago aqui, com o seu recente livro Miragem. Coelho Neto
tem o dom da invenção, da composição, da descrição e da vida, que coroa tudo.
Não vos poderia narrar a última obra, sem lhe cercear o interesse.
Parte dela está na vista imediata das cousas, cenas e
cenários. Não há transportar para aqui os aspectos rústicos, as vistas do céu e
do mar, as noites dos soldados a vida da roça, os destroços de Humaitá, a
marcha das tropas, em 15 de novembro, nem ainda as últimas cenas do livro,
tristes e verdadeiras. O derradeiro encontro de Tadeu e da mãe é patético. Os
personagens vivem, interessam e comovem. A
própria terra vive. A miragem, que dá o título ao
livro, é a vista ilusória de Tadeu, relativamente ao futuro trabalhado por ele,
e o desmentido que o tempo lhe traz, como ao que anda no deserto.
Não posso dizer mais; chegaria a dizer tudo. A arte
dos caracteres mereceria ser aqui indicada com algumas citações: os episódios,
como os amores de Tadeu em Corumbá, a impiedade de Luísa acerca dos
desregramentos da mãe, a bondade do ferreiro Nasário, e outros que mostram em
Coelho Neto um observador de pulso.
POMBOS-CORREIOS, vulgarmente chamados telegramas,
vieram anteontem do Sul para comunicar que a paz está feita. Tanto bastou para
que a cidade se alegrasse, se embandeirasse e iluminasse. Grandes foram as
manifestações por essa obra generosa, muita gente correu ao palácio de
Itamarati, onde aclamou e cobriu de flores o presidente da República. Natural é
que razões políticas e patrióticas determinassem esse ato, para mim bastava que
fossem humanas. Homo sum, et nihil humanum, etc. Bem sei que a guerra também é
humana, por mais desumana que nos pareça; nem nós estamos aqui só para cortar,
entre amigos, o pão da cordialidade. Para isso, não era preciso sair do Éden.
Não percamos de vista que dos Dois primeiros irmãos um matou o outro, e tinham
todo este mundo por seu. Se algum dia a paz governar universalmente este mundo,
começará então a guerra dos mundos entre si, e o infinito ficará juncado de
planetas mortos. Vingará por último o sol, até que o Senhor apague essa última
vela para melhor se agasalhar e dormir. Sonhará Ele conosco?
Felizmente, são sucessos remotos, e muita gente
dormirá debaixo da terra, antes que comece a derradeira lliada, sem Homero.
Contentemo-nos com a paz que nos sorri agora, e alegremo-nos de ver irmãos
alegres e unidos. Eu, como as letras são essencialmente artesde paz, é natural
que a saúde com particular amor. O tumulto das armas nem sempre é favorável à
poesia.
De resto, a semana começou bem para letras e artes. O
Sr. Senador Ramiro Barcelos achou, entre os seus cuidados políticos, um momento
para pedir que entrasse na ordem do dia o projeto dos direitos autorais.
O Sr. presidente do Senado, de pronto acordo, incluiu
o projeto na ordem do dia. Resta que o Senado, correspondendo à iniciativa de
um e à boa vontade de outro, vote e conclua a lei.
Não lhe peço que discuta. Discussões levam tempo, sem
adiantar nada. O artigo 6.° da Constituição está sendo discutido com
animação e competência, sem que aliás nenhum orador persuada os adversários.
Cada um votará como já pensa. Talvez se pudesse fazer um ensaio de parlamento
calado, em que só se falasse por gestos. como queria um personagem de não sei
que peça de Sardou, achando-se só com uma senhora. Sardou? Não afirmo que fosse
ele, podia ser Barrière ou outro: foi uma peça que vi há muitos anos no extinto
Teatro de S. Januário, crismado depois em Ateneu Dramático, também extinto, ou
no Ginásio Dramático tão extinto como os outros. Tudo extinto; não me ficaram
mais que algumas recordações da mocidade, brevemente extinta.
Recordações da mocidade! Não sei se mande compor estas
palavras em redondo, se em itálico. Vá de ambas as formas. Recordações da
mocidade. Na peça deste nome, já no fim, quando os rapazes dos primeiros atos
têm família e posição social, alguém lembra um ritornello, ou é a própria
orquestra que o toca à surdina; os personagens fazem um gesto para dançar, como
outrora, mas o sentimento da gravidade presente os reprime e todos mergulham
outra vez nas suas gravatas brancas. E o que te sucede, quinquagenário que ora
lês os livros de todos esses rapazes que trabalham, escrevem e publicam. É o
ritornello das gerações novas; ei-lo que te recordo o ardor agora tépido, os
risos da primavera fugidia, os ares da manhã passada. Bela é a tarde, e noites
há belíssimas; mas a frescura da manhã não tem parelha na galeria do tempo.
Eis aqui um Magalhães de Azeredo, que a diplomacia
veio buscar no meio dos livros que fazia. Dante, sendo embaixador, deu exemplo
aos governos de que um homem pode escrever protocolos e poemas, e fazer tão bem
os poemas, que ainda saíam melhores que os protocolos. O nosso Domingos de
Magalhães foi diplomata e poeta. Não conheço as suas notas, mas li os seus
versos, e regalei-me em criança com o Antônio José, representado por João
Caetano, para não falar no Waterloo, que mamávamos no berço, com a "Canção
do Exílio" de Gonçalves Dias.
"Destruindo afinal, as teias que o embaraçavam, o
Presidente da República achou-se, logo, cercado de louros e fores. Nem todas as
aranhas fugiram... A mais perigosa ficou"
Este outro Magalhães-Magalhães de Azeredo-é dos que
nasceram para as letras, governando Deodoro; pertence à geração que, mal chegou
à maioridade, toda se desfaz em versos e contos. Compõe-se destes o livro que
acaba de publicar com o título de Alma Primitiva. Não te enganes; não suponhas
que é um estudo-por meio de histórias imaginadas-da alma humana em flor. Nem
serás tão esquecido que te não lembre a novela aqui publicada; história de
amor, de ciúme e de vingança, um quadro da roça, o contraste da alma de um
professor com a de um tropeiro. Tal é o primeiro conto; o último, "Uma
Escrava", é
também um quadro da roça, e a meu ver, ainda melhor
que o primeiro. É menos um quadro da roça que da escravidão. Aquela D.
Belarmina, que manda vergalhar até sangrar uma mucama de estimação, por ciúmes
do marido, cujo Filho a escrava trazia nas entranhas, deve ser neta daquela
outra mulher que, pelo mesmo motivo, castigava as escravas, com tições acesos
pessoalmente aplicados. Di-lo não sei que cronista nosso, frade naturalmente;
mais recatado que o frade, fiquemos aqui. São horrores, que a bondade de muitas
haverá compensado; mas um povo forte pinta e narra tudo.
Não é o conto único da roça e da escravidão, nem só
dele se compõe este livro variado. Creio que a melhor página de todas é a do
"Ahasvero", quadro terrível de um navio levando o cólera-mórbus, pelo
oceano fora, rejeitado dos portos, rejeitado da vida. É daqueles em que o
estilo é mais condensado e vibrante.
Não cuides, porém, que todas as páginas deste livro
são cheias de sangue e de morte. Outras são estudos tranqüilos de um sentimento
ou de um estado' quadros de costumes ou desenvolvimento de uma ideia. De
Além-Túmulo tem o elemento fantástico, tratado com fina significação e sem
abuso. O que podes notar em quase todos os seus contos é um ar de família, uma
feição mesclada de ingenuidade e melancolia. A melancolia corrige a ingenuidade
dando-lhe a intuição do mal mundano; a ingenuidade tempera a melancolia,
tirando-lhe o que possa haver nela triste ou pesado. Não é só fisicamente que o
Dr. Magalhães de Azeredo é simpático, moralmente atrai. A educação mental que
lhe deram auxiliou uma natureza dócil. Os seus hábitos de trabalho são, como
suponho, austeros e pacientes. Duvidará algumas vezes de si? O trabalho
dar-lhe-á a mesma fé que tenho no seu futuro.
AQUILO QUE LULU SÊNIOR disse anteontem a respeito do
professor inglês que enforcaram na Guiné trouxe naturalmente a cor alegre que
ele empresta a todos os assuntos. As pessoas que não lêem telegramas não viram
a notícia; ele, que os lê, fez da execução do inglês e dos autores do ato uma
bonita caçoada. Nada há, entretanto, mais temeroso nem mais lúgubre.
Não falo do enforcamento, ordenado pelas autoridades
indígenas. Eu, se fosse autoridade de Guiné, também condenaria o professor
inglês, não por ser inglês, mas por ser professor. Enforcaram o homem, e não há
de ser a simples notícia de um enforcado que faça perder o sono nem o apetite.
A descrição do ato faria arrepiar as carnes, mas os telegramas não descrevem
nada, e o professor foi pendurado fora da nossa vista. Nem mais teremos aqui
tal espetáculo o desuso e por fim a lei acabaram com a forca para sempre, salvo
se a lei de Lynch entrar nos nossos costumes; mas não me parece que entre.
Quanto ao crime que levou o professor inglês ao
cadafalso africano, não é ainda o que mais me entristece e abate. Dizem que
comeu algumas crianças. Compreendo que o matassem por isso. É um crime
hediondo, naturalmente; mas há outros crimes tão hediondos, que ainda afligindo
a minha alma, não me deixam prostrado e quase sem vida. Demais, pode ser que o
professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente
falando. Pegou de um pequeno e comeu-o. Os ouvintes, sem saber onde ficava a
diferença entre o canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o
professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné
tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o
professor continuou a devorar meninos. Foi o que em pedagogia se chama
"lição das cousas".
Se assim fosse, deveríamos antes lastimar o sacrifício
que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar
gentes incultas. Mas seria isso? Foi o amor ao ensino, a dedicação à ciência, a
nobre missão do progresso e da cultura? Ou estaremos vendo os primeiros sinais
de um terrível e próximo retrocesso? Vou explicar-me.
Em 1890, foi descoberto e processado em Minas Gerais
um antropófago. Um só já era demais; mas o processo revelou outros, sendo o
major de todos o réu Clemente, apresentado ao juiz municipal de Grão Gogol, Dr.
Belisário da Cunha e Melo, ao qual estava sujeito o termo de Salinas, onde se
deu o cave.
Não era este Clemente nenhum vadio, que preferisse
comer um homem a pedir-lhe dez tostões pare comer outra cousa. Era lavrador
tinha vinte e dois anos de idade. Confessou perante o subdelegado haver matado
e comido seis pessoas, dois homens, duas mulheres e duas crianças. Não tenham
pena de todos, os comidos. Um deles, a moça Francisca, antes de ser comida por
ele, com quem vivia maritalmente,
ajudou-o a matar e a comer outra moça, de nome Maria.
Outro comido, um tal Basílio, foi com ele à casa de Fuão Simplício, onde
pernoitaram, estando o dono a dormir, os dois hóspedes com uma mão-de-pilão o
mataram, assaram e comeram. Mas tempos depois, um sábado, 29 de novembro de
1890, levado de saudades, matou o companheiro Basílio e estava a comer-lhe as
coxas, tendo já dado cabo da parte superior do corpo, quando foi preso. Os dois
meninos comidos antes, chamavam-se Vicente e Elesbão e eram irmãos de
Francisca, filhos de Manuela. Por que escapou Manuela? Talvez por não ser moça.
Oh!
mocidade! Oh! flor das flores! A mesma antropofagia te
prefere e busca. Aos velhos basta que os desgostos os comam.
Importa notar que o inventor da antropofagia, no termo
de Salinas não foi Clemente, mas um tal Leandro, filho de Sabininha, e mais a
mulher por nome Emiliana. Propriamente foram estes os que mataram um menino, e
o levaram para casa, e o esfolaram e assaram; mas, quando se tratou de comê-lo,
convidaram amigos, entre eles Clemente, que confessou ter recebido uma parte do
defunto. A informação consta do interrogatório. Não tive outras notícias nem
sei como acabou o processo. Hão de lembrar-se que esse foi o ano terrível
(1890-91) em que se perdeu e ganhou tanto dinheiro que não pude ler mais nada.
Comiam-se aqui também uns aos outros sem ofensa do
código-ao menos no capítulo do assassinato.
A conclusão que tiro do caso de Salinas e do caso da
Guiné é que estamos talvez prestes a tornar atrás, cumprindo assim o que diz um
filósofo-não sei se Montaigne-que nós não fazemos mais que andar à roda. Há de
custar a crer, mas eu quisera que me explicassem os dois casos, a não ser
dizendo que tal costume de comer gente é repugnante e bárbaro, além de
contrário à religião; palavra de civilizado, que outro civilizado desmentiu
agora mesmo na Guiné. Não esqueçam a proposta de Swift , para tornar as crianças
irlandesas , que são infinitas, úteis ao bem público. "Afirmou-me um
americano disse ele, meu conhecido de Londres e pessoa capaz, que uma criança
de boa saúde e bem nutrida, tendo um ano de idade, é um alimento delicioso,
nutritivo e são, quer cozido, quer assado, de forno ou de fogão". É
escusado replicar-me que Swift quis ser apenas irônico. Os ingleses é que
atribuíram essa intenção ao escrito pelo sentimento de repulsa; mas os próprios
ingleses acabaram de provar na África a veracidade e (com as restrições devidas
à humanidade e à religião) o patriotismo de Swift.
Talvez o deão e o americano se hajam enganado em
limitar às crianças de um ano as qualidades de sabor e nutrição. Se tornarmos à
antropofagia, é evidente que o uso irá das crianças aos adultos, e pode já
fixar-se a idade em que a gente ainda deva ser comida: quarenta a quarenta e
cinco anos. Acima desta idade, não creio que as qualidades primitivas se
conservem. Como é provável que a atual civilização subsista em grande parte, é
naturalíssimo que se façam instituições próprias de criação humana, ou por
conta do Estado, ou de acordo com a lei das sociedades anônimas. Penso também
que acabará o crime de homicídio, pois que o modo certo de defesa do criminoso
será, logo que estripe o seu inimigo ou rival, ceá-lo com pessoas de polícia.
Horrível, concordo, mas nós não fazemos mais que andar
à roda, como dizia o outro... Que me não posso lembrar se foi realmente
Montaigne, pois iria daqui pesquisar o livro, para dar o texto na própria e
deliciosa língua dele! Os franceses têm um estribilho que se poderá aplicar à
vida humana, dado que o seu filósofo tenha razão:
Si cette histoire vous embête,
Nous allons la recommencer.
Os portugueses têm esta outra, para facilitar a
marcha, quando são dois ou mais que vão andando:
Um, Dois, três;
Acerta o passo, Inês,
Outra vez!
Estribilhos são muletas que a gente forte deve
dispensar. Quando voltar o costume da antropofagia, não há mais que trocar o
"amai-vos uns aos outros", do Evangelho, por esta doutrina:
"Comei-vos uns aos outros". Bem pensado são os dois estribilhos da
civilização.
NÃO ME FALEM de anistias, nem de chuvas, nem de frios,
nem do naufrágio do Britânia, nem do eclipse da semana. Há pessoas que trazem
de cor os eclipses. Também eu fui assim, graças aos almanaques. Um dia, porém,
vendo que o sol e a lua, posto que primitivos, eram ainda os melhores
almanaques deste mundo, acabei com os outros. A
economia é sensível; mas nem por isso ando com os olhos no céu. Tendo tropeçado
tanta vez, como o sábio antigo, sigo o conselho da velha e não tiro os olhos do
chão: é o mais seguro gesto para não cair no poço.
Vós, que me ledes há três anos ou mais, duvidareis um
pouco desta afirmação. Sim, é possível que me tenhais visto com os olhos no
firmamento, à cata de alguma estrela perdida ou sonhada. Não o vejo, mas não
tenho tempo de me reler, nem já agora rasgo o que aí fica, para dizer outra
coisa. Farei de conta que isto é uma retificação, à maneira dos escrivães e
outros oficiais, como esta que leio no último número do Arquivo Municipal:
"Proveu mais o dito ouvidor-geral que dos primeiros efeitos desta Câmara
se faça um tinteiro de prata, na forma do outro que acabou, digo, na forma do
outro que serve". Com um simples digo se põe o contrário.
Esse Arquivo não traz só velhos documentos, mas também
lições e boas regras. No dito auto de correição, que se fez ali pelos fins do
primeiro terço do século passado, emendou-se muita lacuna e cortou-se muita
demasia.
Proveu mais o ouvidor, que por quanto há grandes
queixas do mal que se cobram os foros dos bens do Conselho, por serem dados
alguns a pessoas poderosas, e outros a pessoas eclesiásticas, mandou que daqui
em diante se não dêem mais a semelhantes pessoas, senão dando fiadores chãos e
abonadores ...
Os próprios governadores não escaparam a este terrível
ouvidor-geral, que também mandou que por nenhum cave de hoje em diante se dê
mais a nenhum governador desta praça ajuda de custo pare cases nem pare outros
efeitos alguns, das rendas da Câmara com pena de os pagarem os oficiais da
Câmara e de não entrarem mais no governo desta República.
Enfim, até mandou que se contratasse um letrado, o
licenciado Bento Homem de Oliveira, com o ordenado de trinta e Dois mil-réis
por ano.
Trinta e Dois mil-réis por ano! Bom tempo, ah! bom
tempo! Apesar da nobreza da terra, não vivia ainda nem morria a Marquesa de
Três Rios, que só com médicos despendeu (dizem as notícias de São Paulo) cerca
de quinhentos contos. Bom tempo, ah! bom tempo, em que se taxava o preço a
tudo, e o regimento dos alfaiates marcava para um colete, uma véstia e um
calção (um terno diríamos hoje) a quantia de quatro mil-réis. O torneiro de
chifre (ofício extinto) tinha no seu regimento que um tinteiro grande de
escrivão com tampa custasse quatrocentos réis, e um dito grande com sua poeira,
quatrocentos e oitenta réis. Que era sua poeira? Talvez a areia que ainda
achei, em criança, antes que o mataborrão servisse também para enxugar as
letras. Usos, costumes, regras e preços que se foram com os anos.
Com os séculos foram ainda outras cousas, e não só
desta terra como de alheios-o Egito, para não ir mais longe. Há Dois Egitos o
atual, que, não sendo propriamente ilha, é uma espécie de ilha britânica-e o
antigo, que se perde na noite dos tempos. Este é o que o nosso Coelho Neto põe
no Rei Fantasma. Não conheço um nem outro; não posso comparar nem dizer nada da
ocupação inglesa nem da restauração Coelho Neto. Tenho que a restauração sempre
há de ter sido mais difícil que a ocupação, mas fio que o nosso patrício haverá
estudado conscienciosamente a matéria.
É certo que o autor, no prólogo do livro, afirma que
este é tradução de um velho papyrus, trazido do Cairo por um estrangeiro que
ali viveu em companhia de Mariette. O estrangeiro veio para aqui em 1888, e com
medo das febres meteu-se pelo sertão levando o papyrus, os anubis, mapas e
cachimbos. Aí o conheceu, aí trabalharam juntos; morto o estrangeiro, Coelho
Neto cedeu a rogos e deu ao prelo o livro.
Conhecemos todos essas fábulas. São inventos que
adornam a obra ou dão maior liberdade ao autor.
Aqui, nada tiram nem trocam ao estilo de Coelho Neto,
nem afrouxam a viveza da sua imaginação. A imaginação é necessária nesta casta
de obras. A de Flaubert deu realce e vida a Salam6o, sem desarmar o grande
escritor da erudição precisa para defender-se, no dia em que o acusaram de
haver falseado Carthago. Quando o autor é essencialmente erudito, como Ebers,
preocupa-se antes de textos e indicações; pegai na Filha de Um Rei do Egito,
contai as notas, chegareis a 525. Ebers nada esqueceu; conta-nos, por exemplo,
que o mais velho de Dois homens que vão na barca pelo Nilo "passa a mão
pela barba grisalha, que lhe cerca o queixo e as faces, mas não os
lábios", e manda-nos para as notas, onde nos explica que os espartanos não
usavam bigodes. Não sei se Coelho Neto iria a todas as particularidades antigas
mas aqui está uma de todos os tempos, que lhe não esqueceu, e trata-se de barca
também, uma que chega à margem para receber o rei: "os remos arvorados
gotejavam"... Não tenho com que analise ou interrogue o autor do Rei
Fantasma acerca dos elementos do livro. Sei que este interessa, que as
descrições são vivas, que as paixões ajudam a natureza exterior e a estranheza
dos costumes. Há quadros terríveis; a cena de Amanci e da concubina tem grande
movimento, e o suplício desta dói ao ler, tão viva é a pintura da moça,
agarradaaos ferros e fugindo aos leões. O mercado de Peh'n e a panegíria de
Isis são páginas fortes e brilhantes.
A SEMANA acabou com um tristíssimo desastre. Sabeis
que foi a morte do Conselheiro Tomás Coelho, um dos brasileiros mais ilustres
da última geração do Império. Não é mister lembrar os cargos que exerceu
naquele regímen, deputado, senador, duas vezes ministro, na pasta da guerra e da
agricultura. Se o Império não tem caído, teria sido chefe de governo, talhado
para esse cargo pela austeridade, talento, habilidade e influência pessoal.
Os que o viram de perto poderão atestar o afinco dos
seus estudos e a tenacidade dos seus trabalhos. Unia a gravidade e a
afabilidade naquela perfeita harmonia que exprime um caráter sério e bom. No
mundo econômico exerceu análoga influência que tinha no mundo político. A
ambos, e a toda a sociedade deixa verdadeira e grande mágoa. Nem são poucos os que
devem sentir palpitar o coração lembrado e grato.
A morte de Tomás Coelho, em qualquer circunstancia,
seria dolorosa; mas o repentino dela tornou o golpe maior. As 5 horas da tarde
de sexta-feira subiu a Rua do Ouvidor, tranqüilo e conversando; mais de um
amigo o cortejou, satisfeito de o ver assim. Nenhum imaginava que quatro horas
depois seria cadáver.
Outro óbito, não do homem político, mas que faz
lembrar um varão igualmente ilustre, começou enlutando a semana. Há alguns anos
que se despediu deste mundo um dos seus atenienses: Otaviano.
Aquele culto e fino espírito, que o jornal, que a
palestra, e alguma vez a tribuna, viram sempre juvenil, recolhera-se nos
últimos dias, flagelado por terrível enfermidade. Não perdera o riso, nem o
gosto, tinha apenas a natural melancolia dos velhos. Amigos iam passar com ele
algumas horas, para ouvi-lo somente, ou para recordar também. Os rapazes que só
tinham vinte anos não conheceram esse homem que foi o mais elegante jornalista
do seu tempo, entre os Rochas, e Amarais, quando apenas estreava "este
outro que a todos sobreviveu com as mesmas louçanias de outrora:
Bocaiúva."
A casa era no Cosme Velho. As horas da noite eram ali
passadas, entre os seus livros, falando de cousas do espírito, poesia,
filosofia, história, ou da vida da nossa terra, anedotas políticas, e
recordações pessoais. Na mesma sala estava a esposa, ainda elegante, a despeito
dos anos, espartilhada e toucada, não sem esmero, mas com a singeleza própria
da matrona. Tinha também que recordar os tempos da mocidade vitoriosa quando os
salões a contavam entre as mais belas. O sorriso com que ouvia não era
constante nem largo, mas a expressão do rosto não precisava dele para atrair a
D. Eponina as simpatias de todos.
Um dia Otaviano morreu. Como as aves que Chateaubriand
viu irem do Ilissus, na emigração anual, despediu-se aquela, mas sozinha, não
como os casais de arribação. D. Eponina ficou, mas acaba de sair também deste
mundo. Morreu e enterrou-se quarta-feira. Quantas se foram já, quantas ajudam o
tempo a esquecê-las, até que a morte as venha buscar também! Assim vão umas e
outras enquanto este século se fecha e o outro se abre, e a juventude renasce e
continua. Isso que ai fica é vulgar, mas é daquele vulgar que há de sempre
parecer novo como as belas tardes e as claras noites. E a regra também das
folhas que caem... Mas, talvez isto vos pareça Millevoye em prosa; falemos de
outro Millevoye sem prosa nem verso.
Refiro-me às árvores do mesmo bairro do Cosme Velho,
que, segundo li, já foram e têm de ser derrubadas pela Botanical Carden. A Gazeta
por si, e o Jornal do Comércio, por si e por alguém que lhe escreveu, chamaram
a atenção da autoridade municipal para a destruição de tais árvores, mas a
Botanical Garden explicou que se trata de levar o bond elétrico ao alto do
bairro, não havendo mais que umas cinco árvores destinadas à morte. Achei a
explicação aceitável. Os bonds de que se trata não passam até aqui do Largo do
Machado. As viagens são mais longas do que antes, é certo, mas não é por causa
da eletricidade; são mais longas por causa dos comboios de Dois e três carros,
que param com freqüência. A incapacidade de um ou outro dos chamados
motorneiros é absolutamente alheia à demora. Pode dar lugar a algum desastre,
mas a própria companhia já provou, com estatísticas, que os bonds elétricos
fazem morrer muito menos gente que o total dos outros carros.
Demais, é natural que nas terras onde a vegetação é
pouca, haja mais avareza com ela, e que em Paris se trate de salvar o Bois de
Boulogne e outros jardins. Nos países em que a vegetação é de sobra, como aqui,
podem despir-se dela as cidades. Uma simples viagem ao sertão leva-nos a ver o
que nunca hão de ver os parisienses. Assim respondo à Gazeta, não que seja
acionista da companhia, mas por ter um amigo que o é. Nem sempre os burros hão
de dominar. Se os do Ceará nos deram o exemplo de jornadear ao lado da estrada
de ferro, concorrendo com ela no transporte da carga, foi com o único fito de
defender o carrancismo. Burro é atrasado é teimoso; mas os do Ceará acabaram
por ser vencidos. O mesmo há de acontecer aos nossos. Agora, que a vitória da
eletricidade no Cosme Velho e nas Laranjeiras devesse ser alcançada poupando as
árvores, é possível; mas sobre este ponto não conversei com autoridade
profissional.
Ao menos conto que não terão posto abaixo alguma das
árvores da chácara de D. Olimpia, naquele bairro - a mesma que o Sr. Aluizio
Azevedo afirma ter escrito o Livro de Uma Sogra, que ele acaba de publicar, e
que vou acabar de ler.
QUANDO A VIDA cá fora estiver tão agitada e aborrecida
que se não possa viver tranqüilo e satisfeito, há um asilo para a minha alma- e
para o meu corpo, naturalmente.
Não é o céu, como podeis supor. O céu é bom, mas eu
imagino que a paz lá em cima não estará totalmente consolidada. Já lá houve uma
rebelião; pode haver outras. As pessoas que vão deste mundo, anistiadas ou
perdoadas por Deus, podem ter saudades da terra e pegar em armas. Por pior que
a achem, a terra há de dar saudades, quando ficar tão longe que mal pareça um
miserável pontinho preto no fundo do abismo. Ó pontinho preto, que foste o meu
infinito I (exclamarão os bem-aventurados), quem me dera
poder trocar esta chuva de maná pela fome do deserto!
O deserto não era inteiramente mau; morria-se nele, é verdade, mas vivia-se
também; e uma ou outra vez, como nos povoados, os homens quebravam a cabeça uns
I aos outros-sem saber por que, como nos povoados.
Não, devota amiga da minha alma, o asilo que buscarei,
quando a vida for tão agitada como a desta semana, não é o céu, é o Hospício
dos Alienados. Não nego que o dever comum é padecer comumente, e atacarem-se
uns aos outros, para dar razão ao bom Renan, que pôs esta sentença na boca de
um latino: "O mundo não anda senão pelo ódio de Dois irmãos
inimigos". Mas, se o mesmo Renan afirma, pela boca do mesmo latino que
"este mundo é feito para desconcertar o cérebro humano", irei para
onde se recolhem os desconcertados, antes que me desconcertem a mim.
Que verei no hospício? O que vistes quarta-feira numa
exposição de trabalhos feitos pelos pobres doudos, com tal perfeição que é
quase uma fortuna terem perdido o juízo. Rendas, flores, obras de lã, carimbos
de borracha, facas de pau, uma infinidade de cousas mínimas, geralmente
simples, para as quais não se lhes pede mais que atenção e paciência. Não
fazendo obras mentais e complicadas, tratados de jurisprudência ou
constituições políticas, nem filosofias nem matemáticas, podem achar no
trabalho um paliativo à loucura, e um pouco de descanso à agitação interior.
Bendito seja o que primeiro cuidou de encher-lhes o tempo com serviço, e
recompor-lhe em parte os fios arrebentados da razão.
Mas não verei só isso. Verei um começo de Epimênides,
uma mulher que entrou dormindo, em 14 de setembro do ano passado, e ainda não
acordou. Já lá vai um ano. Não se sabe quando acordará; creio que pode morrer
de velha. como outros que dormem apenas sete ou oito horas por dia, e ir-se-á
para a cova, sem ter visto mais nada. Para isso, não valerá a pena ter dormido
tanto. Mas suponhamos que acorde no fim deste século ou no começo do outro, não
terá visto uma parte da história, mas ouvirá contá-la, e melhor é ouvi-la que
vivê-la. Com poucas horas de leitura ou de outiva, receberá notícia do que se
passou em oito ou dez anos, sem ter sido nem atriz nem comparsa, nem público. É
o que nos acontece com os séculos passados. Também ela nos contará alguma
cousa. Dizem que, desde que entrou para o hospício, deu apenas um gemido, e põe
algumas vezes a língua de fora. O que não li é se, além de tal letargia, goza
do benefício da loucura. Pode ser, a natureza tem desses obséquios complicados.
Aí fica dito o que farei e verei para fugir ao tumulto
da vida. Mas há ainda outro recurso, se não puder alcançar aquele a tempo: um
livro que nos interesse, dez, quinze, vinte livros. Disse-vos no fim da outra
semana que ia acabar de ler o Livro de Uma Sogra. Acabei-o muito antes dos
acontecimentos que abalaram o espírito público.
As letras também precisam de anistia. A diferença é
que, para obtê-la, dispensam votação. É ato próprio; um homem pega em si, mete-se
no cantinho do gabinete, entre os seus livros, e elimina o resto. Não é
egoísmo, nem indiferença; muitos sabem em segredo o que lhes dói do mal
político, mas, enfim, não é seu ofício curá-lo. De todas as cousas humanas,
dizia alguém com outro sentido por diverso objeto,-a única que tem o seu fim em
si mesma é a arte.
Sirva isto para dizer que a fortuna do livro do Sr.
Aluízio Azevedo é que, escrito para curar um mal, ou suposto mal, perde desde
logo a intenção primeira, para se converter em obra de arte simples. Dona
Olímpia é um tipo novo de sogra, uma sogra avant la lettre. Antes de saber com
quem há de casar a filha, já pergunta a si mesma (p. 112) de que maneira
"poderá dispor do genro e governá-lo em sua íntima vida conjugal".
Quando lhe aparece o futuro genro, consente em dar-lhe a filha, mas pede-lhe
obediência, pede-lhe a palavra, e, para que esta se cumpra, exige um papel em
que Leandro avise à polícia que não acuse ninguém da sua morte, pois que ele
mesmo pôs termo a seus dias; papel que será renovado de três em três meses. D.
Olímpia declara-lhe, com franqueza, que é para salvar a sua impunidade, caso
haja de o mandar matar. Leandro aceita a condição; talvez tenha a mesma
impressão do leitor, isto é, que a alma de D. Olímpia não é tal que chegue ao
crime.
Cumpre-se, entretanto, o plano estranho e minucioso,
que consiste em regular as funções conjugais de Leandro e Palmira, como a
famosa sineta dos jesuítas do Paraguai. O marido vai para Botafogo, a mulher
para as Laranjeiras. Balzac estudou a questão do leito único, dos leis unidos,
e dos quartos separados; D. Olímpia inventa um novo sistema, o de duas casas,
longe uma da outra. Palmira concebe, D. Olímpia faz com que o genro embarque
imediatamente para a Europa, apesar das lágrimas dele e da filha. Quando a moça
concebe a segunda vez, é o próprio genro que se retira para os Estados Unidos.
Enfim, D. Olímpia morre e deixa o manuscrito que forma este livro, para que o
genro e a filha obedeçam aos seus preceitos.
Todo esse plano conjugal de D. Olímpia responde ao
desejo de evitar que a vida comum traga a extinção do amor no coração dos
cônjuges. O casamento, a seu ver, é imoral. A mancebia também é imoral. A
rigor, parece-lhe que, nascido o primeiro filho, devia dissolver-se o
matrimônio, porque a mulher e o marido podem acender em outra pessoa o desejo
de conceber novo filho, para o qual já o primeiro cônjuge está gasto; extinta a
ilusão, é mister outra. D. Olímpia quer conservar essa ilusão entre a filha e o
genro. Posto que raciocine o seu plano, e procure dar-lhe um tom especulativo,
de mistura com particularidades fisiológicas, é certo que não possui noção
exata das cousas, nem dos homens.
Napoleão disse um dia, ante os redatores do código
civil, que o casamento (entenda-se monogamia) não derivava da natureza, e citou
o contraste do ocidente com o oriente. Balzac confessa que foram essas palavras
que lhe deram a ideia da Fisiologia. Mas o primeiro faria um código, e o
segundo enchia um volume de observações soltas e estudos analíticos. Diversa cousa
é buscar constituir uma família sobre uma combinação de atos irreconciliáveis,
como remédio universal, e algo perigoso D. Olímpia, querendo evitar que a filha
perdesse o marido pelo costume do matrimônio, arrisca-se a fazer-lho perder
pela intervenção de um amor novo e transatlântico.
Tal me parece o livro do Sr. Aluízio Azevedo. Como
ficou dito, é antes um tipo novo de sogra que solução de problema. Tem as
qualidades habituais do autor, sem os processos anteriores, que, aliás, a obra
não comportaria. A narração, posto que intercalada de longas reflexões e
críticas, é cheia de interesse e movimento. O estilo é animado e colorido. Há
páginas de muito mérito, como o passeio à Tijuca, os namorados adiante, O Dr.
César e D. Olímpia atrás. A linguagem em que esta fala da beleza da floresta e
das saudades do seu tempo é das mais sentidas e apuradas do livro.
VAMOS TER, no ano próximo, uma visita de grande
importância. Não é Leão XIII, nem Bismarck, nem Crispi, nem a rainha de
Madagascar, nem o imperador da Alemanha, nem Verdi, nem o Marquês Ito, nem o
Marechal Iamagata. Não é terremoto nem peste. Não é golpe de Estado nem cambio
a 27. Para que mais delongas? 12 Luísa Michel.
Li que um empresário americano contratou a diva da
anarquia pare fazer conferências nos Estados Unidos e na América do Sul. Há ideias
que só podem nascer na cabeça de um norte-americano. Só a alma ianque é capaz
de avaliar o que lhe renderá uma viagem de discurso daquela famosa mulher, que
Paris rejeita e a quem Londres dá a hospedagem que distribui a todos, desde os
Bourbons até os Barbès.
De momento, não posso afirmar que Barbès estivesse em
Londres; mas ponho-lhe aqui o nome, por se parecer com Bourbons e contrastar
com eles nos princípios sociais e políticos. Assim se explicam muitos erros de
data e de biografia: necessidades de estilo, equilíbrios de oração.
Desde que li a notícia da vinda de Luísa Michel ao Rio
de Janeiro tenho estado a pensar no efeito do acontecimento. A primeira cousa
que Luísa Michel verá, depois da nossa bela baía, é o cais Pharoux atulhado de
gente curiosa, muda, espantada. A multidão far-lhe-á alas, com dificuldade,
porque todos quererão vê-la de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala.
Metida na cabeça com o empresário e o intérprete, irá pare o Hotel dos
Estrangeiros, onde terá aposentos cômodos e vastos. Os outros hóspedes, em vez
de fugirem à companhia, quererão viver com ela, respirar o mesmo ar, ouvi-la
falar de política, pedir-lhe notícias da comuna e outras instituições.
Dez minutos depois de alojada, receberá ela um cartão
de pessoa que lhe deseja falar: é o nosso Luís de Castro que vai fazer a sue
reportagem fluminense. Luísa Michel ficará admirada da correção com que o
representante da Gazeta de Notícias fala francês. Perguntar-lhe-á se nasceu em
França.
-Não, minha senhora, mas estive lá algum tempo; gosto
de Paris. amo a língua francesa. Venho da parte da Gazeta de Notícias pare
ouvi-la sobre alguns pontos; a entrevista sairá impressa amanhã, com o seu
retrato. Pelo meu cartão, terá visto que somos xarás: a senhora é Luísa, eu sou
Luís. Vamos, porém, ao que importa...
Acabada a entrevista, chegará um empresário de teatro,
que vem oferecer a Luísa Michel um camarote para a noite seguinte. Um poeta irá
apresentar-lhe o último livro de versos: Dilúvios Sociais. Três moças pedirão à
diva o favor de lhe declarar se vencerá o carneiro ou o leão.
- O carneiro, minhas senhoras; o carneiro é o povo, há
de vencer, e o leão será esmagado.
- Então não devemos comprar no leão?
- Não comprem nem vendam. Que é comprar? Que é vender?
Tudo é de todos. Oh! esqueçam essas locuções, que só exprimem ideias tirânicas.
Logo depois virá uma comissão do Instituto Histórico,
dizendo-lhe francamente que não aceita os princípios que ela defende, mas,
desejando recolher documentos e depoimentos para a história pátria precisa
saber até que ponto o anarquismo e o comunismo estão relacionados com esta
parte da América.
A diva responderá que por ora, além do caso Amapá, não
há nada que se possa dizer verdadeiro comunismo aqui. Traz, porém, ideias
destinadas a destruir e reconstituir a sociedade, e espera que o povo as
recolha para o grande dia. A comissão diz que nada tem com a vitória futura, e
retira-se.
É noite a diva quer jantar; está a cair de fome; mas
anuncia-se outra comissão, e por mais que o empresário lhe diga que fica para
outro dia ou volte depois de jantar, a comissão insiste em falar com Luísa
Michel. Não vem só felicitá-la, vem tratar de altos interesses da revolução;
pede-lhe apenas quinze minutos. Luísa Michel manda que a comissão entre.
- Madama, dirá um dos cinco membros, o principal
motivo que nos traz aqui é o mais grave para nós.
Vimos pedir que V. Ex.a nos ampare e proteja com a
palavra que Deus lhe deu. Sabemos que V. Ex.a vem fazer a revolução, e nós a
queremos, nós a pedimos...
- Perdão, venho só pregar ideias.
- Ideias bastam. Desde que pregue as boas ideias
revolucionárias podemos considerar tudo feito.
Madama, nós vimos pedir-lhe socorro contra os
opressores que nos governam, que nos logram, que nos dominam, que nos
empobrecem: os locatários. Somos representantes da União dos Proprietários. V.
Exa. há de ter visto algumas casas ainda que poucas, com uma placa em que está
o nome da associação que nos manda aqui.
Luisa Michel, com os olhos acesos, cheia de comoção,
dirá que, tendo chegado agora mesmo, não teve tempo de olhar para as casas;
pede à comissão que lhe conte tudo. Com que então os locatários?. ..
- São os senhores deste país, madama. Nós somos os
servos; daí a nossa União.
-Na Europa é o contrário, observa; os locatários, os
proletários, os refratários...
- Que diferença! Aqui somos nós que nos ligamos, e
ainda assim poucos, porque a maior parte tem medo e retrai-se. O inquilino é
tudo. O menor defeito do inquilino, madama, é não pagar em dia; há-os que não
pagam nunca, outros que mofam do dono da casa. Isto é novo, data de poucos
anos. Nós vivemos há muito, e não vimos cousa assim. Imagine V. Exa. - Então os
locatários são tudo? - Tudo e mais alguma cousa. Luisa Michel, dando um salto:
-- Mas então a anarquia está feita, o comunismo está feito justamente madama. É
a anarquia...
-Santa anarquia, caballero, -interromperá a diva,
dando este tratamento espanhol ao chefe da comissão,-santa, três vezes santa
anarquia! Que me vindes pedir. vós outros, proprietários? que vos defenda os
aluguéis? Mas que são aluguéis? Uma convenção precária, um instrumento de
opressão, um abuso da força. Tolerado como a tortura, a fogueira e as prisões,
os aluguéis têm de acabar como os demais suplícios. Vós estais quase no fim. Se
vos ligais contra os locatários, é que a vossa perda é certa.
O governo é dos inquilinos. Não são já os aristocratas
que têm de ser enforcados: sereis vós:
Çà ira, çà ira, çà i'a,
Les propriétaiies à la lanterne!
Não entendendo mais que a última palavra, a comissão
nem espera que o intérprete traduza todos os conceitos da grande anarquista; e,
sem suspeitar que faz impudicamente um trocadilho ou cousa que o valha, jura
que é falso, que os proprietários não põem lanternas nas casas, mas
encanamentos de gás. Se o gás está caro, não é culpa deles, mas das contas
belgas ou do gasto excessivo dos inquilinos. Há de ser engraçado se, além de
perderem os aluguéis, tiverem de pagar o gás. E as penas d'água? as décimas? os
consertos?
Luísa Michel aproveita uma pausa da comissão para
soltar três vivas à anarquia e declarar ao empresário americano que embarcará
no dia seguinte para ir pregar a outra parte. Não há que propagar neste país,
onde os proprietários se acham cm tão miserável e justa condição que já se unem
contra os inquilinos; a obra aqui não precisava discursos. O empresário,
indignado, saca do bolso o contrato e mostra-lho. Luísa Michel fuzila
impropérios. Que são contratos? pergunta. O mesmo que aluguéis,-uma espoliação.
Irrita-se o empresário e ameaça. A comissão procura
aquietá-lo com palavras inglesas: Time is money, five o'clock... O intérprete
perde-se nas traduções. Eu, mais feliz que todos, acabo a semana.
CONVERSÁVAMOS alguns amigos, à volta de uma mesa, eram
5 horas da tarde, bebendo chá. Cito a hora e o chá para que se compreenda bem a
elegância dos costumes e das pessoas. Suponho que os inglese é que inventaram
esse uso de beber chá às 5 horas. Os franceses imitaram os ingleses, nós
estávamos vendo se, imitando os franceses há de haver alguém que nos imite. Os
russos, esses bebem chá E todas as horas; o samovar está sempre pronto. Os
chineses também e podem crer-se os homens mais finamente educados do mundo, se
E nota da educação é beber chá em pequeno, como diz um adágio desta terra de
café. Creio que chegam à perfeição de mamá-lo.
Bebíamos chá e falávamos de cousas e lousas. Foi na
quarta-feira desta semana. Abriu-se um capitulo de mistérios, de fenômenos
obscuros, e concordávamos todos com Hamlet, relativamente à miséria da
filosofia. O próprio espiritismo teve alguns minutos de atenção. Saí de lá
envolvido em sombras. Um amigo que me acompanhou pôde distrair-me, falando do
plano que tem (aliás secreto) de ir ler feócrito, debaixo de alguma árvore da
Elélade. Imaginem que é moço, como a antiguidade, ingênuo e bom, ama e vai
casar. Pois com tudo isso, não pôde mais que distrair-me, apenas me deixou, as
sombras envolveram-me outra vez.
Então, lembrei-me do caso daquela Inês, moradora à Rua
dos Arcos n.° 18, que achou a morte, assistindo a uma sessão da
Associação Espírita, Rua do Conde d'Eu. Pode muito bem ser que já te não
lembres de Inês, nem da morte, nem do resto. Eu mesmo, a não ser o chá das 5, é
provável que houvesse esquecido tudo. Os acontecimentos desta cidade duram três
dias. - O bastante para que um hóspede cheire mal, segundo outro adágio. A
primeira notícia abala a gente toda, é a conversação do dia; a segunda já acha
os espíritos cansados; a terceira enfastia. Cessam as notícias, e o
acontecimento desaparece, como uns simples autos e outras feituras humanas.
Inês, assistindo à prática do Sr. Abalo, que é o
presidente da associação, teve um ataque nervoso que, segundo os depoimentos,
se transformou em sonambulismo. Transferida pelos fundos da casa n.°
146 para a casa n.° 144, ali morreu às 5 horas da manhã. Paulina, que é
o médium da associação, depôs que Inês nunca antes assistira a tais sessões, e
que já ali chegara, meio adoentada. Outras pessoas foram ouvidas, entre elas o
presidente Abalo, que fez declarações interessantes. Insistia em que as
práticas ali são meramente evangélicas, e entrou em minudências que reputo
escusadas ao meu fim.
O meu fim é mais alto. Não quero saber se Inês faleceu
do ataque, nem se este foi produzido pela prática evangélica do presidente, que
aliás declarou na ocasiãoser cousa desacertada levar àquele lugar pessoas
sujeitas a tais crises. Também não quero saber se todas as moléstias, como diz
o médium, são curáveis com um pouco d'água e um padre-nosso (medicina muito
mais cristã que a do Padre Kneipp, que exclui a oração) ou se basta este mesmo
padre-nosso e a palavra do presidente; ambas as afirmações se combinam, se
atendermos a que a melhor água do mundo é a palavra da verdade. Outrossim, não
indago se o presidente Abalo, como inculca teria "um poder incomparável,
caso chegasse a escrever o que fala".
É ponto que entende com a própria doutrina espírita.
A questão substancial, e posso dizer única, é a
liberdade. O presidente Abalo e o médium Paulina confessaram já ter sido
processados, com outros membros da associação, por praticarem o espiritismo. O
primeiro acrescentou que, se bem conheça o art. 157 do Código Penal, exerce o
espiritismo de acordo com a disposição do art. 72 da Constituição.
Os entendidos terão resposta fácil; eu, simples leigo,
não acho nenhuma. Deixo-me estar entre o Código e a Constituição, pego de um
artigo, pego de outro, leio, releio e tresleio. Realmente, a Constituição, mãe
do Código, acaba com a religião do Estado, e não lhe importa que cada um tenha
a que quiser. Desde que a porta fica assim aberta a todos, em que me hei de
fundar para meter na cadeia o espiritismo?
Responder-me-ás que é uma burla; mas onde está o
critério para distinguir entre o Evangelho lido pelo presidente Abalo, e o do
meu vigário é mais velho, mas uma religião não é obrigada a ter cabelos
brancos. Há religiões moças e robustas. Curar com água? Mas o já citado Padre
Kneipp não faz outra cousa, e o Código, se ele cá vier, deixá-lo-á curar em
paz. Quando o médium Paulina declara que recebe os espíritos, e transmite os
seus pensamentos aos membros da associação, eu se fosse código, diria ao médium
Paulina: Uma vez que a Constituição te dá o direito de receber os espíritos e
os corpos, à escolha, fico sem razão para autuar-te como mereces, minha
finória, mas não te exponhas a tirar algum
relógio aos associados, que isso é comigo.
O espiritismo é uma religião, não sei se falsa ou
verdadeira; ele diz que verdadeira e única. Presunção e água benta cada um toma
a que quer, segundo outro adágio. Hoje tudo vai por adágios. Verdadeiros ou
não, escrevem-se e publicam-se inúmeros livros, folhetos, revistas e jornais
espíritas. Aqui na cidade há uma folha espírita ou duas. Não se gasta tanto
papel, em tantas línguas, senão crendo que a palavra que se está escrevendo é a
própria verdade. Admito que haja alguns charlatães; mas o charlatanismo, bem
considerado, que outra cousa é senão uma bela e forte religião, com os seus
sacerdotes, o seu rito, os seus princípios e os seus crédulos, que somos tu e
eu?
Também há religiões literárias, e o Sr. Pedro Rabelo,
no prólogo da Alma Alheia, alude a algumas e condena-as, chamando-lhes igrejinhas.
O Sr. Pedro Rabelo, porém, não é código, é escritor, e se acrescentar que é
escritor de futuro, não será modesto, mas dirá a verdade. Digo-lha eu, que li
as oito narrativas de que se compõe a Alma Alheia, com prazer e cheio de
esperanças. "A Barricada" e o "Cão"
são os mais conhecidos, e, para mim, os melhores da
coleção. A "Curiosa" é mais que curiosa: é uma predestinada.
"Mana Minduca...", Mas, para que hei de citar um por um todos os
contos? Basta dizer que o Sr. Pedro Rabelo busca uma ideia, uma situação,
alguma cousa que dizer, para transferi-la ao papel.
Tem-se notado que o seu estilo é antes imitativo e
cita-se um autor, cuja maneira o jovem contista procura assimilar. Pode ser
exato em relação a alguns contos; ele próprio acha que há diversidade no estilo
desta (disparidade é o seu termo), e explica-a pela natureza das composições.
Bocage escreveu que com a ideia convém casar o estilo, mas defendia um verso
banal criticado pelo Padre José Agostinho. A explicação do Sr. Pedro Rabelo não
explica o seu caso, nem é preciso. No verdor dos anos é natural não
acertar logo com a feição própria e definitiva, bem
como seguir a um e ao outro, conforme as simpatias intelectuais e a impressão
recente. A feição há de vir, a própria, única e definitiva, bem como seguir a
um e a outro, conforme as simpatias se pode confiar.
TAL É O MEU estado, que não sei se acabarei isto. A
cabeça dói-me, os olhos doem-me, todo este corpo dói-me. Sei que não tens nada
com as minhas mazelas, nem eu as conto aqui pare interessar-te; conto-as,
porque há certo alívio em dizer a gente o que padece. O interesse é meu, tu
podes ir almoçar ou passear.
Vai passear, e observe o que são línguas. Se eu
escrevesse em francês, ter-te-ia feito tal injúria, que tu, se fosses brioso, e
não és outra cousa, lavarias com sangue. Como escrevo em português, dei-te
apenas um conselho, uma sugestão; irás passear deveras pare aproveitar a manhã.
Reflete como os homens divergem, como as línguas se opõem umas às outras, como
este mundo é um campo de batalha. Reflete, mas não deixes de ir passear; se não
amanhecer chovendo, e a neblina cobrir os morros e as torres, terás belo
espetáculo, quando o sol romper de todo e der ao terceiro dia das festas da
República o necessário esplendor.
Não tendo podido ver as outras, vi todavia que
estiveram magnificas; a grande parada militar, os cumprimentos ao Sr.
presidente da República, a abertura da exposição, os espetáculos de gala, as
evoluções da esquadra, foram cerimônias bem escolhidas e bem dispostas pare
celebrar o sexto aniversário do advento republicano . Ainda bem que se
organizam estas comemorações e se convida o povo a divertir-se. Cada
instituição precise honrar-se a si mesma e fazer-se querida, e pare esta
segunda parte não baste exercer pontualmente a justiça e a eqüidade. O povo ama
as cousas que o alegram.
Agora começam as festas. Deodoro estava perto do 15 de
novembro, e tratava-se de organizar a nova forma de governo. Era natural que as
festas fossem escassas e menos várias que as deste ano.
Certamente, o chefe do Estado era amigo das graças e
da alegria. Não foi ainda esquecido o grande baile dado em Itamarati pare
festejar o aniversário natalício do marechal. Encheram-se os salões de fardas,
casacas e vestidos. Gambetta advertiu um dia que la République manquait de
femmes. Compreendia que, numa sociedade polida como a francesa, as mulheres dão
o tom ao governo. As de lá tinham-se retraído; depois apareceram outras.
suponho. Cá houve o mesmo retraimento; nomes distintos e belas elegantes eliminaram-se
inteiramente. Mas nem foram sodas, nem cá se vive tanto de salão.
De resto, como disse acima, Deodoro era amigo das
oracas; acabaria por chamar as senhoras em torno do governo. Um dia. por
ocasião da promessa de cumprir a Constituição, tive ocasião de observar uma
ação que merece ser contada. Foi a primeira e única vez que vi o palácio de S.
Cristóvão transformado em parlamento e mal transformado, porque os
congressistas, acabada a constituinte. mudaram-se pare as antigas cases da
cidade. Pouca gente; mais nas tribunas que no recinto, e no recinto mais
cadeiras que ocupantes.
Anunciou-se que o presidente chegara, uma comissão foi
recebê-lo à porta, enquanto o presidente do Congresso,- atual presidente da
República,-descia gravemente os degraus do estrado em que estava a mesa pare
recebe-lo. Assomou Deodoro, cumprimentou em geral e guiou pare a mesa; em
caminho, porém, viu na tribuna das senhoras algumas que conheci a,-ou
conhecia-as todas,-e , levando os dedos à boca, fez um gesto cheio de galanteria,
acentuado pelo sorriso que o acompanhou. Comparai o gesto, a pessoa, a
solenidade, o momento político, e concluí.
Eu comparei tudo-e comparei ainda o presidente e o
vice-presidente. Aquele proferia as palavras do compromisso com a voz clara e
vibrante, que reboou na vasta sala. Desceu depois com o mesmo aprumo, e saiu. A
entrada do vice-presidente teve igual cerimonial, mas diferiu logo nas palmas
das tribunas, que foram cálidas e numerosas, ao contrário das que saudaram a
chegada do primeiro magistrado. O marechal Floriano caminhou pare a mesa,
cabeça baixa passo curto e vagaroso, e quando teve de proferir as palavras do
compromisso, fê-lo em voz surda e mal ouvida.
Tal era o contraste das duas naturezas. Quando o poder
veio às mãos de Floriano, pelas razões que todos vós sabeis melhor que eu, pois
todos os políticos, vieram os sucessos do princípio do ano, que se prolongaram
e desdobraram até à revolta de setembro e toda a mais guerra civil, que só
agora achou termo, neste primeiro ano do governo do Sr. Dr. Prudente de Morais.
O corpo diplomático acentuou anteontem esta
circunstancia, por boca do Sr. ministro dos Estados Unidos, no discurso com que
apresentou ao honrado presidente da República as sues felicitações e de seus
colegas. O governo que terminou há um ano, só pôde cuidar da guerra; o que
então começou, devolvendo a paz aos homens, pôde iniciar de vez as festas
novembrinas... Novembrinas saiu-me da pena, por imitação das festas maias dos
argentinos, que a 25 de maio, data da independência; mas não há mister nomes
pare fazer festas brilhantes; a questão é fazê-las nacionais e populares.
São obras de paz. Obra de paz é a exposição industrial
que se inaugurou sexta-feira, e vai ficar aberta por muitos dias, mostrando ao
povo desta cidade o resultado do esforço e do trabalho nacional desde o
alfinete até à locomotiva. Depressa esquecemos os males, ainda bem. Esto que
pode ser um perigo em certos caves, é um grande benefício quando se trata de
restaurar a nação.
IMAGINO o que se terá passado em Paris, quando Dumas
Filho morreu. Uma das quarenta... Não cuideis que falo das cadeiras da
Academia. Este mundo não se compõe só de cadeiras acadêmicas; também há nele
interpelações parlamentares, e dizem que o recente ministério tem já de
responder a cerca de quarenta, ou sessenta. Refiro-me justamente às
interpelações. Uma delas verificou-se depois da morte de Dumas Filho. O
interpelante oprimiu naturalmente o ministério, o ministério sacudiu o
interpelante, tudo com o cerimonial de costume, apartes, gritos e protestos;
vieram os votos: o ministério teve a grande maioria deles. Nada disso tirou à
cidade esta ideia única: Dumas Filho morreu. Dumas Filho morreu. Homens,
mulheres, fidalgas e burguesas falaram deste óbito como do de um príncipe
qualquer. Não há já damas das camélias; ele mesmo disse que a mulher que lhe
serviu de modelo ao
personagem de Margarida Gautier foi uma das últimas
que tiveram coração. Podia parecer paradoxo ou presunção de moço se ele não
escrevesse isto em 1867, vinte anos depois da morte de Margarida.
Demais, se as palavras dão ideia das cousas, a segunda
metade deste século não chega a conhecer a primeira. Cortesãs, ou o que quer
que elas eram em 1847, acabaram horizontais, nome que é, por Si, um programa
inteiro, e é mais possível que já lhes hajam dado outro nome mais exato e mais
cru. Não faltarão, porém, mulheres nem homens, tantas figuras vivas, criadas
por ele, tiradas do mundo que passa, para a cena que perpetua. Todos esses, e
todos os demais falaram desta morte como de um luto público.
A moda passará como passou a de Dumas pai, a de
Lamartine, a de Musset, a de Stendhal, a de tantos outros, para tornar mais
tarde e definitivamente. Ás vezes, o eclipse chega a ser esquecimento e
ingratidão. Musset,-que Heine dizia ser o primeiro poeta lírico da
França,-pedia aos amigos, em belos versos, que lhe plantassem um salgueiro ao
pé da cova. Possuo umas lascas e folhas do salgueiro que está plantado na
sepultura do autor das Noites, e que Artur Azevedo me trouxe em 1883; mas não
foram amigos que o plantaram, não foram sequer franceses, foi um inglês.
Parece que, indo fazer a visita aos mortos, doeu-lhe
não ver ali o arbusto pedido e cumprir-se o desejo do poeta. Donde se conclui
que os ingleses nem sempre ficam com a ilha da Trindade. Há deles que dão para
amar os poetas e seus suspiros. Também os há que, por amor das musas, fazem-se
armar soldados.
Um deles quando os gregos bradaram pela independência,
pegou em si para ir ajudá-los e não chegou ao fim; morreu de doença em
Missolonghi. Era par de Inglaterra; chamava-se, creio, eu Georges Gordon Noel
Byron. Tinha escrito muitos poemas e versos soltos e feito alguns discursos.
A glória veio depois da moda, e pôs Dumas pai no lugar
que lhe cabe neste século, como fez aos outros seus rivais. Cada gênio recebeu
a sua palma. Se a moda fizer a Dumas filho o mesmo que aos outros, o tempo
operará igual resgate, e os Dois Dumas encherão juntos o mesmo século. Rara vez
se dará uma sucessão destas, a glória engendrando a glória, o sangue
transmitindo a imortalidade. Sabeis muito bem que, nem por ser filho, o Dumas,
que ora faleceu, deixou de ser outra pessoa no teatro, grande e original.
Entendeu o teatro de outra maneira, fez dele uma
tribuna, mas o pintor era assaz consciente e forte para não deixar ao pé ou de
envolta com a lição de moral ou filosofia uma cópia da sociedade e dos homens
do seu tempo. Dizem também que o filho pôs a vida natural em cena, mas disso já
se gabava o pai em 1833, e creio que ambos, cada qual no seu tempo, tinham
razão.
Nem por ter saboreado a glória a largos sorvos, perdeu
Dumas filho a adoração que tinha ao pai. Ao velho chegaram a chamar por troça
"o pai Dumas". O filho, ao referi-lo, conta uma reminiscência dos
sete anos. Era a noite da primeira representação de Carlos VII. Não entendeu
nem podia entender nada do que via e ouvia. A peça caiu. O autor saiu do
teatro, triste e calado, com o pequeno Alexandre pela mão, este amiudando os
passinhos para poder acompanhar as grandes pernadas do pai. Mais tarde, sempre
que saía da representação das próprias peças, coberto de aplausos, não podia
esquecer, ao tornar para casa, aquela noite de 1831, e dizia consigo: "Pode
ser, mas eu preferia ter escrito Carlos VII, que caiu." Conheceis todo o
resto desse prefácio do Filho Natural, não esquecestes a famosa e célebre
página em que o autor da Dama das Camélias faia ao autor de Antony: "Então
começastes esse trabalho ciclópico que dura há quarenta anos..."
Também o dele durou quarenta anos. A mais de um
espantou agora a notícia dos seus 71 de idade; e ainda anteontem, em casa de um
amigo, dizia este com graça: "então lá se foi o velho Dumas." Todos
tínhamos o sentimento de um Dumas moço, tão moço como a Darna das Camélias. A
verdade é que um e outro guardaram o segredo da eterna juventude.
Lá se foi toda a crônica. Relevai-me de não tratar de
outros assuntos; este prende ainda com o tempo da nossa adolescência, a minha e
a de outros.
Naquela quadra cada peça nova de Dumas Filho ou de
Augier, para só falar de Dois mestres, vinha logo impressa no primeiro paquete,
os rapazes corriam a lê-la, a traduzi-la, a levá-la ao teatro, onde os atores a
estudavam e a representavam ante um público atento e entusiasta, que a ouvia
dez, vinte, trinta vezes. E adverti que não era, como agora, teatros de verão,
com jardim, mesas, cerveja e mulheres com um edifício de madeira ao fundo. Eram
teatros fechados, alguns tinham as célebres e incômodas travessas, que
aumentavam na platéia o número dos assentos. Noites de festas; os rapazes
corriam a ver a Dama das Camélias e o Filho de Giboyer, como seus pais tinham
corrido a ver o Kean e Lucrécia Bórgia. Bons rapazes, onde vão eles? Uns
seguiram o caminho dos autores mortos, outros envelhecem, outros foram para a
política, que é a velhice precoce, outros conservam-se como este que morreu tão
moço.
DAI-ME BOA política e eu vos darei boas finanças.
Quando o Barão S. Louis não for mais nada na memória dos homens, este aforismo
ainda há de ser citado, não tanto por ser verdadeiro, como por tapar o buraco
de uma ideia. Talvez um dia, algum orador equivocadamente troque os termos e
diga: Dai-me boas finanças, e eu vos darei boa política. O que lhe merecerá
grandes aplausos e dará nova forma ao aforismo. Assim fazem os alfaiates às
roupas consertadas de um freguês.
Nada entendendo de política nem de finanças, não estou
no caso de citar um nem outro, o primitivo e o consertado. Esta semana tivemos
os escritos do Sr. senador Oiticica e do Sr. Afonso Pena, presidente do Banco
da República. Entre uns e outros não posso dizer nada. Explico-me. Há nas
palavras uma significação gramatical que, salvo o caso da pessoa escrever como
fala e falar mal, entendesse perfeitamente. O que não chego a compreender é a
significação económica e financeira. Sei o que são lastros, não ignoro o que
são emissões, mas o que do consórcio dos Dois vocábulos entre si e com outros
deve sair, é justamente o que me escapa. Podem arregimentar diante de mim os
algarismos mais compridos, somá-los, diminuí-los, multiplicá-los, reparti-los,
e eu conheço se as quatro operações estão certas, mas o que elas podem dizer,
financeiramente falando, não sei. Há pessoas que não confessam isto, por motivos
que respeito; algumas chegam a escrever estudos, compêndios, análises. Eu sou
(com perdão da palavra) nobremente franco.
Em matéria de dinheiro, sei que a história dele
combina perfeitamente com a do Paraíso terrestre. Há cinqüenta anos, diz uma
folha rio-grandense de 21 do mês passado:
A moeda-papel era cousa raríssima no Rio Grande; ouro
e prata eram as moedas que mais circulavam, inclusive as de cunho estrangeiro,
como as onças e os patacões, que a alfândega recebia, aquelas a 32$ e estes a
25.
Para mim, estas palavras são mais claras que todos os
autores deste mundo. Querem dizer que comprávamos tudo com outro e prata, não
havendo papel senão talvez para fazer coleções semelhantes às de selos,
ocupação não sei se mais se menos recreativa que o jogo da paciência. Hoje, a
circulação, como Margarida Gautier, mira-se ao espelho e suspira: Combien je
suis changée! Hoje quer dizer há muitos anos. E acrescenta como a heroína de
Dumas Filho: Cependant, le docteur m'a promis de me guérir. Que doutor? É o que
se não sabe ao certo; devia dizer os doutores, ou mais simplesmente a faculdade
de Medicina. Realmente, os doutores tinham boa vontade. Conheci Dois, há muitos
anos, que eram como a homeopatia e a alopatia, Dois sistemas opostos. Uma
curava com muitos banhos, outro com um banho só. Além de não chegarem a curar a
nossa doente com um nem com muitos, eles próprios morreram, e a doente vai
vivendo com a sua tuberculose. Como a triste Margarida, esta acrescenta no
mesmo monólogo: l'aurai patience.
Provado que não entendo de finanças, espero que me não
exijam igual prova acerca da poética, posto que a política seja acessível aos
mais ínfimos espíritos deste mundo. A questão, porém, não é de graduação, é de
criação.
Um operoso deputado, o Sr. Dr. Nilo Peçanha,-acaba de
apresentar um projeto de lei destinado a impedir a fraude e as violências nas
eleições. Não pode haver mais nobre intuito. Não há serviço mais relevante que
este de restituir ao voto popular a liberdade e a sinceridade. É o que eu diria
na Câmara se fosse deputado; e, quanto ao projeto, acrescentaria que é
combinação mui própria para alcançar aqueles fins tão úteis. Onde, à hora
marcada, não houver funcionários, o eleitor vai a um tabelião e registra o seu
voto. Assim que, podem os capangas tolher a reunião das mesas eleitorais, podem
os mesários corruptos (é uma suposição) não se reunirem de propósito: o eleitor
abala para o tabelião e o voto está salvo.
Como tabelião, é que não sei se aprovaria a lei. O
tabelião é um ente modesto, amigo da obscuridade, metido consigo, com os seus
escreventes, com as suas escrituras, com o seu Manual. Trazê-lo ao tumulto dos
partidos, à vista das ideias (outra suposição) é trocar o papel desse
serventuário, que por índole e necessidade pública é e deve ser sempre imperturbável.
O menos que veremos com isto é a entrada do tabelião no telegrama. Havemos de
ler que um tabelião, com violência dos princípios e das leis, com afronta da
verdade das classificações, sem nenhuma espécie de pudor, aceitou os votos
nulos de menores, de estrangeiros e de mulheres. Outro será sequestrado na
véspera, e o telegrama dirá, ou que resistiu nobremente à inscrição dos votos,
ou que fugiu covardemente ao dever. Alguns adoecerão no momento psicológico .
Se algum, por ter parentes no partido teixeirista, mandar espancar pelos
escreventes os eleitores dominguistas, cometerá realmente um crime, e incitará
algum colega aparentado com o cabo dos dominguistas a restituir aos
teixeiristas as pancadas distribuídas em nome daqueles. Deixemos os tabeliães
onde eles devem ficar,-nos romances de Balzac, nas comédias de Scribe e na Rua
do Rosário.
Mas, que remédio dou então para fazer todas as
eleições puras? Nenhum, não entendo de política. Sou um homem que, por ler
jornais e haver ido em criança às galerias das câmaras, tem visto muita
reforma, muito esforço sincero para alcançar a verdade eleitoral, evitando a
fraude e a violência, mas por não saber de política, ficou sem conhecer as
causas do malogro de tantas tentativas. Quando a lei das minorias apareceu,
refleti que talvez fosse melhor trocar de método, começando por fazer uma lei
da representação das maiores. Um chefe político, varão hábil, pegou da pena e
ensinou, por circular pública, o modo de cumprir e descumprir a lei, ou, mais
catolicamente, de ir para o céu comendo carne à sexta-feira. Questão de
algarismos. Vingou o plano; a lei desapareceu. Vi outras reformas; vi a eleição
direta servir aos Dois partidos, conforme a situação deles. Vi... Que não tenho
eu visto com estes pobres olhos?
A última cousa que vi foi que a eleição é também outra
Margarida Gautier. Talvez não suspire, como as primeiras: Combien jesus
changée! Mas com certeza atribuirá ao doutor a promessa de a curar. e dirá como
a irmão do teatro e a da praça: J'aurai patience.
TEMO ERRAR, mas creio que Lopes Neto foi o primeiro
brasileiro que se deixou queimar, por testamento, com todas as formalidades do
estilo. As suas cinzas, no discurso do oradores, foram verdadeiramente cinzas.
Agora repousam no lugar indicado pelo testador, e é mais um exemplo que dá a
sociedade italiana da incineração aos homens que vão morrer. Estou certo,
porém, que o sentimento produzido nos patrícios de Lopes Neto foi menos de
admiração que de horror. Toda gente que conheço repele a ideia de ser queimada.
Ninguém abre mão de ir para baixo da terra integralmente, deixando aos amigos
póstumos do homem o ofício de lhe comerem os últimos bocados.
São gostos, são costumes. De mim confesso que tal é o
medo que tenho de ser enterrado vivo, e morrer lá embaixo, que não recusaria
ser queimado cá em cima. Poeticamente, a incineração é mais bela. Vede os
funerais de Heitor. Os troianos gastam nove dias em carregar e amontoar as
achas necessárias para uma imensa fogueira. Quando a Aurora, sempre com aqueles
seus dedos cor-de-rosa, abre as portas ao décimo dia, o cadáver é posto no alto
da fogueira, e esta arde um dia todo. Na manhã seguinte, apagadas as brasas'
com vinho, os lacrimosos irmãos e amigos do magnânimo Heitor coligem os ossos
do herói e os encerram na urna, que metem na cova, sobre a qual erigem um
túmulo. Daí vão para o esplêndido banquete dos funerais no palácio do rei
Príamo.
Bem sei que nem todas as incinerações podem ter esta
feição épica raras acabarão um livro de Homero, e a vulgaridade dará à cremação,
como se lhe chama, um ar chocho e administrativo. O Sr. Conde de Herzberg há de
morrer um dia (que seja tarde!) e será inumado, quando menos para ser coerente.
Outros condes virão, e se a prática do fogo houver já vencido, poderão celebrar
contrato com a Santa Casa para queimar os cadáveres nos seus próprios
estabelecimentos. Então é que havemos de abençoar a memória do atual conde!
Naturalmente haverá duas espécies de classes, a presente (coches, cavalos,
etc.) e a da própria incineração, que se distinguirá pelo esplendor, mediania
ou miséria dos fornos, vestuários dos incineradores, qualidade da madeira.
Haverá o forno comum substituindo a vala comum dos cemitérios.
Se isto que vou dizendo parecer demasiado lúgubre, a
culpa não é minha, mas daquele distinto brasileiro, que morreu duas vezes, a
primeira surdamente, a segunda com o estrondo que acabais de ouvir. Confesso
que a morte de Lopes Neto veio lembrar-me que ele não havia morrido. Os
octogenários de cá, ou trabalham como Otôni, no Senado, ou descansam das suas
grandes fadigas militares, como Tamandaré, que ainda ontem fez anos. Há dias vi
Sinimbu, ereto como nos fortes dias da maturidade. Vi também o mais estupendo
de todos, Barbacena, jovem nonagenário, que espera firme o princípio do século
próximo, a fim de o comparar ao deste, e verificar se traz mais ou menos
esperanças que as que ele viu em menino. Posso adivinhar que há de trazer as
mesmas. Os séculos são como os anos que os compõem.
Lopes Neto foi meter-se na Itália, para que
esquecessem os seus provados talentos e os serviços que prestou ao Brasil. Não
faltam ali cidades nem vilas onde um homem possa dormir as últimas noites ou
andar os últimos dias entre um quadro eterno e uma eterna ruína. A língua que
ali se ouve imagino que repercutirá na alma estrangeira como as estrofes dos
poetas da terra. Por mais que o velho Crispi e o seu inimigo Cavalloti
estraguem o próprio idioma com os barbarismos que o parlamento impõe, um homem
de boa vontade pode ouvi-los, com o pensamento nos tercetos de Dante, e se os
repetir consigo, acaba crendo que os ouviu do próprio poeta. Tudo é sugestivo
neste mundo.
Suponho que o nosso finado patrício não ouviria
exclusivamente os poetas. A política deixa tal unhada no espírito, que é
difícil esquecê-la de todo, mormente aqueles a quem lhes nasceram os dentes
nela. Se tem vivido um pouco, mais leria os telegramas que levaram esta semana
a toda a Itália, como ao resto do mundo, a notícia do desastre de Eritréia.
Talvez a idade ainda lhe consentisse irritar-se como os patriotas italianos, e
clamar com eles pela necessidade da desforra. Sentiria igualmente a dor das
mães e esposas que correram às secretarias para saber a sorte dos filhos e
maridos. Execraria naturalmente aquele negus e todos os seus rases, que dispõem
de tantos e inesperados recursos. Mas, pondo de lado a grandeza da dor e o brio
dos vencidos, se Lopes Neto tivesse a fortuna de haver esquecido a política e
as suas duras necessidades, acharia sempre algum retábulo velho, algum trecho
de mármore, alguma cantiga de rua, com que passar as manhãs de azul e sol.
Umas das máximas que escaparam a mestre Calino é que
nem tudo é guerra, nem tudo é paz, e as cousas valem segundo o estado da alma
de cada um. O estilo é que não traria esses colarinhos altos e gomados, mas
caídos à marinheira. Calino tinha a virtude de falar claro, a sua tolice era
transparente. O que eu quero dizer pela linguagem deste grande descobridor de
mel-de-pau é que nem toda a Itália é Cipião, alguma parte há de ser Rafael e
outros defuntos.
Lá ficou entre esses, incinerado como tantos antigos,
o homem que deu princípio a esta crônica, e já agora lhe dará fim. O céu
italiano lhe terá feito lembrar o brasileiro, e quero crer que a sua última
palavra foi proferida na nossa língua; mas, como a confusão das línguas veio do
orgulho humano, é certo que é o céu, que é só um, entende-as todas, como antes
de Babel, e tanto faz uma como outra, para merecer bem. A última ou penúltima
vez que vi Lopes Neto estava com um jovem de quinze anos, filho de Solano
López, que apresentava a algumas pessoas, na Rua do
Ouvidor. O moço sorria sem convicção, eu pensava nas vicissitudes humanas. Se o
pai não tivesse feito a guerra, haveria morrido em Assunção, e talvez ainda
estivesse vivo. O filho seria o seu natural sucessor, e o atual presidente do
Paraguai não estaria no poder. O fortuna! ó loteria! ó bichos!
À BEIRA de um A ocupará esta triste semana? Pode ser
que nem tu, nem eu, leitor amigo, vejamos a aurora do século próximo, nem
talvez a do ano que vem. Para acabar o ano faltam trinta e seis horas, e em tão
pouco tempo morre-se com facilidade, ainda sem estar enfermo. Tudo é que os
dias estejam contados.
A questão do suicídio não vem agora à tela. Este velho
tema renasce como esse pobre Raul Pompéia, que deixou a vida inesperadamente,
aos trinta e Dois anos de idade. Sobravam-lhe talentos, não lhe faltavam
aplausos nem justiça aos seus notáveis méritos. Estava na idade em que se pode
e se trabalha muito. A política, é certo, velo ao seu caminho para lhe dar
aquele rijo abraço que faz do descuidado transeunte ou do adventício namorado
um amante perpétuo. A figura é manca, não diz esta outra parte da verdade,- que
Raul Pompéia não seguiu a política por sedução de um partido, mas por força de
uma situação. Como a situação ia com o sentimento e o temperamento do homem,
achou-se ele partidário exaltado e sincero com as ilusões todas,-das quais se
deve perder metade para fazer a viagem mais leve,-com as ilusões e os nervos.
Tal morte fez grande impressão. Daqueles mesmos que
não comungavam com as suas ideias políticas, nenhum deixou de lhe fazer justiça
à sinceridade. Eu conheci-o ainda no tempo das puras letras. Não o vi nas lutas
abolicionistas de S. Paulo. Do Ateneu, que é o principal dos seus livros, ouvi
alguns capítulos então inéditos, por iniciativa de um amigo comum. Raul era
todo letras, todo poesia todo Goncourts. Estes Dois irmãos famosos tinham
qualidades que se ajustavam aos talentos literários e psicológicos do nosso
jovem patrício, que os adorava. Aquele livro era num eco. do colégio, um feixe
de reminiscências, que ele soubera evocar e traduzir na língua que lhe era
familiar, tão vibrante e colorida, língua em que compôs os numerosos escritos
da imprensa diária, nos quais o estilo responda aos pensamentos.
A questão do suicídio não vem agora à tela. Este velho
tema renasce sempre que um homem dá cabo de si, mas é logo enterrado com ele,
para renascer com outro. Velha questão, velha dúvida. Não tornou agora à tela,
porque o ato de Raul Pompéia incutiu em todos uma extraordinária sensação de
assombro. A piedade veio realçar o ato, com aquela única lembrança do moribundo
de Dois minutos pedindo à mãe que acudisse à irmã, vítima de uma crise nervosa.
Que solução se dará ao velho tema? A melhor é ainda a do jovem Hamlet: The rest
is silence.
Mas deixemos a morte. A vida chama-nos. Um amigo meu
foi ao cemitério, trouxe de lá a sensação da tranquilidade, quase da atração do
lugar, mas não como lugar de mortos, senão de vivos. Naturalmente achou naquele
ajuntamento de casas brancas e sossegadas uma imagem de vila interior. A
capital é o contrário. A vida ruidosa chama-nos, leitor amigo. com os seus mil
contos de réis da loteria que correu ontem na Bahia.
A ideia da agência-geral, Casa Camões & C., de
expor na véspera o cheque dos mil contos de réis para ser entregue ao possuidor
do bilhete a quem sair aquela soma, foi quase genial. Não bastava dizer ou
escrever que o prêmio é de mil contos e que havia de sair a alguém. A maior
parte dos incrédulos que ali
passavam-falo dos pobres - não acreditavam a
possibilidade de que tais mil contos lhes saíssem a eles.
Eram para eles uma soma vaga, incoercível, abstrata,
que lhes fugiria sempre. A agência Camões & C. não esqueceu ainda os
Lusíadas, decerto; Há de lembrar-se da Ilha dos Amores, quando os fortes
navegantes dão com as ninfas nuas, e deitam a correr atrás delas. Sabe muito
melhor que eu, que os rapazes, à força de correr, dão com elas no chão. A
vitória foi certa e igual e, sem que o poema traga a
estatística dos moços e das moças, é sabido que
ninguém perdeu na luta, tal qual sucede às loterias deste continente. Mas o
pobre quando vê muita esmola, desconfia. Os mil contos eram uma só ninfa, que
corria por todas as outras, e que ele não ousava crer que alcançasse, ainda
recitando os afamados e doces versos da agência Camões & C.:
Oh! não me fujas! Assim nunca o breve Tempo fuja da
tua formosura!
Dizer versos é uma cousa, e receber mil contos de réis
é outra. As vezes excluem-se. Quando, porém, os mil contos se lhe põem diante
dos olhos, sob a forma de um cheque, uma ordem de pagamento, o mais incrédulo
entra e compra um bilhete; aos mais escrupulosos ficará até a sensação
esquisita de estar cometendo um furto, tão certo lhes parece que o cheque vai
atrás do bilhete, e que ele está ali, está na tesouraria do banco. A venda deve
ter sido considerável.
De resto, quem é que, de um ou de outro modo, não
expõe o seu cheque à porta? O próprio espiritismo, que se ocupa de altos
problemas, fez do Sr. Abalo um cheque vivo, e ninguém ali entra sem a certeza
de que verá a eternidade, ou definitivamente pela morte, ou provisoriamente
pela loucura. Os que não têm certeza e ficam pasmados do prêmio que lhes cai
nas mãos, imitam nisto os que compram bilhetes de loteria para fugir à
perseguição dos vendedores, que trepam aos bonds, e os metem à cara da gente.
O inquérito aberto pela polícia, por ocasião de alguns
prêmios saídos aos fregueses, é duas vezes inconstitucional: 1.°, por
atentar contra a liberdade religiosa; 2.°, por ofender a liberdade
profissional. Eu, irmão noviço, posso morrer sem crime de ninguém; é um modo de
ir conversar outros espíritos e associar-me a algum que traga justamente a
felicidade ao nosso país. Quanto a ti, irmão professo, não é claro que tanto
podes curar por um sistema como por outro? Quem te impede de comerciar, ensinar
piano, legislar, consertar pratos, defender ou acusar em juízo? Se a polícia
examina os casos recentes de loucura mais ou menos varrida, produzidos pelas práticas
do Sr. Abalo, não ataca só ao Sr. Abalo, mas ao meu cozinheiro também. Acaso é
este responsável pelas indigestões que saem dos seus jantares? Que é a demência
senão uma indigestão do cérebro?
E acabo "A Semana" sem dizer nada daquele
cão que salvou o Sr. Estruc, na Praia do Flamengo, às cinco horas da manhã. A
rigor, tudo está dito, uma vez que se sabe que os cães amam os donos, e o Sr.
Estruc era dono deste. Nadava o dono longe da praia, sentiu perder as forças e
gritou por socorro. O cão, que estava em terra e não tirava os olhos dele,
percebeu a voz e o perigo, meteu-se no mar, chegou ao dono, segurou-o com os
dentes e restitui-o à terra e à vida. Toda a gente ficou abalada com o ato do
cão, que uma folha disse ser exemplo de nobreza", mas que eu atribuo ao
puro sentimento de gratidão e de humanidade. Ao ler a notícia lembrei-me as
muitas vezes que tenho visto donos de cães, metidos em bonds, serem seguidos
por eles na rua, desde o Largo da Carioca até o fim de Botafogo ou das
Laranjeiras, e disse comigo: Não haverá homem que, sabendo andar, acuda aos
pobres-diabos que vão botando a alma pela boca fora? Mas ocorreu-me que eles
são tão amigos dos senhores, que morderiam a mão dos que quisessem
suspender-lhes a carreira, acrescendo que os donos dos cães poderiam ver com
maus olhos es se ato de generosidade.
QUISERA DIZER alguma cousa a este ano de l896, mas não
acho nada tão novo como ele. Pode responder-nos a todos que não faremos mais
que repetir os amores contados aos que passaram, iguais esperanças e as mesmas
cortesias. "Não me iludis,-dirá 1896,-sei que me não amais
desinteressadamente;
egoístas eternos, quereis que eu vos dê saúde e
dinheiro, festas, amores, votos e o mais que não cabe neste pequeno discurso.
Direis mal de 1895, vós que o adulastes do mesmo modo quando ele apareceu;
direis o mesmo mal de mim, quando vier o meu sucessor."
Para não ouvir tais injúrias, limito-me a dizer deste
ano que ninguém sabe como ele acabará, não porque traga em si algum sinal meigo
ou terrível, mas porque é assim com todos eles. Daí a inveja que tenho às
palavras dos homens públicos. Agora mesmo o presidente da República Francesa
declarou, na recepção do Ano-Bom que a política da França é pacífica;
declaração que, segundo a Agencia Havas, causou a mais agradável impressão e
segurança a toda a Europa. Oh! por que não nasci eu assaz político para
entender que palavras dessas podem suster os acontecimentos, ou que um país
ainda que premedite uma
guerra, venha denunciá-la no primeiro dia do ano,
avisando os adversários e assustando o comércio e os neutros! Pela minha falta
de entendimento, neste particular, declarações tais não me comovem. menos ainda
se saem da boca de um presidente como o da República Francesa, que é um simples
rei constitucional, sem direito de opinião.
Napoleão III tinha efetivamente a Europa pendente dos
lábios no dia 1 de janeiro; mas esse, pela Constituição imperial, era o único
responsável do governo, e, se prometia paz, todos cantavam a paz, sem deixar de
espiar para os lados da França, creio eu. Um dia, declarou ele que os tratados
de 1815 tinham deixado de existir, e tal foi o tumulto por aquele mundo todo,
que ainda cá nos chegou o eco. Um socialista, Proudhon, respondeu-lhe
perguntando, em folheto, se os tratados de 1815 podiam deixar de existir, sem
tirar à Europa o direito público. Nesse dia, tive um vislumbre de política,
porque entendi o rumor e as suas causas, sem negar, entretanto, que os anos
trazem, com o seu horário, o seu roteiro.
Não sabemos dos acontecimentos que este nos trará, mas
já sabemos que nos trouxe a lembrança de um, - o centenário do sino grande de
S. Francisco de Paula. Na véspera do dia 1 deste mês, ao passar pelo largo, dei
com algumas pessoas olhando para a torre da igreja. Não entendendo o que era,
fui adiante; no dia seguinte, li que se ia festejar o centenário do sino
grande. Não me disseram o sentido da celebração, se era arqueológico, se
metalúrgico, se religioso, se simplesmente atrativo da gente amiga de festejar
alguma cousa. Cheguei a supor que era uma loteria nova, tantas são as que
surgem, todos os dias.
Loterias há impossíveis de entender pelo título, e nem
por isso são menos afraguesadas, pois nunca faltam Champollions aos hieróglifos
da velha Fortuna.
Isto ou aquilo, o velho sino merece as simpatias
públicas. Em primeiro lugar, é sino, é não devemos esquecer o delicioso
capítulo que sobre este instrumento da igreja escreveu Chateaubriand. Em
segundo lugar, deu bons espetáculos à gente que ia ver cá de baixo o sineiro
agarrado a ele. Um dia, é certo, o sineiro voou da torre e veio morrer em
pedaços nas pedras do largo; morreu no seu posto.
Aquela igreja tem uma história interessante. Vês ali
na sacristia, entre os retratos de corretores, um velho Siqueira, calção e
meia, sapatos de fivela, cabeleira postiça, e chapéu de três bicos na mão? Foi
um dos maiores serviçais daquela casa. Síndico durante trinta e um anos, morreu
em 1811, merecendo que vá ao fim do primeiro século e entre pelo segundo. O que
mais me interessa nele, é a pia fraude que empregava para recolher dinheiro e
continuar as obras da igreja. Aos que desanimavam, respondia que contassem com
algum milagre do patriarca. De noite, ia ele próprio ao adro da igreja,
chegava-se à caixa das esmolas e metia-lhe todo o dinheiro que levava, de maneira
que, aos sábados, aberta a caixa, davam com ela pejada do necessário para
saldar as dívidas. As rondas seriam poucas, a iluminação escassa, fazia-se o
milagre e com ele a igreja. Não digo que os Siqueiras morressem, mas, tendo
crescido a polícia e paralelamente a virtude, o dinheiro é dado diretamente às
corporações, e dali a notícia às folhas públicas.
Não faltará quem pergunte como é que tal milagre,
feito às escondidas, veio a saber-se tão miudamente que anda em livros. Não sei
responder, provavelmente houve espiões, se é que o amor da contabilidade exata
não levou o velho Siqueira a inscrever em cadernos os donativos que fazia. Há
outro costume dele que justifica esta minha suposição. Siqueira possuía navios;
simulava (sempre a simulação!) ter neles um marinheiro chamado Francisco de
Paula, e pagava à igreja o ordenado correspondente. O donativo era
assim ostensivo por amor da contabilidade.
A contabilidade podia trazer-me a cousas mais
modernas, se me sobrasse tempo; mas o tempo é quase nenhum. Resta-me o preciso
para dizer que também fez o seu aniversário, esta semana, a inauguração do
Panorama do Rio de Janeiro, na Praça Quinze de Novembro. Foi em 1891, há apenas
cinco anos, mas os centenários não são blocos inteiros, fazem-se de pedaços. As
pirâmides tiveram o mesmo processo. A arte não nasceu toda nem junta. O
Panorama resistiu, notai bem, às balas da revolta. Certa casa próxima, onde eu
ia por obrigação, foi mais uma vez marcada por elas, na própria sala em que me
achei, caíram
duas. Conservo ainda, ao pé de algumas relíquias
romanas, uma que lá caiu na segunda-feira 2 de outubro de 1893. o Panorama do
Rio de Janeiro não recebeu nenhuma, ou resistiu-lhes por um prodígio só
explicável à vista dos fins artísticos da construção. Que as paixões políticas
lutem entre si, mas respeitem as artes. anda nas suas aparências.
Adeus. O sol arde, as cigarras cantam, um cão late,
passam um bond. Consolemo-nos com a ideia de que um dia, de todos estes
fenômenos, -nem o sol existirá. É banal, mas o calor não dá ideias I novas.
Adeus.
SE NÃO FOSSE O receio de cair no desagrado das
senhoras, dava-lhes um conselho. O conselho não é casto, não é sequer
respeitoso, mas econômico, e por estes tempos de mais necessidade que dinheiro
a economia é a primeira das virtudes.
Vá lá o conselho. Sempre haverá algumas que me
perdoem. A poesia brasileira, que os poetas andaram buscando na vida cabocla,
não deixando mais que os versos bons e maus, isto nos dai agora, senhoras
minhas. Fora com obras de modistas; mandai tecer a simples arazóia, feita de
finas plumas, atai-a à cintura e vinde passear cá fora. Podeis trazer um colar
de cocos, um cocar de penas e mais nada. Escusai leques, luvas, rendas,
brincos, chapéus, tafularia inútil e custosíssima. A dúvida única é o calçado.
Não podeis ferir nem macular os pés acostumados à meia e à botina, nem nós
podemos calçar-vos, como João de Deus queria fazer à descalça dos seus versos:
Ah! não ser eu o mármore em que pisas...
Calçava-te de beijos.
Não seria decente nem útil; para essa dificuldade
creio que o remédio seria inventar uma alpercata nacional, feita de alguma
casca brasileira, flexível e sólida. E estáveis prontas. Nos primeiros dias, o
espanto seria grande, a vadiação maior e a circulação impossível, mas, a tudo
se acostuma o homem.
Demais, o próprio homem teria de mudar o vestuário. Um
pedaço de couro de boi, em forma de tanga, sapatos atamancados para durarem
muito, um chapéu de pele eterna, sem bengala nem guarda-chuva. O guarda-chuva
não era só desnecessário, mas até pernicioso, visto que a única medicina e a
única farmácia baratas passam a ser (como eu dizia a uma amiga minha) o Padre
Kneipp e a água pura.
Em verdade, esse padre alemão, nascido para médico,
descobriu a melhor das medicações para um povo duramente tanado na saúde. Quem
ma i s tomará as pílulas de V i chi comprimidas , o vinho de Labarraque ou a
simples magnésia de Murray (estrangeiras ou nacionais, pois que o preço é o
mesmo), quem mais as tomará, digo, se basta passear na relva molhada, pés
descalços, com Dois minutos de água fria no lombo, para não adoecer? Conheço
alguns que vão trocar a alopatia pela homeopatia, a ver se acham
simultaneamente alívio à dor e às algibeiras. A homeopatia é o protestantismo
da medicina; o
kneippismo é uma nova seita, que ainda não tem
comparação na história das religiões, mas que pode vir a triunfar pela
simplicidade. O homem nasceu simples, diz a Escritura; mas ele mesmo é que se
meteu em infinitas questões. Para que nos meteremos em infinitas beberagens,
patrícios da minha alma''
Dizem que a vida em São Paulo é muito cara. Mas São
Paulo, se quiser, terá a saúde barata; basta meter-se-lhe na cabeça ir adiante
de todos como tem ido. Inventará novos medicamentos e vendê-los-á por preço
cômodo. Leste a circular do presidente convidando os demais Estados produtores
de café para uma conferência e um acordo? ~ documento de iniciativa, ponderado
e grave. Aproximando-se a crise da produção excessiva, cuida de aparar-lhe os
golpes antecipadamente. Mas nem só de café vive o homem, caso em que se acha
também a mulher. Assim que duas paulistas ilustres tratam de abrir carreira às
moças pobres para que disputem aos homens alguns misteres, até agora exclusivos
deles. Eis aí outro cuidado prático. Estou que verão a flor e o fruto da árvore
que plantarem. Quando à vida espiritual das mulheres, basta citar as duas moças
poetisas que ultimamente se revelaram, uma das quais, D. Zalina Rolim, acaba de
perder o pai. A outra, D. Júlia Francisca da Silva, tema poesia doce e por
vezes triste como a desta rival que cá temos e se chama Júlia Cortmes; todas
três publicaram há um ano os seus livros.
Falo em poetisas e em mulheres; é o mesmo que falar em
João de Deus, que deve estar a esta hora depositado no panthéon dos Jerônimos,
segundo nos anunciou o telégrafo. Não sei se ele adorou poetisas; mas que
adorou mulheres, é verdade, e não das que pisavam tapetes, mas pedras, ou
faziam meia à porta da casa, como aquela Maria, da Carta, que é a mais
deliciosa de suas composições. Se essa Maria foi a mais amada de todas, não
podemos sabê-lo, nem ele próprio o saberia talvez. Há uma longa composição sem
título, de vário metro, em que há lágrimas de tristeza; mas as tristezas podem
ser grandes e as lágrimas passageiras ou não, sem que daí se tire conclusão
certa. A verdade é que todo ele e o livro são mulheres, e todas as mulheres
rosas e flores. A simpleza, a facilidade, a espontaneidade de João de Deus são
raras, a emoção verdadeira, o verso cheio de harmonia quase sem arte, ou de
arte natural que não dá tempo a recompô-la.
Um dos que verão passar o préstito de João de Deus
será esse outro esquecido, - como esquecido estava o autor das Flores do
Ca''7po, patrício nosso e poeta inspirado, Luis Guimarães. Não digo esquecido
no passado, porque os seus versos não esquecem aos companheiros nem aos
admiradores, mas no presente.
Um de seus dignos rivais, Olavo Bilac, deu-nos há dias
Dois lindos sonetos do poeta, que ainda nos promete um livro. A doença não o
matou, a solidão não lhe expeliu a musa, antes a conservou tão maviosa como
antes. O que a outros bastaria para descrer da vida e da arte, a este da força
para empregar na arte os pedaços de vida que lhe deixaram e que valerão por
toda ela. O poeta ainda canta. Crê no que sempre creu.
Há fenômenos contrários. Vede Zola. A notícia de
sexta-feira traz um telegrama contando o resumo da entrevista de um repórter
com o célebre romancista, acerca da chantagem que apareceu nos jornais
franceses. Zola deu as razões do mal e conclui que "há excesso de
liberdade e falta de ideais cristãos,'.
Deus meu! e por que não uma cadeira na Academia
francesa?
NO TEMPO do Romantismo, quando o nosso Alvares de
Azevedo cantava, repleto de Byron e Musset:
A Itália! sempre a Itália delirante!
E os ardentes saraus e as noites belas!
A Itália era um composto de Estados minúsculos,
convidando ao amor e à poesia, sem embargo da prisão em que pudessem cair
alguns liberais. Há livros que se não escreveriam sem essa divisão política, a
Chartreuse cie Parme, por exemplo; mal se pode conceber aquele Conde Mosca
senão sendo ministro de Ernesto IV de Parma. O ministro Crispi não teria tempo
nem gosto de ir namorar no Scala de Milão a Duquesa de Sanseverina. Era assim
parcelada que nós, os rapazes anteriores à tríplice aliança e apenas
contemporâneos de Cavour, imaginávamos a Itália e passeávamos por ela.
Agora a Itália é um grande reino que já não fala a
poetas, apesar do seu Carducci, mas a políticos e economistas, e entra a ferro
e fogo pela África, como as demais potências européias. O grande desastre desta
semana, se foi sentido por todos os amigos da Itália, é também prova certa de
que a civilização não é um passeio, e para vencer o próximo imperador da Etiópia
é necessário haver muita constância e muita força. Os italianos mostraram essa
mesma opinião dando com Crispi em terra,-por quantos meses? Eis o que só nos
pode dizer o cabo, em alguma bela manhã, ou bela tarde, se a Noticia se
antecipar às outras folhas. Quanto à guerra, é certo que continuará e o mesmo
ardor com que o povo derribou Crispi saudará a vitória próxima e maiormente a
definitiva. Cumpra-se o que dizia o poeta naqueles versos com que Machiavelli
fecha o seu livro mais célebre:
Che l'antico valore
Nell'italici cuor mon è ancor morto.
Nós cá não temos Menelick, mas temos o cambio, que, se
não é abexim como ele, é de raça pior. Inimigo sorrateiro e calado, já está em
oito e tanto e ninguém sabe onde parará; é capaz de nem parar em zero e descer
abaixo de]e uns oito graus ou nove. Nesse dia, em vez de possuirmos trezentos
réis em cada dez tostões, passaremos a dever os ditos trezentos réis, desde que
a desgraça nos ponha dez tostões nas mãos.
Donde se conclui que até a ladroeira acabará. Roubar
para quê?
O mal do cambio parece-se um pouco com o da febre
amarela, mas, para a febre amarela, a magnésia fluida de Murray. que até agora
só curava dor de cabeça e indigestões, é específico provado reste verão,
segundo leio impresso em grande placa de ferro. Que magnésia há contra o
cambio? Que Murray já descobriu o modo certo de acabar com a decadência
progressiva do nosso triste dinheiro com as fomes que aí vêm, e os meios luxos,
os quartos de luxo, outra conseqüências melancólicas deste mal?
Um economista apareceu esta semana lastimando a
sucessiva queda de cambio e acusando por ela o Ministro da Fazenda. Não lhe
contesta a inteligência, nem probidade, nem zelo, mas nega-lhe tino e, em prova
disto, pergunta-lhe à queima-roupa. Por que não vende a estrada Central do
Brasil? A pergunta é tal que nem dá tempo ao ministro para responder que tais
matérias pendem de estudo, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, que ao
Congresso Nacional cabe resolver por último.
Felizmente, não é esse o único remédio lembrado pelo
dito economista. Há outro, e porventura mais certo: é auxiliar a venda da
Leopoldina e suas estradas. Desde que auxilie esta venda, o ministro mostrará
que não lhe falta tino administrativo. Infelizmente, porém, se o segundo
remédio por consertar as finanças federais, não faz a mesma causa às do Estado
do Rio de Janeiro, tanto que este, em vez de auxiliar a venda das estradas da
Leopoldina, trata de as comprar para si. Cumpre advertir que a eficácia deste
outro remédio não está na riqueza da Leopoldina, porquanto sobre esse ponto
duas opiniões se manifestaram na assembléia fluminense. Uns dizem que a
companhia deve vinte e Dois mil contos ao Banco do Brasil e está em demanda com
o Hipotecário, que Lhe pede seis mil. Outros não dizem nada.
Entre essas duas opiniões, a escolha é difícil. Não
obstante, vemos estes Dois remédios contrários: no Estado do Rio a compra da
Leopoldina é necessária para que a administração tome conta das estradas, ao
passo que a venda da Central é também necessária para que o governo da União
não a administre. Verité au-deçà, erreur au-delà.
Neste conflito de remédios ao cambio e às finanças,
invoquei a Deus, pedindo-lhe que, como a Tobias, me abrisse os olhos. Deus
ouviu-me, um anjo baixou dos céus, tocou-me os olhos e vi claro. Não tinha
asas, trazia a forma de outro economista, que publicou anteontem uma exposição
do negócio assaz luminosa. Segundo este outro economista, a compra da
Leopoldina deve ser feita pelo Estado do Rio de Janeiro, porque tais têm sido
os seus negócios precipitados e ilegais (emprega ainda outros nomes feios, dos
quais o menos feio é mixórdia) que não haverá capitalistas que a tomem. Não
havendo capitalistas
que comprem a Leopoldina, cabe ao Estado do Rio de
Janeiro comprá-la, atender aos credores, e não devendo administrar as estradas,
"porque o Estado é péssimo administrador", venderá depois a
Leopoldina a particulares. Foi então que entendi que a verdade é só um, au-deçà
e au-delà, a diferença é transitória, é só o tempo de comprar e vender, ainda
com algum sacrifício, diz o economista! No intervalo mete-se uma rolha na boca
dos credores. Sabe-se onde é que os alfaiates põem a boca dos credores. Talvez
algum americanista, exaltado ou não, ainda se lembre da palavra de Cleveland
quando pela segunda vez assumiu o governo dos Estados Unidos. A palavra é
paternalismo e foi empregada para definir o sistema dos que querem fazer do
governo um pai. Cleveland condena fortemente esse sistema, mas ele nada pode
contra a natureza. O Estado não é mais que uma grande família, cujo chefe deve
ser pai de todos.
Aliviado como fiquei do conflito, abri novamente o
último livro de Luís Murat e pus-me a reler os versos do poeta. Deus meu, aqui
não há estradas nem compras, aqui ninguém deve um real a nenhum banco, a não
ser o banco de Apolo: mas este banco empresta para receber em rimas, e o poeta
pagou-lhe capital e juros. Posto que ainda moço, Luís Murat tem nome feito,
nome e renome merecido. Os versos deste segundo volume das Ondas já foi notado
que desdizem do prefácio; mas não é defeito dos versos, senão
do prefácio. Os versos respiram vida íntima, amor e
melancolia, as próprias páginas da Tristeza do Caos, por mais que queiram, a
princípio, ficar na nota Impessoal, acabam no pessoal puro e na desesperança.
O poeta tem largo fôlego. Os versos são, às vezes
menos castigados do que cumpria, mas é essa mesma a índole do poeta, que Lhe
não permite senão produzir como a natureza: os passantes que colham as belas
flores entre as ramagens que não têm a mesma igualdade e correção. Luís Murat
cultiva a antítese de Hugo como Guerra Junqueiro; eu pedir-lhe-ia moderação,
posto reconheça que a sabe empregar com arte. Por fim, aqui Lhe deixo as minhas
palavras; é o que pode fazer a crônica destes dias.
SE TODOS quantos empunham uma pena, não estão a esta
hora tomando notas e coligindo documentos sobre a história desta cidade não
sabem o que são cinqüenta contos de réis. Uma lei municipal votada esta semana,
destina "ao historiador que escrever a história completa do Distrito
Federal desde os tempos coloniais até a presente época", aquela valiosa
quantia. O prazo para compor a obra é de cinco anos. O julgamento será confiado
a pessoas competentes a juízo do prefeito.
Não serei eu que maldiga de um ato que põe em relevo o
amor da cidade e o apreço das letras. Os historiadores não andam tão fartos,
que desdenhem dos proveitos que ora Lhes oferecem, nem os legisladores são tão
generosos, que Lhes dêem todos os dias um prêmio deste vulto. Se todas as
capitais da República e algumas cidades ricas concederem igual quantia a quem
Lhes escrever as memórias, e se o Congresso Federal fizer a mesma cousa em
relação ao Brasil, mas por preço naturalmente maior,-digamos quinhentos contos
de réis, -a profissão de historiador vai primar sobre muitas outras deste país.
Há só Dois pontos em que a recente lei me parece
defeituosa. O primeiro e o prazo de cinco anos, que acho longo, em vista do
preço. Quando um homem se põe a escrever uma história, sem estar com o olho no
dinheiro, mas por simples amor da verdade e do estilo, é natural que despenda
cinco anos ou mais no trabalho; mas cinqüenta contos de réis excluem qualquer
outro ofício, mal dão seis horas de sono por dia, de maneira que, em Dois anos,
está a obra, acabada e copiada. Muito antes do fim do século podem ter os
cariocas a sua história pronta, substituindo as memórias do Padre Perereca e
outras.
O segundo ponto que me parece defeituoso na lei, é que
a competência das pessoas que houverem de julgar a obra, dependa do juízo do
prefeito. Nós não sabemos quem será o prefeito daqui a cinco anos, pode ser um
droguista, e há duas espécies de droguistas, uns que conhecem da competência
literária dos críticos, outros que não. Suponhamos que o eleito é da segunda
espécie. Que pessoas escolhera ele para dizer dos méritos da composição? Os
seus ajudantes de laboratório?
Eu, se fosse intendente, calculando que a história do
Distrito Federal podia esperar ainda Dois ou três anos, proporia outro fim a
uma parte dos contos de réis. Tem-se escrito muito ultimamente acerca do Padre
José Maurício, cujas composições, apesar de louvadas desde meio século e mais,
estão sendo devoradas pelas traças. Houve ideia de catalogá-las, repará-las e
restaurá-las, e foi citado o nome do Sr. Alberto Nepomuceno como podendo
incumbir-se de tal trabalho. Este maestro, em carta que a Gazeta inseriu
quinta-feira, lembrou um alvitre que "torna a propaganda mais prática, sem
nada perder da sua sentimentalidade atual, e põe ao alcance de todos as
produções do genial compositor". O Sr. Nepomuceno desengana que haja
editor disposto a imprimir tais obras de graça, empatando, sem esperança de
lucro, uma soma não inferior a quarenta contos. A concessão da propriedade é um
presente de gregos. O alvitre que propõe, é reduzir para órgão o acompanhamento
orquestral das diversas composições e publicá-las. Custaria isto dez contos de
réis.
Ora, se o Distrito Federal quisesse divulgar as obras
de José Maurício, empregaria nelas os dez contos do método Nepomuceno, ou os
quarenta, se Lhes desse na cabeça imprimir as obras todas, integralmente.
Em ambos os casos ficariamos esperando o historiador
do distrito, salvo se houvesse homem capaz de escrever a história por dez ou
ainda por quarenta contos; cousa que me não parece impossível.
Um dos que têm tratado ultimamente das obras e da
pessoa do padre, é o Visconde de Taunay. A competência deste, unida ao seu
patriotismo, dá aos escritos que ora publica na Revista Brasileira, muito
valor; é uma nova cruzada que se levanta, como a do tempo de Porto Alegre. Se
não ficar no papel, como a de outrora, dever-se-á a Taunay uma boa parte do
resultado.
Outro que também está revivendo matéria do passado, na
Revista Brasileira, é Joaquim Nabuco. Conta a vida de seu ilustre pai, não à
maneira seca das biografias de almanaque, mas pelo estilo dos ensaios ingleses.
Deixe-me dizer-lhe, pois que trato da semana, que o seu juízo da Revolução
Praieira, vindo no último número, me pareceu excelente. Não traz aquele cheiro
partidário, que sufoca os leitores meramente curiosos, como eu. A mais completa
prova da isenção do espírito de Nabuco está na maneira por que funde os Dois
retratos de Tosta, feitos a pincel partidário, um por Urbano, outro por
Figueira de Melo. Cheguei a ver Urbano, em 186o; vi Tosta, ainda robusto, então
ministro, dizendo em aparte a um senador da oposição que Lhe anunciava a queda
do gabinete: "Havemos de sair, não havemos de cair!"
Nesta única palavra sentia-se o varão forte de 1848.
Quanto a Nunes Machado, trazia-o de cor, desde menino, sem nunca o ter visto: é
que o retrato dele andava em toda parte De Pedro Ivo não conhecia as feições,
mas conhecia os belos versos de Álvares de Azevedo, onde os rapazinhos do meu
tempo aprendiam a derrubar (de cabeça) todas as tiranias.
QUARTA-FEIRA de trevas contradisse este nome pela
presença de um grande sol claro. Comigo deu-se ainda um incidente, que mais
agravou a divergência entre a significação do dia e a alegria exterior. Eram
onze horas da manhã, mais ou menos, ia atravessando a Rua da Misericórdia,
quando ouvi tocar uma valsa a Dois tempos. Graciosa valsa; o instrumento é que
me não parecia piano, e desde criança ouvi sempre dizer que em tal dia não se
canta nem toca. Em pouco atinei que eram os sinos da igreja de S. José. Pois
digo-lhes que dificilmente se Lhe acharia falha de uma nota, demora ou
precipitação de outra; todas saíam muito bem. O rei Davi, se ali estivesse,
faria como outrora, dançaria em plena rua. A arca do Senhor seria a própria
igreja de S. José, descendente daquele santo rei, segundo S. Mateus.
A valsa acabou, mas o silêncio durou poucos minutos.
Ouvi algumas notas soltas e espaçadas, esperei: era um trecho de Flotow.
Conheceis a ópera Marta? Era a "Ultima Rosa de Verão",-a velha
cantiga The Last Rose of Summer,-música sem trevas, mas cheia daquela
melancolia doce de quem perdeu as flores da vida. Não faria lembrar Jesus;
antes imaginei que, se ele ali viesse, podia compor mais uma parábola: O reino
dos céus é semelhante a uma igreja, em cuja torre se tocam as valsas da terra;
enquanto a torre chama a dançar, a igreja chama a rezar; bem-aventurados
aqueles que, pela oração, esquecerem a valsa, e deixarem murchar sem pena todas
as rosas deste mundo...
Outra dissonância da quarta-feira de trevas, -mas
desta vez a culpa é do calendário , - foi cair no dia prime iro de abril . Não
consta que alguém fosse embaçado. A única notícia de que haveria aqui um
terremoto, quinze horas depois de 31 de março, não tirou o sono a ninguém,
mormente depois que a gente de Valparaíso vivou de terror pânico os dias 29 e
3o daquele mês, por causa de igual fenômeno, igualmente anunciado. O pequeno
tremor do dia 1, em Santiago, não prova nada em favor da profecia ou da
ciência.
Todos os peixes apodrecem, leitor, não é de admirar
que os carapetões de abril, chamados peixes pelos franceses, venham a ficar
moídos. Nesta cidade, em que há contos-do-vigário. ninguém já cai nos laços de
abril. A princípio caíam muitos. O Correio Mercantil foi o primeiro, creio eu,
que se lembrou de inventar prodígios, exposições, embarques, qualquer cousa
extraordinária, na própria manhã daquele dia.
Naquele tempo, se me não engano, havia só a folhinha
de Laemmert. Os jornais não as davam, menos ainda as lojas de papel. Pouca
gente se lembrava da fatal data. Os curiosos corriam ao ponto indicado para ver
o caso espantoso. A princípio esperavam; anos depois, já não esperavam, mas
passavam e tornavam a passar. Afinal era mais fácil não acudir a ver uma cousa
real, que a procurar uma invenção.
Conquanto a credulidade seja eterna, é preciso fazer
com ela o que se faz com a moda: variar de feitio.
Valentim Magalhães variou de feitio, limitando-se a
dar este título de "Primeiro de Abril" a um dos seus contos do livro
agora publicado. É uma simples ideia engenhosa. Bricabraque é o nome do livro;
compõe-se de fantasias, historietas, crônicas, retratos, uma ideia, um quadro,
uma recordação, recolhidos daqui e dali, e postos em tal ou qual desordem. A
variedade agrada, o tom leve põe relevo à observação graciosa ou cáustica, e o
todo exprime bem o espírito agudo e fértil deste moço. O título representa a
obra, salvo um defeito, que reconheci, quando quis reler alguma das suas
páginas, "Velhos Sem Dono", por exemplo; o livro traz índice. Um
Bricabraque verdadeiro nem devia trazer índice. Quem quisesse reler um conto,
que se perdesse a ler uma fantasia.
A vida, que é também um bricabraque, pela definição
que Lhe dá Valentim Magalhães, (eu acrescentaria que é algumas vezes um simples
e único negócio) a vida tem o seu índice no cemitério; mas que preço que levam
os impressores por esta última página! Agora mesmo dão os jornais notícia de um
carro fúnebre que chegou à casa do defunto duas horas depois da pactuada.
Acrescentam que, ao que parece, o coche foi servir primeiro a outro defunto.
Enfim, que é um carro velho, estragado e sujo, não contando que a cova estava
cheia de lodo, e que o custo total do enterro é pesadíssimo. Tudo isso forma o
índice da
vida, esta pode ser cara, barata, mediana ou até
gratuita, mas a morte é sempre onerosa. Acusa-se disto.
Empresa Funerária. Não pode ser; a culpa da
impontualidade é antes dos que morrem em desproporção com o material da
empresa. Fala-se do privilégio. Não há privilégio, há educação da liberdade;
assim como foi preciso preparar a liberdade política, antes de a decretar,
assim também é mister preparar a liberdade funerária.
Cumpre notar que tal queixa em tal semana é descabida.
Tudo se deve perdoar por estes dias. Cristo, morrendo, perdoou aos próprios
algozes, "por não saberem o que faziam". Não se trata aqui de algozes
propriamente ditos, e pode ser também que a empresa não saiba o que está
fazendo. Em todo caso, a queixa devia ter sido adiada para amanhã ou depois.
Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca
do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em
processo. A causa sabe-se qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem
a descoberto, como dispõe a reforma judiciária do Estado; afirma ele que a
Constituição Federal é contrária a semelhante cláusula. Não sou jurista, não
posso dizer que sim nem que não. O que vagamente me parece, é que se o estatuto
político do Estado difere em alguma parte do da União, é impertinência não
cumprir o que os poderes do Estado mandam. Mas, de um ou de outro modo, creio
que não foi oportuno mandar falar agora sobre processo nem censurar o
magistrado antes de amanhã.
Esta questão leva-me a pensar que, se não puder
conciliar o voto secreto com o voto público, ou ainda mesmo que se conciliem é
ocasião de modificar a instituição, a ser verdade o que dizem dela pessoas
conspícuas. Na assembléia legislativa do Rio de Janeiro, o Sr. Alfredo Watheley
declarou há Dois meses, entre outras cousas, que "em regra o júri é um
passa-culpas". Ao que o Sr. Leoni Ramos aduziu: "É muito raro que no
júri, perguntando o juiz aos jurados se precisam ouvir as testemunhas, eles
respondam que sim, dizem sempre que as dispensam." Também eu ouvi igual
dispensa, mas relativamente ao interrogatório do próprio réu. Foi há muitos
anos. Interrogado sobre o delito, pediu ele para não falar de assuntos que Lhe
eram penosos, e os jurados concordaram cm não ouvi-lo. Realmente, o acusado
merecia piedade, era um caso de honra, mas dispensada a audiência do réu e das
testemunhas, não tarda que se faça o mesmo ao promotor e ao defensor, e
finalmente à leitura do processo, aliás penosíssima de ouvir, mormente se o
escrivão apenas sabe escrever.
"TERMINARAM as festas de Shakespeare", diz
um telegrama de Londres, 24, publicado anteontem, na Notícia. Eu, que supunha o
mundo perdido no meio de tantas guerras atuais e iminentes, crises formidáveis,
próximas anexações e desanexações, respirei como alguém que sentisse tirar-lhe
um peso de cima do peito. Que me importa já saber se o príncipe da Bulgária
comungou ou não, esta semana, tendo-lhe o papa negado licença? Provavelmente
não comungará mais, tudo por haver consentido que o filho fosse batizado na
religião ortodoxa. Quantos outros pais terão deixado batizar os filhos em
religiões alheias, sem perder por isso o direito de comungar; basta-lhes entrar
na igreja próxima e falar ao vigário.
Não são príncipes, não governam, não correm o perigo
das alturas.
Cuba, que me importa agora Cuba? A religião come
gente, sangue e dinheiro; a independência far-se-á ou não. Segundo um homem
desconhecido, estava feita desde quarta-feira, e assim enganou a duas ou três
folhas desta cidade, ação de muito mau gosto. não só pela invenção dos decretos
de Madri, como pela da morte de um hóspede do Hotel de Estrangeiros. O dono
deste perdeu mais que ninguém, pois que Cuba, tarde ou cedo, alcançará a
independência, o cônsul e o ministro de Espanha explicaram-se, mas a morte do
hóspede é mais que a de Maceo ou Máximo Gómez. Lede bem a carta com que o dono
do Hotel de Estrangeiros correu à Cidade do Rio para afirmar que o defunto
Villagarcia (se alguém há desse nome) nunca ali esteve, que ninguém morreu nem
adoeceu naquela casa, apesar da epidemia recente, que os seus esforços foram
grandes, e a notícia da morte ofende os seus interesses. É quase um reclamo,
ou-como dizem os mal-intencionados,-um preconício.
E tão grave o fato de morrer alguém nas hospedarias,
que o dono de uma delas, nesta cidade, só por fina inspiração, pode há tempos
salvar a honra do estabelecimento. Não disse a ninguém que Lhe morrera um
hóspede, mas que adoecera e queria ir-se embora. Mandou vir um carro, fez meter
dentro o cadáver, com as cautelas devidas a um enfermo, e sentou-se ao pé
dele.-"Então, que é isso? dizia ele ao cadáver, enquanto o cocheiro dava
volta ao carro. O senhor, saindo daqui, vai piorar e talvez morra; por que não
fica? Aqui, antes de quinze dias, está curado e bom. Ande, fique; se quer,
mando o carro embora. Não?
Pois faz muito mal..." Os hóspedes, que ouviam
esta exortação, lastimavam a teimosia do enfermo, e almoçaram com o apetite do
costume.
Guerras africanas, rebeliões asiáticas, queda do
gabinete francês, agitação política, a proposta da supressão do Senado, a caixa
do Egito, o socialismo, a anarquia, 2 crise européia, que faz estremecer o
solo, e só não explode porque a natureza, minha amiga, aborrece este verbo, mas
há de estourar, com certeza, antes do fim do século, que me importa tudo isso?
Que me importa que, na ilha de Creta, cristãos e muçulmanos se matem uns aos
outros, segundo dizem telegramas de 25? E o acordo, que anteontem estava feito
entre chilenos e argentinos, e já ontem deixou de estar feito, que tenho eu com
esse sangue
que correu e com o que há de correr?
Noutra ocasião far-me-ia triste a notícia dos vinte e
tantos autos roubados a uma pretoria desta cidade.
Vinte e um votaram ao cartório, mas um deles não trazia
petição inicial nem sentença, por modo que ficou o processo inútil. Uma destas
manhãs, estando o pretor ocupado, v eram dizer-lhe que acabavam de furtar mais
autos, correu ao cartório, viu que era exato. O mesmo pretor despediu há dias
um empregado do cartório. que estava ao seu serviço; a razão é porque o homem,
mediante dinheiro tomava a si obter despachos favoráveis. Chegou ao ponto,
segundo li, de fazer caminhar bem um negócio, a troco de certa quantia,
recebida esta, fez desandar o negócio em favor da outra parte; a troco de igual
remuneração.
Reincidência ou arrependimento? Eis aí um mistério.
Outro mistério é que só vejo publicadas as ações, não
os nomes dos autores. Nem sempre é necessário que estes sejam dados ao prelo.
Casos há em que o silêncio é conveniente, não para impedir que os autores
fujam. mas por motivos que me escapam. Seja como for, ainda bem que os autos se
descobrem, os intermediários de despachos desaparecem, e o ar puro entra nas
pretorias, na terceira, quero dizer, que é onde se deram os fatos aqui
narrados. Entretanto, outra seria a minha impressão disto, como do resto, se
não fosse o telegrama de Londres, 24.
"Terminaram as festas de Shakespeare..." O
te1eorama acrescenta que "o delegado norte-americano teve grande manifestação
de simpatia". O doutrina de Monroe, que é boa, como lei americana, é cousa
nenhuma contra esse abraço das almas inglesas sobre a memória do seu
extraordinário e universal representante. Um dia, quando Já não houver império
britânico nem república norte-americana haverá Shakespeare; quando se não falar
inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as atuais
discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram
Homero e os trágicos.
Dizem comentadores de Shakespeare que uma de suas
peças, a Tempest, é um símbolo da própria vida do poeta e a sua despedida.
Querem achar naquelas últimas palavras de Próspero, quando volta para Milão,
"onde de cada três pensamentos um será para a sua sepultura", uma
alusão à retirada que ele fez do palco, logo depois. Realmente, morreu daí a
pouco, para nunca mais morrer. Que valem todas as expedições de Dongola e do
Transvaal contra os combates do Ricardo III? Que vale a caixa egípcia ao pé dos
três mil ducados de Shylock? O próprio Egito, ainda que os ingleses cheguem a
possuí-lo, que pode valer ao pé do Egito da adorável Cleópatra? Terminaram as
festas da alma humana.
ERA NO BAIRRO Carceler, às sete horas da noite.
A cidade estivera agitada por motivos de ordem técnica
e politécnica. Outrossim, era a véspera da eleição de um senador para preencher
a vaga do finado Aristides Lobo. Dois candidatos e Dois partidos disputavam a
palma com alma. Vá de rima, sempre é melhor que disputá-la a cacete, cabeça ou
navalha, como se usava antigamente. A garrucha era empregada no interior. Um
dia, apareceu a Lei Saraiva, destinada a fazer eleições sinceras e sossegadas.
Estas passaram a ser de um só grau. Oh! ainda agora me não esqueceram os
discursos que ouvi, nem os artigos que li por esses tempos atrás pedindo a
eleição direta! A eleição direta era a salvação pública. Muitos explicavam:
direta e censitária. Eu, pobre rapai sem experiência, ficava embasbacado quando
ouvia dizer que todo o mal das eleições estava no método; mas, não tendo outra
escola, acreditava que sim, e esperava a lei.
A lei chegou. Assisti às suas estréias. e ainda me
lembro que na minha seção ouviam-se voar as moscas.
Um dos eleitores veio a mim e por sinais me fez
compreender que estava entusiasmado com a diferença
entre aquele sossego e os tumultos do outro método. Eu
também por sinais, achei que tinha razão, e
contei-lhe algumas eleições antigas. Nisto o
secretário começou a suspirar felizmente os nomes dos
eleitores. Presentes, posto que censitários, poucos.
Os chamados iam na ponta dos pés até à urna, onde depositavam uma cédula,
depois de examinada pelo presidente da mesa; em seguida assinavam
silenciosamente os nomes na relação dos eleitores, saíam com as cautelas usadas
em quarto de moribundo. A convicção é que se tinha achado a panacéia universal.
Mas, como ia dizendo, era no Bairro Carceler às 7
horas da noite.
O Bairro Carceler estava quase solitário. Um ou outro
homem passava, mulher nenhuma, rara loja aberta, e mal se ouviam os bonds que
chegavam e partiam. Eu ia andando à procura do Hotel do Globo Recordava cousas
passadas, um incêndio, uma festa, a ponte das barcas um pouco adiante, a Praia
Grande do outro lado, e a assembléia provincial, vulgarmente chamada salinha. A
salinha acabou, e a Praia Grande ficou decapitada, passando a assembléia com
outra feição a legislar em Petrópolis. Nem por isso perdeu as metáforas de
outro tempo. Ainda agora, em Petrópolis, um orador devolveu a outro as injúrias
que lhe ouvira, devolveu-as intactas, tal qual se costumava na antiga Praia
Grande. As injúrias devolvidas intactas não ferem. Algumas vezes arredam-se com
a ponta da bota, ou deixam-se cair no tapete da sala; mas a melhor fórmula é
devolvê-las intactas. A ponta da bota é um gesto, a queda no tapete é desprezo,
mas para injúrias menores. A última fórmula de desdém, a mais enérgica, é
devolvê-las intactas. Quem inventou este modo de correspondência, está no céu.
Chego ao Hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde
acho já alguns homens. São convivas do primeiro jantar mensal da Revista
Brasileira. O principal de todos, José Veríssimo, chefe da Revista e do Ginásio
Nacional, recebe-me, como a todos, com aquela afabilidade natural que os seus
amigos nunca viram desmentida um só minuto. Os demais convivas chegam, um a um,
a literatura, a política, a medicina, a jurisprudência, a armada, a
administração... Sabe-se já que alguns não podem vir, mas virão depois, nos
outros meses.
Ao fim de poucos instantes, sentados à mesa,
lembrou-me Platão; vi que o nosso chefe tratava não menos que de criar também
uma República, mas com fundamentos práticos e reais. O Carceler podia ser
comparado, por uma hora, ao Pireu. Em vez das exposições, definições e
demonstrações do filósofo, víamos que os partidos podiam comer juntos, falar,
pensar e rir, sem atributos, com iguais sentimentos de justiça. Homens vindos
de todos os lados,-desde o que mantém nos seus escritos a confissão monárquica,
até o que apostolou, em pleno império, o advento
republicano -estavam ali plácidos e concordes, como se nada os separasse.
Uma surpresa aguardava os convivas, lembrança do
anfiteatro. O cardápio (como se diz em língua bárbara) vinha encabeçado por
duas epígrafes, nunca escritas pelos autores, mas tão ajustadas ao modo de
dizer e sentir, que eles as incluiriam nos seus livros. Não é dizer pouco, em
relação à primeira, que atribui a Renan esta palavra: "Celebrando a
Páscoa, disse o encantador profeta da Galiléia: tolerai-vos uns aos outros; é o
melhor caminho para chegardes a amar-vos ..."
E todos se toleravam uns aos outros. Não se falou de
política, a não ser alguma palavra sobre a fundação dos Estados, mas curta e
leve. Também se não falou de mulheres. O mais do tempo foi dado às letras, às
letras, à poesia, à filosofia. Comeu-se quase sem atenção. A comida era um
pretexto. Assim voaram as horas, duas horas deleitosas e breves. Uma das
obrigações do jantar era não haver brindes: não os houve.
Ao deixar a mesa tornei a lembrar-me de Platão, que
acaba o livro proclamando a imortalidade da alma; nós acabávamos de proclamar a
imortalidade da Revista.
Cá fora esperava-nos a noite, felizmente tranqüila, e
fomos todos para casa, sem maus encontros, que andam agora freqüentes. Há muito
tiro, muita facada, muito roubo, e não chegando as mãos para todos os
processos, alguns hão de ficar esperando. Ontem perguntei a um amigo o que
havia acerca da morte de uma triste mulher, ouvi que a morte era certa, mas
que, tendo o viúvo desistido da ação, ficou tudo em nada. Jurei aos meus deuses
não beber mais remédio de botica. A impunidade é o colchão dos tempos,
dormem-se aí sonos deleitosos. Casos há em que se podem roubar milhares de
contos de réis... e acordar com eles na mão.
A FUGA dos doudos do Hospício é mais grave do que pode
parecer à primeira vista. Não me envergonho de confessar que aprendi algo com
ela, assim como que perdi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase é
obscuro, mas eu não estou agora para emendar frases nem palavras. O que for
saindo saiu, e tanto melhor se entrar na cabeça do leitor.
Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens. era
convicção minha de que se podia viver tranqüilo fora do Hospício dos Alienados.
No bond, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer
histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la
quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos, involuntariamente, e o
interlocutor, supondo que era admiração, arregalava também os seus, e aumentava
o desconcerto do discurso. Nunca me passou pela cabeça que
fosse um demente. Todas as histórias são possíveis,
todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para melhor incutir uma ideia
ou um fato, me apertava muito o braço ou me puxava com forca nela gola, longe
de atribuir o gesto a simples loucura transitória. acreditava que era um modo
particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos
fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui sensíveis, como porque não é
com Dois vinténs que um homem se veste neste tempo.
Assim vivia. e não vivia mal. A prova de que andava
certo, é que não me sucedia o menor desastre. salvo a perda da paciência, mas a
paciência elabora-se com facilidade;-perde-se de manhã, já de noite se pode
sair com dose nova. O mais corria naturalmente. Agora porém, que fugiram doudos
do hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o
terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que me fazia ouvir tranqüilamente
discursos e notícias. 1? o que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu
por terra o forte apoio. Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não
acuso por isso a administração) onde acharei método para distinguir um louco de
um homem de juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as cousas mais
simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa
que se governa. ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem
ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de
todos.
A própria pessoa,-ou para dar mais claro exemplo,-o
próprio leitor deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é
ilustrado, benévolo e paciente, mas depois dos sucessos desta semana, quem Lhe
afirma que não saiu ontem do Hospício? A consciência de lá não haver entrado
não prova nada; menos ainda a de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e
seus filhos, como diz Lulu Sênior. É sabido que a demência dá ao enfermo a
visão de um estado estranho e contrário à realidade.
Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros
convidados, os próprios noivos que saberão de si?
Podem ser seus companheiros da Praia Vermelha. Este é
o meu terror. O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma
hipótese.
Isto, quanto à segunda parte da minha confissão.
Quanto à primeira, o que aprendi com a fuga dos infelizes do Hospício, é ainda
mais grave que a outra. O cálculo, o raciocínio, a arte com que procederam os
conspiradores da fuga, foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a
vantagem de ter juízo. O ajuste foi perfeito. A manha de dar pontapés nas
portas para abafar o rumor que fazia Serrão arrombando a janela do seu
cubículo, é uma obra-prima; não apresenta só a combinação de ações para o fim
comum, revela a consciência de que, estando ali por doudos, os guardas os
deixariam bater à vontade, e a obra da fuga iria ao cabo, sem a menor suspeita.
Francamente, tenho lido, ouvido e suportado cousas muito menos lúcidas.
Outro episódio interessante foi a insistência de
Serrão em ser submetido ao tribunal do júri, provando assim tal amor da
absolvição e conseqüente liberdade, que faz entrar em dúvida se trata de um
doudo ou de um simples réu. Não repito o mais, que está no domínio público e
terá produzido sensações iguais às minhas. Deixo vacilante a alma do leitor.
Homens tais não parecem artífices de primeira qualidade, espíritos capazes de
levar a cabo as questões mais complicadas deste mundo?
Não quero tocar no caso de Paradeda Júnior, que lá vai
mar em fora, por achá-lo tardio. Meio século antes, era um bom assunto de poema
romântico. Quando, alto mar, o infeliz revelasse, por impulsão repentina, o seu
verdadeiro estado mental, a cena seria terrível e a inspiração germânica, mais
que qualquer outra, acharia aí uma bela página. O poema devia chamar-se
"Der narrische Schiff." Descrição do mar, do navio e do céu; a bordo,
alegria e confiança. Uma noite, estando a lua em todo o esplendor, um dos
passageiros contava a batalha de Leipzig ou recitava uns versos de Uhland. De
repente, um salto, um grito, tumulto, sangue: o resto seria o que Deus
inspirasse ao poeta. Mas, repito, o assunto é tardio.
De resto, toda esta semana foi de sangue,-ou por
política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem
para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o
cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização
à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso da
Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é
cocheiro; mas a fuga não é privilégio de ofício, e, demais, o
criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover
sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador Ferreira
Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu o diretor da Gazeta e
foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os
combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas. Um anônimo declarou pelo
Jornal do Comércio que, se a comarca de S. Francisco tornar à antiga província
de Pernambuco, segundo propôs o Sr. Senador João Barbalho, não irá sem sangue.
Sangue não tarda a escorrer do jovem Estado (peruano) do Loreto...
Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas
de música. Um grupo de homens de boa vontade vai dar-nos música velha e nova,
em concertos populares, a preço cômodo. Venham eles, venham continuar a obra do
Clube Beethoven, que foi por tanto tempo o centro das harmonias clássicas e
modernas. Tinha de acabar, acabou. Os Concertos populares também acabarão um
dia. mas será tarde, muito tarde, se considerarmos a resolução dos fundadores,
e mais a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região
serena e divina... Um abraço ao Dr. Luís de Castro.
Pela minha parte, proponho que, nos dias de concerto,
a Companhia do Jardim Botânico, excepcionalmente, meta dez pessoas por banco
nos bonds elétricos, em vez das cinco atuais. Creio que não haverá
representação à Prefeitura, pois todos nós amamos a música; mas dado que haja,
o mais que pode suceder, é que a Prefeitura mande reduzir a lotação à quatro
pessoas do contrato; em tal hipótese, a companhia pedirá como agora, segundo
acabo de ler, que a Prefeitura reconsidere o despacho, - e as dez
pessoas continuarão, como estão continuando as cinco.
Há sempre erro em cumprir e requerer depois; o mais seguro é não cumprir e
requerer. Quanto ao método, é muito melhor que tudo se passe assim, no silêncio
do gabinete, que tumultuosamente na rua: Não pode! não pode!
A QUESTÃO da capital, - ou a questão capital, como se
dizia na República Argentina, quando se tratou de dar à província de Buenos
Aires uma cabeça nova, própria, luxuosa e inútil, - a nossa questão capital
teve esta semana um impulso. Discutiu-se na Câmara dos Deputados um projeto de
lei, que o Dr. Belisário Augusto propõe substituir por outro. Este outro
declara a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro capital da República. Não é
preciso acrescentar que o fundamentou eloqüentemente; este advérbio acompanha
os seus discursos. Foi combatido naturalmente, sem paixão, sem acrimônia, com
desejo de acertar, visto que a Constituição determina que no planalto de Goiás,
seja demarcado o território da nova capital, e já lá trabalha uma comissão de
engenheiros; mas. estipulando a mesma Constituição, art. 34, que ao Congresso
Federal compete privativamente mudar a capital da União, entendeu o Dr.
Belisário Augusto que esta cláusula, se dá competência para a mudança, também a
dá para a conservação; argumento que o Dr. Paulino de Sousa Júnior declarou
irrespondível.
Todo o esforço do deputado fluminense foi para
conservar a esta cidade o papel que lhe deram os tempos e a história. Fez, por
assim dizer, o processo da Constituinte. "Os homens têm ilusões, disse S.
Ex.a, e as assembléias também as têm." Poderia acrescentar que as ilusões
das assembléias são maiores, por isso mesmo que são de homens reunidos e o
contágio é grande e rápido; e mais difícil se torna dissipá-las. S. Ex.a pensa
que a revolta de 6 de setembro teria vencido se o governo não estivesse
justamente aqui. Bem pode ser que tenha razão. Creio nas prefeituras, mas para
a defesa da República acho os cônsules mais aptos. Podeis redargüir que,
convertida em Estado, esta cidade teria o seu governador, a sua Constituição,
as suas câmaras; mas também se vos pode replicar que se o nosso Rio de Janeiro,
Ce pelé, ce galeux, d'où vient tout le mal. tem por
perigo o cosmopolitismo, este mesmo cosmopolitismo seria um aliado inerte da
rebelião, e a autoridade de um pequeno Estado poderia menos, muitos menos, que
a do próprio governo federal.
Não estranheis ver-me assim metido em política,
matéria alheia à minha esfera de ação. Tampouco imagineis que falo pela
tristeza de ver decapitada a minha boa cidade carioca. Tristeza tenho em
verdade; mas tristezas não valem razões de Estado; e, se o bem comum o exige,
devem converter-se em alegrias.
Não senhor; se falo assim é para combater o próprio
Dr. Belisário Augusto, por mais que me sinta disposto a concordar com ele.
Parece-vos absurdo? Tende a paciência de ler.
Depois de perguntar qual das outras cidades disputou a
posição de capital da República, o deputado fluminense fez esta interrogação:
"Qual foi o movimento popular que impôs ao congresso a necessidade da
mudança da capital?" Realmente, não houve movimento algum; mas, eu
viro-lhe o argumento, e não creio que me refute. Sim, não houve movimento. Mas
a própria cidade do Rio de Janeiro não reclamou nada, quando se discutiu a
Constituição, não levou aos pés do legislador o seu passado, nem o seu
presente, nem o seu provável futuro, não examinou se as capitais são ou não
obras da história, não disse cousa nenhuma; comprou debêntures, que eram os
bichos de então. Agora mesmo que o orador fluminense insta com o congresso para
ver se a capital aqui fica, o Rio de Janeiro não insta também, não pede, com
direito que tem todo cidadão e toda comunidade de procurar haver o que lhe
parece ser de benefício público. Não ouço discursos reverentes, não vejo
deliberações pacíficas, nem petições, já não digo do conselho municipal. a quem
incumbe velar pela felicidade dos seus munícipes, porque é natural que essa
corporação aspire às funções constitucionais de parlamento, com promoção
equivalente de seus povos, mas os povos, que fazem eles ou que fizeram?
A conclusão é que o Rio de Janeiro, desde princípio,
achou que não devia ser capital da União, e este voto pesa muito. É o
decapitado par persuasion. Assim é que temos contra a conservação da capital
além do mais, o beneplácito do próprio Rio de Janeiro. Ele será sempre, como
disse um deputado, a nossa Nova York. Não é pouco; nem todas as cidades podem
ser uma grande metrópole comercial. Não levarão daqui a nossa vasta baía, as
nossas grandezas naturais e industriais, a nossa Rua do Ouvidor, com o seu
autômato jogador de damas, nem as próprias damas. Cá ficará o gigante de pedra,
memória da quadra romântica, a bela Tijuca, descrita por Alencar em uma carta
célebre, a Lagoa de Rodrigo de Freitas, a Enseada de Botafogo, se até lá não
estiver aterrada, mas é possível que não; salvo se alguma companhia quiser
introduzir (com melhoramentos) os jogos olímpicos, agora ressuscitados pela
jovem Atenas...
Também não nos levarão as companhias líricas, os
nossos trágicos italianos, sucessores daquele pobre Rossi, que acaba de morrer,
e apenas os dividiremos com S. Paulo, segundo o costume de alguns anos.
Quem sabe até se um dia...
Tudo pode acontecer. Um dia, quem sabe? Lançaremos uma
ponte entre esta cidade e Niterói, urna ponte política, entenda-se. nada
impedindo que também se faça uma ponte de ferro. A ponte política ligará os Dois
Estados. pois que somos todos fluminenses e esta cidade passará de capital de
si mesma a capital de um grande Estado único, a que se dará o nome de
Guanabara. Os fluminenses do outro lado da água restituirão Petrópolis aos
veranistas e seus recreios. Unidos, seremos alguma cousa mais que separados, e,
sem desfazer nas outras, a nossa capital será forte e soberba. Se, por esse
tempo a febre amarela houver
sacudido as sandálias às nossas portas, perderemos a
má fama que prejudica a todo o Brasil. Poderemos então celebrar o segundo
centenário do destroço que aos franceses de Duclerc deu esta cidade com os seus
soldados, os seus rapazes e os seus frades... Que esta esperança console o
nosso Belisário Augusto, se cair o seu projeto de lei.
A PUBLICAÇÃO da Jarra do Diabo coincidiu com a chegada
de Magalhães de Azeredo. Já tive ocasião de abraçar este jovem e talentoso
amigo. É o mesmo maço que se foi daqui para Montevidéu começar a carreira
diplomática. A natureza, naquela idade, não muda de feição; o artista é que se
aprimorou no verso e na prosa, como os leitores da Gazeta terão visto e
sentido. Este filho excelente volta também marido venturoso, e brevemente
embarca para a Europa onde vai continuar de secretário na legação junto à Santa
Sé. Tudo lhe sorri na vida, sem que a Fortuna lhe faça nenhum favor gratuito;
merece-os todos, por suas qualidades raras e finas. Jamais descambou na
vulgaridade. Tem o sentimento do dever, o respeito de si e dos outros, o amor
da arte e da família. Ao demais, modesto, - daquela modéstia que é a
honestidade do espírito, que não tira a consciência íntima das forças próprias,
mas que faz ver na
produção literária uma tarefa nobre, pausada e séria.
Quando Magalhães de Azeredo partir agora para
continuar as suas funções diplomáticas, deixará saudades a quantos o conhecem
de perto. Os que a idade houver aproximado daquela outra viagem eterna, é
provável, - é possível, ao menos, - que o não torne a ver, mas guardarão boa
memória de um coração digno do espírito que o anima. Os moços, que aí cantam a
vida, entrarão em flor pelo século adiante, e ve-lo-ão, e serão vistos por ele,
continuando na obra desta arte brasileira, que é mister preservar de toda
federação. Que os Estados gozem a sua autonomia política e administrativa, mas
acompanham a mais forte unidade, quando se tratar da nossa musa nacional.
Por meu gosto não passava deste capítulo, mas a semana
teve outros, se se pode chamar semana ao que foi antes uma simples alfândega,
tanto se falou de direitos pagos e não pagos. Eis aqui o vulgar, meu caro poeta
da Jarra do Diabo; aqui os objetos não se parecem, como a tua jarra, com
"uma jovem mulher ateniense". São fardos, são barricas e pagam taxas,
outros dizem que não pagam, outros que nem pagarão. Uma balbúrdia. Eu, posto
creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por aparências
que podem ser falazes. As aparências enganam; foi a primeira banalidade que
aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim
esse tal ou qual espírito de contradição que alguns me acham, certa repugnância
em execrar sem exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise
virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se
me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro deste
mundo.
No caso da alfândega, não posso negar que as
aparências são criminosas; mas serão crimes os atos praticados? Ecco il
problema, diria enfaticamente o finado Rossi. Não se tratará antes de anúncios,
e reclamos, puffs, - censuráveis deserto, - mas enfim anúncios? Ninguém ignora
que não há nesta cidade, em tal matéria, excesso de invenção. Ao contrário, a
imitação é fácil, pronta, despejada. Quando, há
muitos anos, um negociante americano quis abrir na Rua
do Ouvidor um depósito de lampiões e outros objetos de igual gênero, começou
por mandar imprimir, no alto dos principais jornais desta cidade, uma só
palavra, em letras que ocupavam toda a largura da folha. A palavra era:
abrir-se-á. Grande foi a curiosidade pública, logo no primeiro dia, e nos Dois
que se lhe seguiram, lendo-se a palavra repetida, sem se poder atinar com a
explicação. No quarto dia cresceu o espanto, quando no mesmo lugar saiu esta
pergunta, que resumia a ansiedade geral: O que é que se há de abrir? Mais três
dias, e as folhas publicaram no alto, em letras gordas, a resposta seguinte: o
grande empório de luz, à Rua do Ouvidor n º...
O efeito da novidade foi enorme. Pois não faltou quem
imitasse esse processo, que parecia gasto. Casas, exposições, liquidações, não
me lembra já que espécies de aberturas solenes, recorreram ao anúncio
americano. Onde falta invenção, é natural que a imitação sobre.
Mas por que ir tão longe? Recentemente, presentemente,
vimos e vemos que a lembrança de recomendar um remédio por meio de comparação
da pessoa enferma antes, durante e depois da cura, tão depressa apareceu, como
foi logo copiada e repetida. - Eu era assim (uma cara magra); - ia quase
ficando assim (uma caveira); até que passei a ser assim (uma cara cheia de
saúde), depois que tomei tal droga. A fórmula primitiva serviu para as
imitações, creio que sen1 alteração, a não ser o desenho das caras, e não
todas.
Ora bem, os fardos e caixas cujos os direitos dizem
ter sido desfalcados, não serão propriamente remédios? As guias de pagamento de
taxas na alfândega não serão fórmulas de reclamo? - "Eu era assim
(4:954$723); - ia quase ficando assim (4723); - mas acabei ficando assim
(954$723), depois que tomei tal droga." A novidade aqui está na substituição
do desenho por algarismos; mas não haverá nisso tão somente afetação de
originalidade, um modo de fazer crer que se inventa, quando apenas se copia,
pois a ideia fundamental é a mesma? A questão é saber qual droga faz sarar o
enfermo. Pode ser até que nem se trate de droga, mas de outros produtos, - não
digo sedas, - mas algodão e análogos tecidos, não menos dignos de anúncios
grandes por seus não menores milagres.
Tal é a minha impressão. A polícia faz muito bem
averiguando se há mais que isto; não se perde nada em inquirir os homens. De
resto, anda aí tanta cousa falsa, que provavelmente o remédio não cura com a
facilidade que as guias lhe atribuem. Atos de autoridade competente afirmam que
há quem venda por vinho-champanhe águas que nunca por lá passaram. Custa-me
admitir isto; mas, não tendo razão para desmentir a afirmação, calo-me; -
calo-me e não bebo. Tudo isto se prende aos desvios da alfândega, ao
contrabando, à falsificação, a outras formas do mal, que não se devem eliminar
sem base. Oh! Se pudéssemos viver de maneira que todas as taxas se pagassem,
sem alfândega, indo os produtores ao próprio Tesouro, com o dinheiro, sem
precisar mostrar nem esconder nada, seda ou vinho... Não pode ser. Há talvez um
fraudulento em muito homem a quem não falta mais que uma guia e o resto...
NÃO QUERO SABER de farmácias, nem de outras
instituições suspeitas. Quero saber de música. O Jornal do Comércio deu um
brado esta semana contra as casas que vendem drogas para curar a gente,
acusando-as de as vender para outros fins menos humanos. Citou os
envenenamentos que tem havido na cidade , mas esqueceu dizer ou não acentuou
bem, que são produzidos por engano das pessoas que manipulam os remédios. Um
pouco mais de cuidado, um pouco menos de distração ou de ignorância,
evitarão males futuros. Um fino espírito deste país,
político e filósofo, definia-me uma vez as nossas farmácias como outras tantas
confeitarias. Confesso que antes as quero confeitarias, que palácio dos
Bórgias; não tanto porque nestes se possa achar a morte, como porque nós amamos
os confeitos, e os frascos vindos do exterior têm ar de trazer amêndoas. É bom
encontrar a saúde onde só se procura gulodice. Se, entretanto, parados e
obrigando a fazê-los cá mesmo, pode suceder que alguns envenenamentos se dêem a
principio, mas todo ofício tem uma aprendizagem, e não há benefício humano que
não custe mais ou menos duras agonias.
Cães, coelhos e outros animais são vitimas de estudos
que lhes não aproveitam, e sim aos homens; por que não serão alguns destes
vítimas do que há de aproveitar aos contemporâneos e vindouros? Que verdade
moral, social, cientifica ou política não tem custado mortes e grandes mortes?
As catacumbas de Roma...
Sem ir tão longe. há um argumento que desfaz em parte
todos esses ataques às boticas; é que o homem é em si mesmo um laboratório. Que
fundamento jurídico haverá para impedir que eu manipule e venda duas drogas
perigosas? Se elas matarem, o prejudicado que exija de mim a indenização que
entender; se não matarem, nem curarem, é um acidente e um bom acidente, porque
a vida fica, e está nos adágios populares que viva a galinha com a sua pevide.
Suponhamos, porém, que uma dessas manipulações cura alguém; não vale este único
benefício todos os possíveis males? Se espiritualmente há mais alegria no céu
pela entrada de um arrependido que pela de cem justos, não se pode dizer que na
terra há mais alegria pela conservação de uma vida que pela perda de cem? Essa
única vida não pode ser a de um grande homem, a de um varão justo, a de um
simples pai de família, a de um filho amparo de sua velha mãe? Reflitamos antes
de condenar, e deixemos as farmácias com os seus meninos antes de condenar, e
deixemos as farmácias com os seus meninos, que assim acham ocupação honesta, em
vez de se perderem na rua. Outrossim, não condenemos os que alugam títulos.
Quem pode alugar uma casa que não fez, que comprou feita, por que não poderá
alugar um título que lhe custou estudos longos, e aprovações completas, que é
verdadeiramente seu? Qual é propriedade maior?
Mas, fora com tudo isso, trataremos só de música. Não
nos falta música, nem gosto particular em ouvi-la.
Queirós deu-nos uma história de música, resumida em um
grande concerto, em que, ainda uma vez apresentou suas qualidades de artista.
Não se contenta Alberto Nepomuceno com os Concertos Populares. Domingo passado
fez ouvir o Visconde de Taunay uma redução do Requiem, do Padre José Maurício.
A carta em que Taunay narra as comoções que lhe deu a obra do padre, comove
igualmente aos que a lêem, e faz amar o padre, o Alberto, o Requiem e o
escritor. Não bastam ao nosso Taunay as letras; a sua bela Inocência, vertida
há pouco (ainda uma vez) para língua estranha e espalhada pelos centros
europeus, repete lá fora o nome de um homem, cuja família se naturalizou
brasileira. Tendo o amor que tem à música, até a morte quis levar esta semana
um pianista a quem nunca ouvi, mas que ouço louvar; pianista amador, médico de
ofício, que às qualidades intelectuais, reunia dotes morais de muito apreço, o
Dr. Lucindo Filho...
Outra morte que não sai da música, ou sai do mais
íntimo dela, é a que se espera cada dia do Norte, a do nosso ilustre Carlos
Gomes. Os telegramas de ontem dizem que o médico incumbido de o salvar já
aplicou o remédio, mas sem esperanças. Dá-lhe os dias contados. Aguardemos a
hora última desse homem que levará o nome brasileiro deste para o século novo,
e cujas obras servirão de estímulo e exemplar às vocações futuras. A vida dele
é conhecida; mas nem todos terão as sensações dos primeiros dias, quando Carlos
Gomes chegou de S. Paulo e aqui se estreou na Ópera Nacional, uma instituição
mantida com dinheiros de loteria; leiam loteria, não bichos. Tudo é jogo, mas
há espécies mais reles que outras, que apenas servem de ofício e comércio à
gente vadia. Vivia de loteria a Ópera Nacional; antes vivesse de donativos
diretos, mas enfim viveu e deu-nos Carlos Gomes, um pouco de Mesquita, outro
pouco de Elias Lobo, não contando as noites em que se cantava a Casta Diva, por
esta letra de um velho e bom amigo meu, depois chefe político:
Casta deusa, que derramas
Nestas selvas luz serena...
Naquele tempo ainda Bach nem outros mestres influíam
como hoje. Não tínhamos essa música. de que anteontem à noite nos deram horas
magníficas os nossos dois hóspedes. Moreira de Sá e Viana da Mota, no Teatro
lírico. Hoje a crítica das folhas da manhã dirá deles o que couber e for de
justiça, e estou que não será frouxo, nem pouco. Eu não tenho mais que ouvidos,
e ouvidos de curioso, que não valem muito: mas, em suma, mais terei desprendido
com os olhos que com eles. Sinto que escutei Dois homens de grande talento e
grande arte, severos amados, ambos cheios pela natureza e confirmados pelo
estudo para intérpretes de obras mestras. Não é de crer que os não ouçamos
ainda uma vez ou mais. Li que vão a São Paulo, em breve; é de rigor. São Paulo
é estação obrigada, é metade do Rio de Janeiro, se estas duas cidades não
formam já, como Budapeste, artisticamente falando, uma só capital. Há tempo,
entretanto, para que, antes de tornarem ao seu país Viana da Mota e Moreira de
Sá dêem ainda ao povo do Rio uma festa igual à de anteontem, em que recebam os
mesmos aplausos.
E continua a música. Hoje é o terceiro dos Concertos
Populares, instituição que o público aceitou e vai animado - em benefício seu,
é verdade, não se podendo dizer que faça nenhum favor em ouvir a palavra
clássica dos mestres. Antes deve ir cheio de gratidão. Há uma hora na semana em
que alguns homens de boa vontade dispõem-se a arrancá-lo à vulgaridade e ao
tédio, para lhe dar a sensação do belo e do gozo.
São favores que lhe fazem. Para si mesmos, bastava-lhes
um pouco de música de câmara, entre quatro paredes, e a boa disposição de meia
dúzia de artistas.
Assim como a história política e social tem
antecedentes, é de crer que esta parte da história artística do Rio de Janeiro
tenha os seus também. e quer-me parecer que podemos ligá-la ao quarteto do
Clube Beethoven.
Esse clube era uma sociedade restrita, que fazia os
seus saraus íntimos, em uma casa do Catete. nada se sabendo cá fora senão o
raro que os jornais noticiavam. Pouco a pouco se foi desenvolvendo, até que um
dia mudou de sede e foi para a Glória. Aquilo que hoje se chama profanamente
Pensão Beethoven, era a casa do clube. O salão do fundo, tão vasto como o da
frente, servia aos concertos, e enchia-se de uma porção de homens de várias
nações, várias línguas, vários empregos, para ouvir as peças do grande mestre
que dava nome ao clube, e as de tantos outros que formam com ele a galeria da
arte clássica. O nome do clube cresceu, entrou pelos ouvidos do público; este,
naturalmente curioso, quis saber o que se passava lá dentro. Mas, não havendo
público sem senhoras, e não podendo as senhoras penetrar naquele templo. que o
não permitiam as disciplinas deste, resolveu n clube dar alguns concertos
especiais no Cassino.
Não relembro o que eles foram, nem estou aqui contando
a crônica desses tempos passados. Pegou tanto o gosto dos concertos Beethoven,
que o Clube, para obedecer aos estatutos sem infringi-los, determinou construir
no jardim aquele edifício ligeiro, onde se deram concertos a todos sem que a
casa propriamente da associação fosse violada. Os dias prósperos não fizeram
mais que crescer; entrou a ser mau gosto não ir àquelas festas mensais. Mas
tudo acaba, e o clube Beethoven, como outras instituições idênticas acabou. A
decadência e a dissolução puseram termo aos longos dias de delícias.
A primeira vez que vi o fundador daqueles concertos,
foi de violino ao peito, junto de um piano, em que a senhora tocava; lá se vão
muitos anos. Ele vinha do Japão, magro, pálido... "Não tem seis meses de vida"
disse-me em particular um homem que já morreu há muito tempo. Outros morreram
também, alguns encaneceram; o resto dispersou-se, a senhora reside na Europa...
Só a música pode dar a sensação destas ruínas. O verso também pode, mas há de
ser pela toada do florentino, que assim como sabe a nota da maior dor, não
menos conhece a da rejuvenescência, aquela que me faz crer, nestas sensações de
arte. Rifatto sì, come piante novelle Rinnovellate di novella fronda..
APAGUEMOS a lanterna de Diógenes; achei um homem. Não
é príncipe, nem eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não
escreveu um belo livro, não descobriu nenhuma lei científica.
Também não fundou a efêmera república do Loreto,
conseguintemente não fugiu com a caixa, como disse o telégrafo acerca de um dos
rebeldes, logo que a província se submeteu às autoridades legais do Peru. O ato
da rebeldia não foi sequer heróico, e a levada da caixa não tem merecimento é a
simples necessidade de um viático. O pão do exílio é amargo e duro; força é
barrá-lo com manteiga.
Não, o homem que achei , não é nada disso. É um
barbeiro, mas tal barbeiro que, sendo barbeiro não é exatamente barbeiro.
Perdoai esta logomaquia; o estilo ressente-se da exaltação da minha alma. Achei
um homem. E importa notar que não andei atrás dele. Estava em casa muito
sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas quando um
pequenino anúncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais rápido que o
raio até o papel. Então li isto: "Vende-se uma casa de barbeiro fora da
cidade, o ponto é bom e o capital diminuto ; o dono vende por não
entender..."
Eis aí o homem. Não lhe ponho o nome, por não vir no
anúncio, mas a própria falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre
confissão de ignorância é um modelo único de lealdade, de veracidade, de
humanidade. Não penseis que vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras
do anúncio) por estar rico, para ir passear à Europa, ou por qualquer outro
motivo que à vista se dirá, como é uso escrever em convites destes. Não,
senhor; vendo a minha loja de barbeiro por não entender do ofício. Parecia-me
fácil, a princípio: sabão, uma navalha, uma cara, cuidei que não era preciso
mais escola que o uso, e foi a minha ilusão, a minha grande ilusão. Vivi nela
barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram vindo, ajudando o meu
erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém, reconheço que não sou
absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei, faz-me enfim recuar.
Basta, Carvalho (este nome é necessário a prosopopéia), basta, Carvalho! É
tempo de abandonar o que não sabes. Que outros mais capazes tomem a tua
freguesia...
A grandeza deste homem (escusado é dizê-lo) está em
ser único Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o
merecimento seria pouco ou nenhum. Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos.
Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras,
as bocas e as covas, a vir dizer chãmente que não entendem do ofício. Esse ato
seria a retificação da sociedade. Um mau barbeiro pode dar um bom
guarda-livros, um excelente piloto, um banqueiro, um magistrado. um químico, um
teólogo. Cada homem assim devolvido ao lugar próprio e determinado. Nem por
sombras ligo esta retificação dos empregos ao fato do envenenamento das duas
crianças pelo remédio dado na Santa Casa de Misericórdia. Um engano não prova
nada: e se alguns farmacêuticos autores de iguais trocas, têm continuando a
lutuosa faina, não há razão para que a Santa Casa entregue a outras pessoas a distribuição
dos seus medicamentos, tanto mais que pessoas atuais os não preparam, e, no
caso ocorrente, o preparado estava certo: a culpa foi das duas mães. A queixa
dada pela mãe da defunta terá o destino desta, menos as pobres flores que
Olívia houver arranjado para a sepultura da vítima. Também há céu para as
queixas e para os inquéritos. O esquecimento público é o responso contínuo que
pede o eterno descanso para todas as folhas de papel despendidas com tais atos.
Sobre isto de inquéritos, perdi uma ilusão. Não era
grande; mas as ilusões, ainda pequenas dão outra cor a este mundo. Cuidava eu
que os inquéritos eram sempre feitos, como está escrito, pelo próprio
magistrado, mas ouvi que alguns escrivães (poucos) é que os fazem e redigem,
supondo presente a pessoa que falta como no whist se joga com um morto. Creio
que é por economia de tempo, e tempo é dinheiro, dizem os americanos. O maior
mal desse ato é não ser verídico, não o ser ilegal ou irregular. Se as dores
humanas se esquecem, como se não hão de esquecer as leis? E dado seja simples
praxe, as praxes alteram-se. O maior mal, digo eu, é não ser verídico, posto
que aí mesmo se possa dizer que a verdade aparece muita vez envolta na ficção,
e deve ser mais bela. As Décadas não competem com os Lusíadas.
O ideal da praxe é a cabeleira do speaker. Os ingleses
mudarão a face da terra, antes que a cabeça do presidente da Câmara. Este há de
estar ali com a eterna cabeleira branca e longa, até meia-noite, e agora até
mais tarde, se é exato o telegrama desta semana, noticiando haver a Câmara dos
Comuns resolvido levar as sessões além daquele limite. Não é que o não tenha
feito muitas vezes; basta um exemplo célebre. Quando Gladstone deitou abaixo
Disraeli. em 1852, acabou o seu discurso ao amanhecer, - um triste e frio
amanhecer de inverno, que arrancou ao ministro caído esta palavra igualmente
fria: "Ruim dia para ir a Osborne!" Agora vai ser sempre assim,
tenham ou não os ministros de ir a Osborne pedir demissão. E o presidente
firme, com a eterna cabeleira metida pela cabeça abaixo. Sim, eu gosto da
tradição; mas há tradições que aborrecem, por inúteis e cansativas. De resto,
cada povo tem as suas qualidades próprias e a diferença delas é que faz a
harmonia do mundo. Desculpai o truísmo e o neologismo.
Mas eu que falo humilde, baixo e rude, devia
lembrar-me, a propósito de inquéritos, que a clareza do estilo é uma das formas
da veracidade do escritor. Parece-me ter falado um tanto obscuramente na semana
passada acerca das prédicas do Padre Júlio Maria em Porto Alegre. Alguns amigos
supuseram ver uma crítica ao padre naquilo que era apenas uma alusão às palmas
na igreja, e ainda assim por causa de meu ouvido, que já está bom, dou-lhes
esta notícia. Que culpa tem o padre de ser eloqüente? Ainda agora acabo de ler
o discurso que ele proferiu na Santa Casa, em juiz de Fora, a 5 de janeiro
deste ano. O assunto era velho: a caridade. Mas o talento está em fazer de
assuntos velhos assuntos novos, - ou pelas ideias ou pela forma, e o Padre
Júlio Maria alcançou este fim por ambos os processos. Também ali foi aplaudido.
Em verdade, se ele prefere os discursos como os escreve, é natural que os
próprios ouvintes de Porto Alegre se sentissem arrebatados e esquecessem o
templo pela palavra que o enchia. Um ouvido curado faz justiça a todos.
E já que falo em palmas, convido-os à enviá-las ao
Congresso de São Paulo, que votou ou está votando a estátua do Padre Anchieta.
Ó Padre Anchieta ó santo e grande homem, novo mundo não esqueceu teu
apostolado. Aí vais ser esculpido em forma que relembre a cultos e incultos o
que foste e o que fizeste nesta parte da terra. Os paulistas bem merecem da
história. Não é só a piedade que lhes agradecerá;
também a justiça reconhecerá esse ato justo. Tão alta
e doce figura, como a do Padre Anchieta, não podia ficar nas velhas crônicas,
nem unicamente nos belos versos de Varela. Mais palmas a S. Paulo, que acaba de
votar o subsídio e a pensão a Carlos Gomes e seus filhos. Salvador de Mendonça,
um dos que saudaram a aurora do nosso maestro (há quantos anos!), mandou no
serum dos cancerosos de New York uma esperança de cura para o autor do Guarani.
Oxalá o encaminhe à vida, como o encaminhou à glória.
E pois que trato de música, palmas ainda uma vez ao nosso austero hóspede
Moreira de Sá, que teve a sua festa há quatro dias. A crítica disse o que devia
do artista, a imprensa tem dito o que vale o homem. Eu subscrevo tudo, tão viva
trago comigo a sensação que me deu o seu violino mestre e mágico.
Enfim, e porque tudo acaba na morte, uma lágrima por
aquele que se chamou Dr. Rocha Lima. Não sei se lágrima; quando se padece tanto
e tão longamente, a morte é liberdade, e a liberdade qualquer que seja a sua
espécie, é o sonho de todos os cativos. Rocha Lima deve ter sonhado. durante a
agonia de tantos meses, com este desencadeamento que lhe tirou um triste
suplício inútil.
QUANDO se julgarem os tempos, a semana que passou
apresentará ao Senhor uma bela fé de ofício e verá o seu nome inscrito entre as
melhores deste ano.
- E tu que fizeste?
- Senhor, eu creio haver ganho um bom lugar. Os meus
acontecimentos não foram todos da mesma espécie, nem podiam sê-lo, mas foram
todos importantes e graves. Antes de tudo, embora não vá por ordem cronológica,
a Inglaterra devolveu a Ilha da Trindade ao Brasil. Esta ilha foi um dia tomada
por ingleses, ao que dizem para estação de um cabo telegráfico. Os brasileiros
tiveram a notícia pelos jornais, quando a ocupação durava já meses e o chefe do
Gabinete inglês que havia presidido à captura já estava descansando dos trabalhos
e outro chefe havia subido ao poder. Nestas cousas de ilhas capturadas, os
gabinetes são solidários, e Salisbury acompanhou Rosebery, como se não fossem
adversários políticos.
Os brasileiros, porém sentiram a dor do ato, e assim o
clamaram pela boca legislativa e pela boca executiva, pela boca da imprensa e
pela boca popular, com tal unanimidade que produzia um belo coro patriótico.
Então Portugal que conhecia os antecedentes da ilha, interveio na contenda, deu
à Grã-Bretanha as razões pelas quais a ilha era brasileira, só brasileira. É
preciso confessar que a velha
Inglaterra conhece muito bem história e geografia que
são professadas nas suas universidades: com grande apuro: mas há casos em que o
melhor é meter estas duas disciplinas no bolso e ir estudá-las nas
universidades estrangeiras. Foi o que sucedeu; Coimbra ensinou a Cambridge, e
Cambridge achou que era assim, que a ilha era realmente brasileira, e mandou
corrigir as cartas da edição Rosebery, onde a ilha da Trindade era uma estação
telegráfica de Sir John Pender.
- Então tudo acabou em paz?
- Plena paz.
- Conquanto se trate de hereges, quero louvá-los pelo
ato de restituir o seu a seu dono. Que mais houve, semana?
- Senhor, houve uns presente de ouro e prata,
tinteiros, canetas, penas, ofertados pelos jurados da 7ª
sessão ordinária de 1896 do Rio de Janeiro ao juiz e
aos promotores em sinal de estima, alta consideração e gratidão pelas maneiras
delicadas com que foram tratados durante toda a sessão. O escrivão recebeu por
igual motivo uma piteira de âmbar. Este ato em si mesmo, é quase vulgar; mas o
que ele significa é muito. Significa um imenso progresso nos costumes daquele
país. O júri é instituição antiga no Brasil. É serviço gratuito e obrigatório;
todos tem que deixar os negócios para ir julgar os seus pares, sob pena de
multa de vinte mil-réis por dia. Se fosse só isso, era dever que todo cidadão
cumpriria de boa vontade; mas havia mais. As maneiras descorteses, duras e
brutais com que eram tratados pelos magistrados e advogados não têm descrição
possível.
Nos primeiros anos os jurados eram recebidos a pau, è
porta do antigo aljube, por um meirinho: as sentenças produziam sempre contra
eles alguma cousa, porque, se absolviam o réu ou minoravam a pena, os
magistrados quebravam-lhes a cara; se, ao contrário, condenavam o réu, os
advogados davam-lhos pontapés e murros. Entre muitos casos que se podiam
escrever e são ali conhecidos de toda gente, figura o que sucedeu em março ou
abril de 1877. Havia um jurado que pelo tamanho, era quase menino. Além de
pequeno, magro; além de magro, doente. Pois os promotores, o juiz, o escrivão e
os advogados, antes de começar a audiência, divertiram-se em fazer dele peteca.
O pobrezinho ia das mãos de uns para as dos outros, no meio de grandes risadas.
Os outros jurados, em vez de acudir em defesa do colega, riram também por medo
e por adulação. O infeliz saiu deitando sangue pela boca. Pequenas cousas,
cacholetas, respostas de desprezo, piparotes eram comuns. Alguns magistrados
mais dados à chalaça puxavam-lhe o nariz ou faziam-lhe caretas. Um velho
promotor tinha de costume, quando adivinhava o voto de algum deles, apontá-lo
com o dedo, no meio do discurso, "Será isto entendido por aquela besta de
óculos que olha para mim?" Muitas vezes o juiz lia primeiramente para si
as respostas do conselho de jurados e, se elas eram favoráveis ao réu, dizia
antes de começar a lê-las em voz alta: "Vou ler agora a lista das patadas
que deram os Srs. Juízes de fato." No meio da polidez geral do povo, esta
exceção do juiz enchia a muita gente de piedade e de indignação; mas ninguém
ousava propor uma reforma nos costumes...
- Fraqueza de ânimo; os maus costumes reformam-se.
- Uma era nova começou em 1883; já então os jurados
recebiam poucos cascudos e eram chamados apenas camelórios. Anos depois, em
1887, houve certo escândalo por uma tentativa de reação dos costumes antigos. A
um dos jurados mandou por o juiz uma cabeça de burro. Era muito bem feita a
cabeça: Dois buracos serviam aos olhos e por um mecanismo engenhoso o homem
abanava as orelhas de quando em quando, como se enxotasse moscas. Apesar do
escândalo, a cabeça ainda foi empregada nos quatro anos posteriores. No fim de
1892 sentiu-se notável mudança nas maneiras dos juízes e promotores. Já alguns
destes tiravam o chapéu aos jurados. Em setembro de 1893 apenas se ouviu a um
daqueles dizer a um jurado que lhe perguntava pela saúde: "Passa
fora!" Mas, pouco a pouco, as palavras grosseiras e gestos atrevidos foram
acabando. Em 1895, havia apenas indiferença; em 1896, os jurados da 7ª
sessão reconheceram que a polidez reinava enfim no tribunal popular. O
entusiasmo desta vitória, alcançada por uma longa paciência, explica os presentes
de ouro e prata. Eles marcam na civilização judiciária daquele país uma data
memorável. Por isso é que me encho de orgulho.
- E há grandes mortos?
- Não tive nenhum. Um só morto, não grande mas digno
de apreço, de afeto e de pesar, um pobre jornalista que acabou com a pena na
mão. Quem o conheceu na mocidade não podia antever a triste vida nem triste
morte. O pai, diretor do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, foi uma grande
força no seu tempo. Conta-se que podia quanto queria; mas a morte acabou com a
força, e o filho teve de buscar em si mesmo, não no nome, o trabalho
necessário. Não fez outra cousa durante a vida inteira; trabalhou no jornal e
no teatro, fez rir, e de quantas risadas provocou, muitas acabaram antes pela
careta da morte, outras esqueceram talvez o autor delas; pobre Augusto de
Castro! Era em seu tempo um dandy. Se pudesse adivinhar o que sucederia depois!
Senhor, o que eu achei e deixei na terra foi a saudade do passado e o gozo do
presente; muitos gemem o que foi, todos saboreiam o que é, raros cuidam do que
será. Um clássico português (e aquele finado apreciava os clássicos da sua
língua) escreveu que era provérbio ou dito alheio - não me lembra bem - que os
italianos se governam pelo passado, os franceses pelo presente e os espanhóis pelo
há de vir. E acrescenta o clássico: "Aqui quisera eu dar uma repreensão de
pena à nossa Espanha..." Repreensão por que, Senhor? Eu creio que o mal é
não cuidar no dia seguinte.
- Estás enganada, oh! Muito enganada! Cuidar no dia
seguinte é uma cousa; mas governar-se pelo que há de vir! Eu deixei aos homens
o presente , que é necessário à vida, e o passado, que é preciso ao coração.
O futuro é meu. Que sabe um tempo de outro tempo? Que
semana pode adivinhar a semana seguinte?
ESTA SEMANA é toda de poesia. Já a primeira linha é um
verso, boa maneira de entrar em matéria.
Assim que, podeis fugir daqui, filisteus de uma figa,
e ir dizer entre vós, como aquele outro de Heine:
"Temos hoje uma bela temperatura." O que
sucedeu em prosa nestes sete dias merecia decerto algum lugar, se a poesia não
fosse o primeiro dos negócios humanos ou se o espaço desse para tanto; mas não
dá. Por exemplo, não pode conter tudo que sugere a reunião dos presidentes de
bancos de nossa praça.
Chega, quando muito, para dizer que o remédio tão
procurado para o mal financeiro, - e naturalmente econômico, - foi achado
depois de tantas cogitações. Os diretores, acabada a reunião, voltaram aos seus
respectivos bancos e a taxa d câmbio subiu 1/8. A Bruxa espantou-se com isto e
declarou não entender o câmbio. A poetisa Elvira Gama parecia havê-lo
entendido, no soneto que ontem publicou aqui.
Doce câmbio...
Mas trata de amores, como se vê da segunda parte do
verso:
... de seres atraídos,
Ligados pela ação de igual desejo.
Eu é que o entendi de vez. A primeira reunião fez
subir um degrau a segunda fará subir outro, e virão muitas outras até que o
câmbio chegue ao patamar da escada. Aí convidá-lo-ão a descansar um pouco, e,
uma vez entrado na sala, fechar-lhe-ão as portas e deixá-lo-ão bradar à
vontade. - Estás a 27, responderão os diretores do banco, podes quebrar os
trastes e a cabeça, estás a 27, não desce de 27.
Quanto à desavença entre a bancada mineira e a bancada
paulista outro assunto de prosa da semana, menos ainda pode caber aqui, ele e
tudo o que sugere relativamente ao futuro. Digo só que aos homem políticos da
nossa terra ouvi sempre este axioma: que os partidos são necessários ao governo
de uma nação. Partidos, isto é, duas ou mais correntes de opinião organizadas,
que vão a todas as partes do país.
Na nossa federação esta necessidade é uma condição de
unidade. A Câmara de tantas bancadas quantos Estados; o próprio Rio de Janeiro,
que por estar mais perto da capital cheira ainda a província, e o Distrito
Federal, que constitucionalmente não é Estado, tem cada um a sua bancada
particular. Ora todas essas bancada não só impedirão a formação dos partidos,
mas podem chegar a destruir o único partido existente e fazer da Câmara uma
constelação de sentimentos locais, uma arena de rivalidades estaduais.
Quando muito, os Estados pequenos mergulharão nos
grandes, e ficaremos com seis ou sete reinos, ducados e principados, dos quais
mais de um quererá ser a Prússia.
Entro a devanear. Tudo porque não me deixei ir pela
poesia adiante. Pois vamos a ela, e comecemos pelo quarto jantar da Revista
Brasileira, a que não faltou poesia e nem alegria. A alegria, quando tanta
gente anda a tremer pelas falências no fim do mês, é prova de que a Revista não
tem entranhas ou só as tem para os seus banquetes. Ela pode responder,
entretanto, que a única falência que teme deveras é a do espírito. No dia em
que meia dúzia de homens não puderem trocar duas dúzias de ideias, tudo está
acabado, os filisteus tomarão conta da cidade e do mundo e repetirão uns aos
outros a mesma exclamação daquele de Heine: Es ist heute eine schöne Witterung!
Mas enquanto o espírito não falir, a Revista comerá os seus jantares mensais
até que venha o centésimo, que será de estrondo. Se eu me não achar entre os
convivas, é que estarei morto; peço desde já aos sobreviventes que bebam à
minha saúde.
A demais poesia da semana consistiu em três
aniversários natalícios de poetas: o de Gonçalves Dias a 10, o de Magalhães e
Carlos a 13. O único popular destes poetas é ainda o autor da "Canção do
Exílio".
Magalhães teve principalmente uma página popular, que
todos os rapazes do meu tempo (e já não era a mesma geração) traziam de cor. O
Carlos não chegou ao público. Mas são três nomes nacionais, e o maior deles tem
a estátua que lhe deu a sua terra. Não indaguemos da imortalidade. Rocnoe
louvado por Filinto. Improvisou uma ode entusiástica fechada por esta célebre
entonação: Posteridade, és minha! E ninguém já lia Filinto, quando Bocage ainda
era devorado. O próprio Bocage, a despeito dos belos versos que deixou, esta
pedindo uma escolha dos sete volumes, - ou dos seis, para falar honestamente.
Justamente anteontem conversávamos alguns acerca da
sobrevivência de livros e de autores franceses deste século. Entrávamos, em bom
sentido, naquela falange de Musset:
Electeurs brevetés des morts et des vivants.
E não foi pequeno o nosso trabalho abatendo cabeças
altivas. Nem Renan escapou, nem Taine; e, se não escapou Taine, que valor pode
ter a profecia dele sobre as novelas e contos de Merimée? Il est probable qu'en
l'an 2000 on relira la PARTIE DE TRIC-TRAC, por savoir ce qu'il en coûte
manquer une fois à l'honneur. Taine não fez como os profetas hebreus, que
afirmam sem demonstrar; ele analisa as causas da vitalidade das novelas de
Mérimée, os elementos que serviram à composição, o método e a arte da composição.
O tempo dirá se acertou; e pode suceder que o profeta acabe antes da profecia e
que no ano 2000 ninguém leia a História da Literatura Inglesa, por mais
admirável que seja esse livro.
Mas no ano 2000 os contos de Mérimée terão século e
meio. Que é século e meio! No mês findo, o poeta laureado de Inglaterra falou
no centenário da morte de Burns, cuja estátua era inaugurada; parodiou um dito
antigo, dizendo enfaticamente que não se pode julgar seguro o renome de um
homem antes de 100 anos depois dele morto. Conclui que Burns chegara ao ponto
donde não seria mais derribado. Não discuto opiniões de poetas nem de críticos,
mas bem pode ser que seja verdadeira. Em tal caso, o autor de Cármem estará
igualmente seguro, se o seu profeta acertou. Resta lembrar que a vida dos
livros é vária
como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de
cinqüenta, outros de cem anos, ou de noventa e nove, para não desmentir o poeta
laureado. Muitos há que, passado o século, caem nas bibliotecas, onde a
curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a história, em parte
para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um
pequeno retalho de glória. A imortalidade é que é de poucos.
Não há muito, comemoramos o centenário de José
Basílio, e ainda ontem encontrei o jovem talento e gosto que iniciou essa
homenagem. Hão de lembrar-se que não foi ruidosa; não teve o esplendor da de
Burns, cuja sombra viu chegar de todas as partes do mundo em que se fala a
língua inglesa presentes votivos e deputações especiais. O chefe do partido
liberal presidia às festas, onde proferiu Dois discursos.
Cá também eram passados cem anos, mas, ou há menor
expansão aqui em matéria de poesia, ou o autor do Uruguai caminha para as
bibliotecas e para a devoção de poucos. Não sei se ao cabo de outro século
haverá outro Magalhães que inicie uma celebração. Talvez já o poeta esteja
unicamente nos florilégios com alguns dos mais belos versos que se tem escrito
na nossa língua. É ainda uma da antigüidade; a do nosso poeta terá a da própria
mão que lhe deu cunho. Se afinal se perder, haverá vivido.
CONTRASTES da vida, que são as obras de imaginação ao
pé de vós! Vinha eu de um banco, aonde fora saber notícias do câmbio. Não tenho
relações diretas com o câmbio; não saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro
ponto da terra, que é assaz vasta, e eu demasiado pequeno. Mas tudo o que
compro caro, dizem-me que é culpa do câmbio. "Que quer o senhor que eu
faça com este cambio a 9?" perguntam-me.
Em vão leio os jornais; o câmbio não sobe de 9. O que
faz é variar; ora é 9 1/8, ora 9 1/4, ora 9 3/8.
Dorme-se com ele a 9 5/16, acorda-se a 93/4. Ao
meio-dia está a 91/2. Um eterno vai-vém na mesma eterna casa. Sucedeu o que se
dá com tudo; habituei-me a essa triste especulação de 9, e dei de mão a todas
as esperanças de ver o câmbio a 10.
De repente ouço dizer na rua que o câmbio baixara à
casa do 8. A princípio não acreditei; era uma invenção de mau gosto para
assustar a gente, ou algum inimigo achara aquele meio de fazer mal. Mas tanto
me repetiram a notícia, que resolvi ir às casas argentárias saber se realmente
o câmbio descera a 8.
Em caminho quis calcular o preço das calças e do pão,
mas não achei nada, vi só que seria mais caro.
Entrei no primeiro banco, à mão, e até agora não sei
qual foi. Gente bastante: todos os olhos fitavam as tabelas. Vi um oito,
acompanhado de pequenos algarismos, que a cegueira da comoção não me permitiu
discernir. Que me importavam estes? Um quarto, um oitavo, três oitavos, tudo me
era indiferente, uma vez que o fatal número 8 lá estava. Esse algarismo, que eu
presumia nunca ver nas tabelas cambiais, ali me pareceu com os seus Dois
círculos, um por cima do outro. Pareceu-me um par de olhos tortos e irônicos.
Perguntei a um desconhecido se era verdade.
Respondeu-me que era verdade. Quanto à causa, quando lhe perguntei por ela,
respondeu-me com aquele gesto de ignorância, que consiste em fazer cair os
cantos da boca. Se bem me lembro, acrescentou o gesto de abrir os braços com as
mãos espalmadas, que é a mesma ignorância em itálico. Compreendi que não sabia
a causa; mas o efeito ali estava, e todos os olhos em cima dele, sem a
consternação nem o terror que deviam Ter os meus. Saí; na rua da Alfândega,
esquina da Candelária, havia alguma agitação, certo burburinho, mas não pude
colher mais do que já sabia, isto é, que o câmbio baixara a 8. Um perverso,
vendo-me apavorado, assegurava a outro que a queda a 7 não era impossível. Quis
ir ao meu alfaiate para que me reduzisse a nova tabela ao preço que teria de
pagar pelas calças, mas é certo que ninguém se apressa em receber uma notícia
má. Que podes suceder? Disse comigo; chegarmos à arozóia ; será a restauração
da nossa idade pré-histórica, e um caminho para o Éden, avant la lettre.
Enquanto seguia na direção da Rua Primeiro de Março,
ouvia falar do câmbio. Quase a dobrar a esquina, um homem lia a outro as
cotações dos fundos. Tinham-se vendido ações do Banco Emissor de Pernambuco a
mil e quinhentos; as debêntures da Leopoldina chegaram a obter seis mil
setecentos e cinqüenta; das ações da Melhoramentos do Maranhão havia ofertas a
quatro mil e quinhentos, mas ninguém lhes pegava. Dobrei a esquina, entrei na
Rua Primeiro de Março, em direção ao Carceler. Ia
costeando as vitrinas de cambistas, cheias de ouro,
muita libra, muito franco, muito dólar, tudo empilhado, esperando os fregueses.
Vinha de dentro um fedor judaico de entontecer, mas a vista das libras
restituía o equilíbrio ao cérebro, e fazia-me parar, mirar, cobiçar...
- Vamos! Exclamei, olhando para o céu.
Que vi, então, leitor amigo? Na igreja da Cruz dos
Militares, dentro do nicho de S. João, estavam três pombas. Uma pousava na
cabeça do apóstolo, outra na cabeça da águia. outra no livro aberto. Esta
parecia ler, mas não lia, porque abriu logo as asas e trepou à cabeça do
apóstolo, desceu à cabeça da águia, e a que estava na cabeça da águia passou ao
livro. Uma quarta pomba veio ter com elas. Então começaram todas a subir e a
descer, ora parando por alguns segundos, e o santo quieto, deixando que elas
lhe contornassem o pescoço e os emblemas, como se não tivesse outro oficio que
esse de dar pouso as pombas.
Parei e disse comigo: Contrastes da vida, que são as
obras da imaginação ao pé de vós? Nenhuma daquelas pombas pensa no câmbio, nem
na baixa, nem no que há de vestir, nem no que há de comer. Eis ali a verdadeira
gente cristã, eis o sermão da montanha, a Dois passos dos bancos, às próprias
barbas destas casas de cambistas que me enchem de inveja. Talvez na alma de
algum destes homens viva ainda a própria alma de um antigo que ouviu discurso
de Jesus, e não trocou por este o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Cuida das
libras, como eu, que visto e me sustento pelo valor delas, mas eis aqui o que
dizem as pombas, repetindo o sermão da montanha: "Não andeis cuidadosos da
vossa vida, que comereis, nem para o vosso corpo, que vestireis... Olhai para
as aves do céu que não semeiam, nem segam, não fazem provimentos nos celeiros;
e contudo, vosso pai celestial as sustenta... E por que andais vós solícitos
pelo vestido? Considerai como crescem os lírios do campo; eles não trabalham
nem fiam... Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã a
si mesmo trará o seu cuidado: ao de hoje basta a sua própria aflição." (
S. Mateus).
Realmente, não cuidavam de nada aquelas pombas. Onde é
o ninho delas? Perto ou longe. gostam de vir aqui à águia de Patmos. Alguma vez
irão ao apóstolo do outro nicho. S. Pedro, creio; mas S. João é que as namora,
neste dia de câmbio baixo, como para fazer contraste com a besta do Apocalipse,
a famosa besta de sete cabeças e dez cornos, - número fatídico - talvez a taxa
do câmbio de amanhã (7/ 10).
Afinal deixei a contemplação das pombas e fui-me à
farmácia, a uma das farmácias que há naquela rua.
Ia comprar um remédio; pediram-me por ele quantia
grossa. Como eu estranhasse o preço replicou-me o farmacêutico: "Mas, que
quer o senhor que eu faça com este câmbio a 8?" Como ao grande Gama,
arrepiaram-se-me as carnes e o cabelo, mas só de ouvi-lo. A vista era boa,
serena, quase risonha. Quis raciocinar, mas raciocínio é uma cousa e
medicamento é outra; saí de lá com o remédio e um acréscimo de quinhentos réis
no preço. Contaram-me que já não há tostões nas farmácias, nem tostões, menos
ainda vinténs. Tudo custa mil-réis ou mil e quinhentos, Dois mil réis ou Dois
mil e quinhentos, e assim por diante. Para a contabilidade é, realmente, mais
fácil; e pode ser que o próprio enfermo ganhe com isso - a confiança, metade da
cura.
Na rua tornei a erguer os olhos às pombas. Só vi uma,
pousada no livro. Que tens tu? perguntei-lhe cá de baixo, por um modo
sugestivo. Se é a besta de sete cabeças, não te importes que venha, contanto
que não lhe cortes nenhuma. Já temos a de oito: menos de sete cabeças é nada.
Pagarei nove mil-réis pelo remédio, mas antes nove que catorze, no dia em que a
besta ficar descabeçada, porque então o mais barato é o melhor de todos os
remédios. E a pomba, pelo mesmo processo sugestivo:
- Que tenho eu com remédios, homem de pouca fé? O ar e
o mato são as minhas boticas.
Quis pedir socorro ao apóstolo; mas o mármore, - ou a
vista me engana, ou o apóstolo gosta das suas pombas amigas, - o mármore sorriu
e não voltou a cara para desmentir o estatuário. Sorriu, e a pomba saltou-lhe à
cabeça, para lhe tirar comida, pagar, ou para lhe dar um beijo.
QUALQUER de nós teria organizado este mundo melhor do
que saiu. A morte, por exemplo, bem podia ser tão-somente a aposentadoria da
vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural
invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria cargo dos seus ou
dos outros.
Como isto andaria assim desde o princípio das cousas,
ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem.
Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma
refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer, dissessem
as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem conselhos, e se fossem
alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, não perpétuas, nem dessas
outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria
não haver nada, além da despedidas verbais e amigas...
Bem sei o que se pode dizer contra isto; mas por
agora, importa-me somente sonhar alguma cousa que não seja a morte bruta, crua
e terrível, que não quer saber se um homem é ainda precioso aos seus, nem se
merece as torturas com que o aflige primeiro, antes de estrangulá-lo. Tal acaba
de suceder ao nosso Alfredo Gonçalves, que foi anteontem levado à sepultura,
após algum tempo de enfermidade dura e fatal.
Para falar a linguagem da razão, se a morte havia de
lavá-lo anteontem, melhor faria se o levasse mais cedo. A linguagem do
sentimento é outra: por mais que doa ver padecer, e por certo que seja o triste
desenlace, o coração teima em não querer romper os últimos vínculos, e a
esperança tenaz vai confortando os últimos desesperos. Não se compreende a
necessidade da morte do pobre Alfredo, um rapaz afetuoso e bom, jovial e forte,
que não fazia mal a ninguém, antes fazia bem a alguns e a muitos, porque é já
beneficio praticar um espírito agudo e um coração amigo.
Quando anteontem calcava a terra do cemitério, debaixo
da chuva que caía, batido do vento que torcia as árvores, lembrou-me outra
ocasião, já remota, em que ali íamos levar um irmão do Alfredo. Nunca me há de
esquecer essa triste noite. A morte do Artur foi súbita e inesperada. Prestes a
ser transportado para o coche fúnebre, pareceu a um amigo e médico que o óbito
era aparente, um caso possível de catalepsia.
Não se podia publicar essa esperança débil, em tal
ocasião, quando todos estavam ali para conduzir um cadáver; calou-se a
suspeita, e o féretro, mal fechado, foi levado ao cemitério... Não podeis
imaginar a sensação que dava aos poucos que sabiam da ocorrência, aquele
acompanhar o saimento de uma pessoa que podia estar viva. No cemitério, feita
reservadamente a comunicação, foi o caixão deixado aberto em depósito, velado
por cinco ou seis amigos. O estado do corpo era ainda o mesmo; os olhos, quando
se lhes levantassem as pálpebras, pareciam ver. Os sinais definitivos da morte
vieram muito mais tarde.
Sai antes deles. eram cerca de oito horas: não havia
chuva, como anteontem, nem lua, mas a noite era clara, e as casas brancas da
necrópole deixavam-se ver muito bem. com os seus ciprestes ao lado.
Descendo por aqueles renques de sepulturas, cuidava na
entrada da esperança em lugar onde as suas asas nunca tocaram o pó ínfimo e
último. Cuidei também naqueles que porventura houvessem sido, em má hora,
transferidos ao derradeiro leito sem ter pegado no sono e sem aquela final
vigília.
Carlos Gomes não deixará esperanças dessas.
"Talvez ao chegarem estas linhas ao Rio ele Janeiro, já não exista o
inspirado compositor, que entrou em agonia", diz uma carta do Pará
publicada ontem no jornal do Comércio. Pois existe, está ainda na mesma agonia
em que entrou, quando elas de lá saíram. Hão de lembrar-se que há muitos dias
um telegrama do Pará disse a mesma cousa, foi antes dos protocolos italianos.
Os protocolos vieram, agitaram. passaram, e o cabo não nos contou mais nada. O
padecimento, assim longo, deve ser forte; a carta confirma esta dedução. Carlos
Gomes continua a morrer. Até quando
irá morrendo? A ciência dirá o que souber; mas ela
também sabe que não pode crer em si mesma.
Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O
livro da semana foi um obituário, e não terás lido outra cousa, fora daqui,
senão mortes e mais mortes. Não falemos do chanceler da Rússia, nem de outro
qualquer personagem, que a distancia e a natureza do cargo podem despir de
interesse para nós. Mas vede as matanças de cristãos e muçulmanos em
Constantinopla. O cabo tem contado cousas de arrepiar.
Na capital turca empregaram-se centenas de coveiros em
abrir centenas de covas para enchê-las com centenas de cadáveres. Não nos
dizem, é verdade, se na morte ao menos foram irmanados cristãos e maometanos,
mas é provável que não. Ódio que acaba com a vida não é ódio, é sombra de ódio,
é simples e reles antipatia. O verdadeiro é o que passa às outras gerações, o
que vai buscar a segunda no próprio ventre da primeira, violando as mães a
ferro e fogo. Isto é que é ódio. O provável é que os coveiros tenham separado
os corpos, e será piedade, pois não sabemos se, ainda no caminho do outro
mundo, o Corão não irá enticar com o Evangelho. Um telegrama de Londres diz que
Istambul está sossegada; ainda bem, mas até quando?
Também começaram a matar nas Filipinas, a matar e a
morrer pela independência, como em Cuba. A Espanha comove-se e dispõe a matar
também, antes de morrer. É um império que continua a esboroar-se, pela lei das
cousas, e que resiste. Assim vai o mundo esta semana; não é provável que vá
diversamente na semana próxima.
E ainda não conto aquele gênero de morte que não está
nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da
terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida
por um terremoto, com a gente que tinha. Os terremotos japoneses, alguns meses
antes, levaram cerca de dez mil pessoas. O cabo fala também dos tremores na
Europa, mas por ora não houve ali nenhuma Lisboa que algum Pombal restaure, nem
outra Pompéia, que possa dormir muitos séculos.
Mortes, pode ser; a semana é de mortes.
DIZEM DA BAHIA que Jesus Cristo enviou um emissário à
terra, à própria terra da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo de Orobó
Grande. Chama-se esse emissário Manuel da Benta Hora, e tem já um séquito
superior a cem pessoas.
Não serei eu que chame a isto verdade ou mentira.
Podem ser as duas cousas, uma vez que a verdade confine na ilusão, e a mentira
na boa-fé. Não tendo lido nem ouvido o Evangelho de Benta Hora, acho prudente
conservar-me a espera dos acontecimentos. Certamente, não me parece que Jesus
Cristo haja pensado em mandar emissários novos para espalhar algum preceito
novíssimo. Não. eu creio que tudo está dito e explicado. Entretanto, pode ser
que Benta Hora, estando de boa-fé, ouvisse alguma voz em
sonho ou acordado, e até visse com os próprios olhos a
figura de Jesus. Os fenômenos cerebrais complicam-se. As descobertas últimas
são estupendas: tiram-se retratos de ossos e de fetos. Há muito que os
espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível
neste mundo e neste final de um grande século.
Daí a minha admiração ao ler que a imprensa da Bahia
aconselha ao governo faça recolher Benta Hora à cadeia. Note-se de passagem: a
notícia, posto que telegráfica, exprime-se deste modo: "a imprensa pede ao
governo mandar quanto antes que faça Benta Hora apresentar as divinas
credenciais na cadeia..." Este gosto de fazer estilo embora pelo fio
telegráfico é talvez mais extraordinário que a própria missão do regente apóstolo.
O telégrafo é uma invenção econômica, deve ser conciso e até obscuro. O estilo
faz-se por extenso em livros e papéis públicos, e às vezes nem aí. Mas nós
amamos os ricos vestuários do pensamento, e o telegrama vulgar é como a tanga,
mais parece despir que vestir. Assim explico aquele modo faceto de noticiar que
querem meter o homem na cadeia.
Isto dito, tornemos à minha admiração. Não conhecendo
Benta Hora, não crendo muito na missão que o traz (salvo as restrições acima
postas), não é preciso lembrar que não defendo um amigo, como se pode alegar
dos que estão aqui acusando o padre Dantas, vice-governador de Sergipe, por
perseguir os padres da oposição. Em Sergipe, onde o governo é quase
eclesiástico, não há necessidade de novos emissários do céu; as leis divinas
estão perpetuamente estabelecidas, e o que houver de ser, não inventado, mas
definido, virá de Roma. Assim o devem crer todos os padres do Estado, sejam da
oposição, ou do governo, Olímpios, Dantas ou Jônatas. Portanto, se alguns forem
ali presos, não é porque, unidos no espiritual, não o estão no temporal. A
cadeia fez-se para os corpos. Todos eles têm amigos seus, que o acompanham no
infortúnio, como na prosperidade; mas tais amigos não vão atrás de uma nova
doutrina de Jesus, vão atrás dos seus padres.
É o contrário dos cento e tantos amigos de Benta Hora;
esses com certeza vão atrás de algum Evangelho.
Ora, pergunto eu : a liberdade de profetar não é igual
à de escrever, imprimir, orar, gravar? Ninguém contesta à imprensa o direito de
pregar uma nova doutrina política ou econômica. Quando os homens públicos falam
em nome da opinião, não há quem os mande apresentar as credenciais na cadeia. E
desses por três que digam a verdade, haverá outros três que digam outra cousa,
não sendo natural que todos dêem o mesmo recado com ideias e palavras opostas.
Donde vem então que o triste do Benta Hora deva
ir confiar às tábuas de um soalho as doutrinas que
traz para um povo inteiro, dado que a cadeia de Orobó Grande seja assoalhada?
Lá porque o profeta é pequeno e obscuro, não é razão
para recolhê-lo à enxovia. Os pequenos crescem, e a obscuridade é inferior à
fama unicamente em contar menor número de pessoas que saibam da profecia e do
profeta. Talvez esta explicação esteja em La Palisse, mas esse nobre autor tem
já direito a ser citado sem se lhe pôr o nome adiante. Os obscuros surgirão à
luz, e algum dia aquele pobre homem da Gameleira poderá ser ilustre. Se, porém,
o motivo da prisão é andar na rua, pregando, onde fica o direito de locomoção e
de comunicação? E se esse homem pode andar calado, por que não andará falando?
Que fale em voz baixa ou média, para não atordoar os outros, sim, senhor, mas
isso é negócio de admoestação, não de captura.
Agora se a alegação para a captura é a falsidade de um
mandato deduz-se da opinião dos homens, e estes tanto são veículos da verdade
como da mentira. Tudo está em esperar Quantos falsos profetas por um
verdadeiro! Mas a escolha cabe ao tempo, não à polícia. A regra é que as
doutrinas e às cadeias se não conheçam; se muitas delas se conhecem, e a
algumas sucede apodrecerem juntas, o preceito legal é que nada saibam umas das
outras.
Quanto à doutrina em si mesma, não diz o telegrama
qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Antônio Conselheiro. Sim,
creio recordar-me que andou por ali um oráculo de tal nome mas não me ocorre
mais nada. Ocupado em aprender a minha vida, não tenho tempo de estudar a dos
outros; mas, ainda que esse Antônio Conselheiro fosse um salteador, por onde se
há de atribuir igual vocação a Benta Hora? E, dado que seja a mesma, quem nos
diz que, praticado com um fim moral e metafísico, saltear e roubar não é uma
simples doutrina? Se a propriedade é um roubo, como queria um publicista
célebre, por que é que o roubo não há de ser uma propriedade? E que melhor
método de propagar uma ideia que pô-la em execução? Há, em não me lembra já que
livro de Dickens, um mestre-escola que ensina a ler praticamente; faz com que
os pequenos soletrem uma oração, e, em vez da seca análise gramatical,
manda praticar a ideia contida na oração; por exemplo,
eu lavo as vidraças, o aluno soletra, pega da bacia com água e vai lavar as
vidraças da escola; eu varro o chão, diz o outro, e pega a vassoura, etc., etc.
Esse método de pedagogia pode ser aplicado à divulgação das ideias.
Fantasia, dirás tu. Pois fiquemos na realidade, que é
o aparecimento do profeta de Orobó Grande e o clamor contra ele. Defendamos a
liberdade e o direito. Enquanto esse homem não constituir partido político com
seus discípulos, e não vier pleitear uma eleição, devemos deixá-lo na rua e no
campo, livre de andar, falar, alistar crentes ou crédulos, não devemos
encarcerá-lo nem depô-lo. O caboclo da Praia Grande viu respeitar em si a
liberdade. Se Benta Hora, porém, trocando um mandato por outro, quiser
passar do espiritual ao temporal e...
TODA ESTA SEMANA foi feita pelo telégrafo. Sem essa
invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham
de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os
curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a cidade.
Certamente, uma boa cidade como a nossa não deixa os filhos sem pão; fato ou
boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se do
banquete.
A maior das notícias para nós, a única nacional, não
preciso dizer que é a morte de Carlos Gomes. O telégrafo no-la deu, tão pronto
se fecharam os olhos do artista e deu mais a notícia do efeito produzido em
todo aquele povo do Pará, desde o chefe do Estado até o mais singelo cidadão. A
triste nova era esperada - não sei se piedosamente desejada. Correu aos outros
Estados, ao de S. Paulo, à velha cidade de Campinas. A terra de Carlos Gomes
deseja possuir os restos queridos de seu filho, e os pede; São Paulo transmite
o desejo ao Pará, que promete devolvê-los. Não atenteis somente para a
linguagem dos Dois Estados, um dos quais reconhece implicitamente ao outro o
direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele aí morreu, e o outro acha justo
restituí-lo aquele onde ele viu a luz. Atentai, mais que tudo, para esse
sentimento de unidade nacional. que a política pode alterar ou afrouxar, mas
que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie alguma sem desacordos,
sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira. Quando se fez a eleição do
presidente da República, o Pará deu o voto a um filho seu, certo embora de que
lhe não caberia o governo da União; divergiu de S.Paulo. A república da arte é
anterior às nossas constituições superior às nossas competências. O que o Pará
fez pelo ilustre paulista mostra a todos nós que há um só paraense e um só
paulista que é este Brasil.
Agora que ele é morto, em plena glória, acode-me
aquela noite da primeira representação da Joana de Flandres, e a ovação que lhe
fizeram os rapazes do tempo, acompanhados de alguns homens maduros, certamente,
mas os principais eram rapazes, que são sempre os clarins do entusiasmo. Ia à
frente de todos Salvador de Mendonça, que era o profeta daquele caipira de
gênio. Vínhamos da Ópera Nacional, uma instituição que durou pouco e foi muito
criticada, mas que, se mereceu acaso o que se disse dela, tudo haverá resgatado
por haver aberto as portas ao jovem maestro de Campinas. Tinha uma subvenção à
Ópera Nacional; dava-nos partituras italianas e zarzuelas, vertidas em
português, e compunha-se de senhoras que não duvidavam passar da sociedade ao
palco, para auxiliar aquela obra. Cantava o fundador, D. José Amat, cantava o
Ribas, cantavam outros. Nem foi só Carlos Gomes que ali ensaiou os primeiros
vôos; outros o fizeram também, ainda que só ele pôde dar o surto grande e
arrojado...
Aí estou eu a repetir cousas que sabeis - uns por as
haverdes lido, outros por vós lembrardes delas; mas é que há certas memórias
que são como pedaços da gente, que não podemos tocar sem algum gozo e dor,
mistura de que se fazem saudades. Aquela noite acabou por uma aurora, que foi
dar em outro dia, claro como o da véspera, ou mais claro talvez; e porque esse
dia se fechou em noite, novamente se abriu em madrugada o sol, tudo com uma
uniformidade de pasmar.
Afinal tudo passa, e só a terra é firme: é um velho
estribilho do Eclesiastes, de que os rapazes mofam, com muita razão, pois
ninguém é rapaz senão para ler e viver o Cântico dos Cânticos, em que tudo é
eterno. Também nós ríamos muito dos que então recordavam o tempo em que foram
cavalos da Candiani, e riam então dos que falavam de outras festas do tempo de
Pedro I. É assim que se vão soldando os anéis de um século.
Ao contrário, a história parece querer dessoldar
alguns dos seus anéis e deitá-los ao mar - ao Mar Negro, se é certo o que nos
anuncia o mesmo telégrafo, portador de boas e más novas. Não trato da deposição
do sultão, conquanto o espetáculo deva ser interessante; eu, se dependesse de
uma subscrição universal, daria meu óbulo para vê-lo realizado com todas as
cerimônias, tal qual o Doente imaginário. A diferença entre a peça francesa e a
peça turca é que o homem doente parece doente deveras, - semilouco, dizem os
telegramas. As deposições da nossa terra não digo que sejam chochas, mas são
lúgubres de simplicidade.
O teatro de Sergipe está agora alugado para essa
espécie de mágica; não há quinze dias deu espetáculo, e já anuncia (ao dizer do
País) nova representação. As mágicas desse teatro pequeno, mas elegante,
compõem-se em geral de duas partes - uma que é propriamente a deposição, outra
que é a reposição.
Poucos personagens: o deposto, o substituto, coros de
amigos. Ao fundo a cidade em festa. Este ceticismo de Aracaju, rasgando as
luvas com aplausos a ambos os tenores. Não revela da parte daquela capital a
firmeza necessária de opinião. Tudo, porém, acharia compensação na majestade do
espetáculo; infelizmente este é pobre e simples; meia dúzia de homens saem de
uma porta, entram por outra, e está acabado. É uma empresa de poucos meios.
Que abismo entre Aracaju e Istambul! Que diferença
entre as duas portas sergipenses e a Sublime Porta!
Lá são as potências que depõem, presididas pelo
pontífice do islamismo, tudo abençoado por Alá e por Maomé, que é profeta de
Alá. Nas ruas sangue, muito sangue derramado, sangue de ódio e de fanatismo.
Ouvem-se rugidos da Ilha de Creta e da Macedônia. Na
platéia o mundo inteiro. Mas o principal não é isso. O principal espetáculo, o
espetáculo único, é o desmembramento da Turquia, também notificado pelo
telégrafo. Esse é que, se se fizer, dará a esse século um ocaso muito parecido
com a aurora. Os alfaiates levaram muito tempo a medir e cortar a bela fazenda
turca para compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir; e por que
as medidas políticas diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por Dois
centímetros. As tesouras brandidas; e, primeiro que se acomodem, haverá muito
olho furado. O desfecho é previsto; alguém ficará com um pano de menos, mas a
Turquia estará acabada, e a história
terá dessoldado alguns elos que já andavam frouxos, se
é que isto não é continuar a mesma cadeia.
Pode suceder que nada haja, assim como não voará o
castelo do Balmoral, com a rainha Vitória e o czar Nicolau dentro. Esta outra
comunicação telegráfica desde logo me pareceu fantástica; cheira a imaginação
de repórter ou de chancelaria. Nem é crível que tal tragédia se represente às
barbas da sombra Shakespeare, sem este seja consultado quando menos para lhe
pôr a poesia e os relatórios policiais não têm.
Enfim, melhor que atentados, deposições e desmembramentos,
é a notícia que nos trouxe o telégrafo, ainda o telégrafo, sempre o telégrafo.
Porfírio Diaz abriu o congresso mexicano, apresentando-lhe a mensagem em que
anunciava a redução dos impostos. Estas duas palavras raramente andam juntas;
saudemos tão doce consórcio. Só um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham
muitos filhos é o meu mais ardente desejo.
ENQUANTO EU cuido da semana, S. Paulo cuida dos
séculos, que é mais alguma cousa. Comemora-se ali a figura de José de Anchieta,
tendo já havido três discursos, dos quais Dois foram impressos, e em boa hora
impressos; honram os nomes da Eduardo Prado e de Brasílio Machado, que honraram
por sua palavra elevada e forte ao pobre e grande missionário jesuíta. A
comemoração parece que continua. O frade merece-a de sobra. A crônica dera-lhe
as suas páginas. Um poeta de viva imaginação e grande estro, o autor do
"Cântico do Calvário", pegou um dia da figura dele e meteu-a num
poema. Agora é a apoteose da palavra e da crítica. Uma feição caracteriza estas
homenagens, é a neutralidade. Ao pé de monarquistas há republicanos, e à frente
destes vimos agora o presidente do Estado. Dizem que este soltara algumas
Palavras de entusiasmo paulista por ocasião da última conferência. De fato, uma
terra em que as opiniões do dia podem apertar as mãos por cima de uma grande
memória é digna e capaz de olhar para o futuro, como o é de olhar para o
passado. A faculdade de ver alto e longe não é comum.
É doce contemplar de novo uma grande figura. Aquele
jesuíta, companheiro de Nóbrega e Leonardo Nunes, está preso indissoluvelmente
à história destas partes. A imaginação gosta de vê-lo, a três séculos de
distância, escrevendo na areia da praia os versos do Poema da Virgem Maria, por
um voto em defesa da castidade, e confiando-os um a um à impressão da memória A
piedade ama os seus atos de piedade. É preciso remontar às cabeceiras da nossa
história para ver bem que nenhum prêmio imediato e terreno se oferecia àquele
homem e seus companheiros. Cuidavam só de espalhar a palavra cristã e civilizar
bárbaros; para isso era tudo Anchieta, além de missionário A habilitação dele e
dos outros era o que ele mesmo escrevia a Loiola, em agosto de 1554:
E aqui estamos, às vezes mais de vinte dos nossos,
numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha, catorze pés de
comprimento, dez de largura. É isto a escola, é a enfermaria, o dormitório,
refeitório, cozinha, despensa.
Justo seria que alguma cousa lembrasse aqui, entre
nós, a nome de Anchieta, - uma rua, se não há mais.
A nossa Intendência Municipal acaba de decretar que
não se dêem nomes de gente viva às ruas, salvo "quando as pessoas se
recomendarem ao reconhecimento e admiração pública por serviços relevantes
prestados à pátria ou ao município, na paz ou na guerra". Anchieta está
morto e bem morto é caso de Ihe dar a homenagem que tão facilmente se distribui
a homens que vem sequer estão doentes e mal se podem dizer maduros; tanto mais
quando o presidente do Conselho Municipal não é só brasileiro, é também
paulista e bom paulista. Certo, nos amamos as celebridades de um dia, que se
vão com o sol, e as reputações de uma rua que acabou ao dobrar da esquina. Vá
que brilhem; os vaga-lumes não são menos poéticos por serem menos duradouros;
com pouco fazem de estrelas. Tudo serve para nos cortejarmos uns aos outros. A
própria lei municipal tem uma porta aberta aos obséquios particulares. Nem
sempre a vontade do legislador estará presente, e as leis corrompem-se com os
anos. Quando o atual conselho desaparecer, Iá virá alguém que, por haver inventado
um chapéu elástico, uma barbatana espiritual ou
finalmente outro jataí que ajude a limpar os brônquios
e as algibeiras, - tenha ocasião de ver pintado o seu nome na esquina da rua em
que mora, e, se morar longe, em outra qualquer. E o anúncio gratuito, o troco
miúdo da glória. E não há de ser escasso prazer, antes largo e demorado, ler na
esquina de uma rua o próprio nome. Não haverá conversação de bond ou a pé que
faça esquecer a placa; por mais atenção que mereça o interlocutor, seja um
homem ou uma senhora, - os alhos do beneficiado cumprimentarão de esguelha as
letras do benefício. Alguma vez passearão pelas caras dos outros, a ver se
também olham. Os crimes que se derem na rua, os incêndios, os desastres serão
outras tantas ocasiões de reler o nome impresso e reimpresso; assim também as
casas de negócio, os anúncios de criados, o obituário e o resto.
Enfim, o uso positivista de datar os escritos da rua
em que a autor mora, uma vez generalizado, ajudará a derramar a boa notícia da
nossa fama.
Nem por isso deixarão de falir os que tiverem de
falir, se forem negociantes; não há nome de esquina que pague um crédito. Este
momento, se é certo o que corre, ameaça de ponto final a muita gente. Dizem que
há numerosas petições de falência. Se serão atendidas é o que não se sabe,
porque o deferimento pode trazer a dissolução geral de todos os vínculos
pecuniários. E quando os que vendem quebram, imaginai os que compram. Estes
deviam rigorosamente matar-se, imitando a gente do Japão, onde os suicídios são
em maior número quando o arroz está caro, e em menor quando está barato. Arroz
ou morte ! é o grito daquela nação. Nós, para quem tudo é caro , desde a sopa
até a sobremesa, vivemos a ver em que param os preços, - os preços ou os
bichos.
Entretanto, ao passo que os negociantes do Rio de
Janeiro pedem crédito, não o acham e querem fechar as portas, o presidente do
Espírito Santo deseja que lhe diminuam a faculdade de abrir crédito.
Em conseqüência das razões que acabo de apresentar-vos
(diz o Dr. Graciano das Neves, em sua recente mensagem) dou prova da maior
lealdade, Srs. Deputados, pedindo-vos que voteis na presente sessão alguma
disposição de lei que restrinja com prudência a faculdade que tem o presidente
de abrir créditos suplementares às verbas orçadas pelo congresso.
Eu, que aprendi o que era bil de identidade no
capítulo da abertura de créditos, mal posso crer no que leio. Um presidente de
Estado que, tendo a faculdade de abrir créditos, e podendo não os abrir, pede
que lhe atem as mãos, dá mostra que é ainda mais psicólogo que presidente. É
como se dissesse que as boas Intenções do dia 15 podem não ser as mesmas do dia
I6 e 17, e o melhor é não fiar na vontade. Não sei se o caso é único; falta-me
tempo de compulsar as mensagens de ambos os mundos, mas com certeza não é comum
nem velho.
Não é velho, mas tende a ser comum o uso delicado de
concluírem os jurados as sessões, ordinárias ou extraordinárias, deixando nas
mãos do presidente e do promotor uma lembrança. A penúltima trazia como razão a
polidez dos magistrados. A última, que foi anteontem, não alegou tal motivo,
para tirar ao ato qualquer aspecto de gratidão. O presidente teve duas
estatuetas de bronze, e o promotor uma rica bengala. Não é pouco ir julgar os
pares obrigatoriamente, com perda ou sem perda dos próprios interesses; a
lembrança, porém, realça o serviço público. A prova de que a instituição do
júri está arraigada na nossa alma e costumes é essa necessidade moral que têm
os juízes de fato de se fazerem lembrados dos magistrados, a quem a sociedade
confia a punição dos delinqüentes. Resta que os magistrados, por sua vez, dêem
alguma lembrança aos cidadãos, e que estes saiam com botões de punho novos ou
carteiras de couro da ft5ssia. São prendas baratas e significativas.
CZARINA, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não
faças como Vítor Hugo, que, recebendo um folheto de Lisboa, respondeu ao autor:
Não sei português, mas com o auxílio do latim e do espanhol, vou lendo o vosso
livro.." Não, nem peço que me respondas. Manda traduzi-las na língua de
Gógol, que dizem ser tão rica e tão sonora, e em seguida lê. Verás que o beijo
que te depositou na mão, em
Cherburgo, o presidente da República Francesa, foi
aqui objeto de algum debate.
Uns acharam que, para republicano, o ato foi vilania;
outros que, para francês, foi galantaria. Uma princesa! Uma senhora! E daí uma
conversação longa em que se disseram cousas agressivas e defensivas.
Eu, pouco dado a rusgas, limitei-me a pensar comigo
que a galantaria não deve ficar sendo um costume somente das cortes. A
democracia pode muito bem acomodar-se com a graça; nem consta que Lafayette,
marquês do antigo regímen, tivesse deitado a cortesia ao mar quando foi
colaborar com Washington.
Olha, czarina, houve tempo em que nessa mesma França,
cujo chefe te beijou agora a mão, se fazia grande cabedal de tratar por tu aos
outros, para continuar Robespierre e os seus terríveis companheiros.
Então um poeta falou em verso, como é uso deles, e
concluiu por este, que faz casar a política e as maneiras: Appellons-nous
MONSIEUR et soyons CITOYEN. Nós, para não ir mais longe, fizemos a república,
sem deportar a excelência das câmaras. Era costume antigo, não do regímen
deposto, mas da sociedade. A excelência veio da mãe-pátria, onde parece que se
generalizou ainda mais, não se tratando lá ninguém por outra maneira. Aqui,
quando ainda não há familiaridade bastante para o tu e o você, e já a
excelência é demasiado cerimoniosa, ficamos no senhor é um modo indireto; em
Portugal, nos casos, apertados, empregam o amigo, que é ainda indireto. Tudo
para fugir aos vós dos nossos maiores, e que entre nós é a fórmula oficial da
correspondência escrita. Em verdade, se o regimento das nossas câmaras tivesse
obrigado o tratamento de vós na tribuna, como na correspondência oficial, antes
de infringirmos o regimento, teríamos infringido a gramática. É duro de meter
na oração a flexão vos do pronome. Tenho visto casos em que a pessoa para
desfazer-se logo dela. começa por ela: Vos declaro, Vos comunico. Vos peço, Nem
é por outra razão, czarina, que eu te trato por tu, como se faz em poesia.
Voltando ao beijo, admito que há cousas que só podem
ser bem entendidas no próprio lugar. Julgadas de longe levam muita vez ao erro.
Tu, por exemplo, se lesses a moção da Câmara Municipal do Rio Claro, S. Paulo,
protestando contra o presidente do Estado, que não a recebeu quando ela ali foi
ver a mãe enferma, pode se: que a entendesses mal. A moção aceitou o ato como
uma injúria ofensiva e direta ao município, ao povo, a todo o partido
republicano, e mandou publicar o protesto e comunicá-lo por cópia a todas as
câmaras municipais do Estado, ao presidente da República, aos presidentes dos
congressos federal e estadual e ao diretório central do partido.
Aparentemente é uma tempestade num copo d'água; mas a
moção alega que há da parte do presidente contra o município sentimento de
hostilidade já muitas vezes manifestado. Assim sendo, explica-se a
recusa do presidente em recebê-la, mas não se explica
o ato da Câmara em visitá-lo. Não se devem fazer visitas a desafetos; o menos
que acontece é não achá-los em casa. Quando, porém, a Câmara, esquecendo
ressentimentos legítimos, quisesse levar o ramo de oliveira ao chefe do Estado,
em benefício comum, se esse não aceitasse as pazes, o melhor seria calar e
sair. A divulgação do caso à cidade e ao mundo e a ameaça de pronta repulsa faz
recear um estado de guerra, quando todos os municípios desejam concórdia a
sossego. Há já tantas questões graves sem contar econômica e a financeira, que
a questão do Rio Claro
bem podia não ter nascido, ou ficar no "tapete da
discussão" como se usa no parlamento.
Disse que entenderias mal a moção; emendo-me, não
entenderias absolutamente, pois nunca jamais uma câmara municipal russa falaria
daquele modo. A Câmara da Rio Claro, se fosse moscovita, ou voltaria a visitar
o czar, quando ele estivesse em casa, ou far-se-ia niilista. Donde podes
concluir a vantagem das moções, e a razão do uso imoderado que fazemos delas: é
uma válvula. Enquanto a gente propõe moções não trama conspirações, e estas
duas palavras que rimam no papel não rimam na política.
O que é curioso é que nós, que não fazemos política,
estejamos ocupados, eu em falar dela, tu em ouvi-la.
O melhor é acabar e dizer-te adeus. Adeus, czarina; se
cá vieres um dia de visita, pode ser que não aches as ruas limpas, mas os
corações estarão limpíssimos. O presidente da República, se não for algum dos
que censuraram agora o Sr. Faure, beijar-te-á a mão, sem perder o aprumo da
liberdade. A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico oferecer-te-á um bond
especial para percorreres as suas linhas, com as tuas damas e escudeiros Esta
companhia completou anteontem, vinte e oito anos de existência. Ainda me
recordo da experiência dos carros na véspera da inauguração. Ninguém vira nunca
semelhantes veículos.
Toda gente correu a eles, e a linha, aberta até o
Largo do Machado, continuou apressadamente aos seus limites. Nos primeiros dias
os carros eram fechados; apareceram abertos para os fumantes, mas dentro de
pouco estavam estes sós em campo; as senhoras preferiram ir entre Doischarutos,
a ir cara a cara com pessoas que não fumassem. Outras companhias vieram a
servir outros bairros. Ônibus e diligências foram aposentados nas cocheiras e
vendidos para o fogo. Que mudança em vinte e oito anos!
Uma cousa não entenderás, ainda que a transfiram à
língua de GógoI, são os Dois avisos postos pela Companhia do Jardim Botânico em
um ou mais dos seus carros. Também eu vão as entendi logo; mas, por obtuso que
um homem seja, desde que teime, decifra as mais escuras charadas deste mundo.
Por que não sucederá o mesmo a uma senhora? Manda traduzir já e vê.
O primeiro aviso é este: A assinatura evita o engano
nos trocos. Compreende-se logo que a assinatura é a dos bilhetes de passagem.
Quer dizer que, comprando-se uma coleção de bilhetes, em vez de pagar com
dinheiro cada vez que se entra no carro, não se perde nada nos trocos que dão
aos condutores; logo, os condutores ou despedi-los, como se faz nas casas
comerciais e nos bancos, é vender coleções de bilhetes impressos. Nem se tira o
pão a distraídos, nem se alivia o triste passageiro de uma parte do bilhete de
dez ou mais tostões.
O segundo aviso é uma pequena alteração do primeiro, e
diz assim: A assinatura evita o esquecimento nos trocos. Se aqui vem
esquecimento em vez de engano, é que o passageiro em muitos casos perde o
dinheiro, não já em parte, mas totalmente, por aquela outra causa mais grave.
Não só o esquecimento é provável, mas até pode ser certo e constante, se o
condutor padecer de moléstia que oblitere a memória, e não há meio de evitar
que este fique com o resto do dinheiro senão oferecendo a companhia os seus
bilhetes de assinatura. Outrossim, o passageiro passa a ser o melhor fiscal da
companhia, e o seu é que deixa de ficar, por engano ou esquecimento, na
algibeira do condutor. Tais me parecem ser os Dois avisos; mas, se me disserem
que eles contêm uma profecia relativa aos destinos da Turquia, não recuso a
explicação. Tudo é possível em matéria de epigrafia. Adeus, czarina!
"UMA GERAÇÃO passa, outra geração lhe sucede, mas
a terra permanece firme." Este versículo do Eclesiastes é uma grande lição
da vida, e não digo a maior, porque há mais três ou quatro igualmente grandes.
Mas não haverá poesia nem língua que não tenha dito por modo particular esse
pensamento final do mundo. Shelley exprimiu apenas metade
dele naqueles Dois versos:
Man's
yesterday may ne'er be like his morrow;
Nought
may endure but Mutability.
Quem nos dá a mais viva imagem do contraste entre a
mocidade dos homens no meio da imutabilidade da natureza é Chateaubriand.
Lembrai-vos do Itinerário; recordai aquelas cegonhas que ele viu irem do Ilisso
às ribas africanas. Também eu vi as cegonhas da Hélade, e peço me desculpeis
esta erupção poética; nem tudo há de ser prosa na vida, alguma vez é bom mirar
as cousas que ficam e perduram entre as que passam rápidas e leves... Creio que
até me escapou aí um verso: "entre as que passam rápidas e leves..."
A boa regra da prosa manda tirar a essa frase a forma métrica, mas seria perder
tempo e encurtar o escrito; vá como saiu, e passemos adiante.
Era no arrabalde em que residia. Bastava a presença do
Corcovado para cortejar a firmeza da terra com a mobilidade dos homens, a
circunstância de estar na vizinhança daquele pico a habitação do Sr. presidente
da República, operado e enfermo, passando as rédeas do governo ao Sr.
vice-presidente, que pouco mais distante mora, trazia uma comparação fácil, mas
não menos triste que fácil. Duro é pensar nos padecimentos de um homem. Já
falei no grão de areia de Cromwell, a propósito do cálculo que alterou, não a
situação política, mas a parte principal do governo. Não repetirei aqui a ideia;
melhor é deixar ao Sr. Barão de Pedro Afonso explicar à Cidade do Rio as razões
que o levaram a dizer que a cura estaria acabada em quinze dias, não o tendo
cumprido por força de causas aliás preexistentes. O pior de tudo, para quem
está cá embaixo, é este não poder sofrer calado e oculto, adoecer em
particular, lutar com o mal e vencê-lo fora do circo e longe da platéia. A
platéia romana fazia sinal com o dedo quando queria a morte da vítima. Aqui
ninguém quer a morte do presidente, fique um tanto logrado, com a suspensão dos
boletins. A Rua do Ouvidor, se não tem notícias, cai nos boatos.
Mas vamos ao meu ponto. Era no arrabalde em que moro.
Pensava eu naquela limonada purgativa que uma pessoa bebeu, há dias, e ia
morrendo se a bebe toda por não ser mais que puro iodo. O rótulo da garrafa
dava uma droga por outra. Do engano do boticário ia resultando mais um hóspede
no cemitério, se a doente não recusa o medicamento, logo que lhe sentiu o gosto;
ainda assim bebeu alguma porção que a fez padecer um tanto. A lembrança do caso
entrou a passear-me no cérebro, único cérebro talvez em que já existisse, tão
rápido passa tudo nesta vida, e tanto me custa a deixar uma ideia por outra.
Então refleti, e adverti que o descuido do boticário não teve mais processo, e
posto que dos descuidos comam os escrivães, nenhum escrivão comeu deste. Tudo
passou, a limonada, o iodo e a memória.
E vieram outras lembranças análogas, vagas sombras,
que para logo se iam desfazendo. Uma delas foi aquele outro descuido que levou
Para a cova um pobre-diabo, não sei se adulto, se infante. A troca dos remédios
não foi obra de propósito, mas de erro, talvez de ignorância. Não foi ação de
alfaiate, ourives ou marítimo, mas de boticário também, com a diferença que uns
dizem ser o próprio dono da casa, outros um seu representante. A vítima
expirou. Deus recebeu a sua alma. O acidente deu o que falar e escrever,
e os adjetivos vadios apareceram contra o pobre autor
do involuntário descuido; mas adjetivos não são agentes de polícia, e enquanto
um homem ouve a palavrada do prelo não escuta as chaves no ferrolho da
detenção. O descuidado acabaria solto, se tivesse de acabar; os escrivães não
comeram desse primeiro descuido. Poucos dias depois creio que continuou a
vender as suas drogas, e a prova de que não houve propósito, e quando muito
desazo é que ninguém mais morreu, pelo menos até ontem.
Essa lembrança desapareceu como as primeiras. Gerações
delas iam assim vindo como as do texto bíblico, umas atrás de outras,
esquecidas, apagadas, mortas. Nem eram só as dos remédios trocados; as dos
desfalques tinham igual destino. Quatro, cinco, seis mil contos desapareceram,
como ilusões da mocidade como opiniões de ano velho. Quem sabe já deles? Há
quem cite algum, raro, ou para comparação, ou por qualquer necessidade de
fundamento, não com ideias de processo. Os desfalques são como os amores
enganados; doem muito, mas os tempos acabam de os enganar e enterrar, e, quando
menos se espera, o desfalcado reza por alma do outro, se o outro morre. Se não
morre, não o mata, nem lhe tira a liberdade, que é a primeiro dos bens da terra
e a melhor base das sociedades políticas. Se. além de vivo, o outro gosta de
dançar, dança; - ou joga, se lhe sabe o jogo, que tanto pode ser de cartas como
de prendas.
Todas essas sombras, desfalques grandes e pequenos,
públicos ou particulares, e trocas de remédios, e doenças e mortes filhas
dessas trocas, todas essas sombras impunes iam e vinham, e eu não podia com os
olhos (quanto mais com as mãos!) agarrá-las, fixá-las, sentá-las diante de mim.
Como Goethe, dedicando o Fausto, perguntava-lhes se me rodeavam ainda uma vez,
e elas iam mais vagas que as do poeta, iam-se para não voltar mais; todas
esquecidas.
Eram as gerações que passavam. Gerações novas
sucederão a essas, para se irem também, e dar lugar a mais e mais e mais, que
cederão todas à mesma lei do esquecimento, desfalques e remédios. Onde está a
terra firme?
Quando eu fazia esta pergunta e quase respondia
Lao-Tsé, contemporâneo de Confúncio, de quem o Jornal do Comércio publicou há
dias algumas verdades verdadeiras, eis que ouço o grito na rua, um pregão, uma
voz esganiçada; era a terra firme, eram as cegonhas de Chateaubriand: "Um
de resto! Anda hoje! Duzentos contos!" Homens e leis têm vida limitada, -
eles por necessidade física, - elas por necessidades morais e políticas; mas a
loteria é eterna. A Loteria é a própria Fortuna e a Fortuna é a deusa que não
conhece incrédulos nem renegados. A cidade fala de umas cousas que esquece,
crimes públicos, crimes particulares; mas loteria não é crime particular nem
público! Um de resto! Anda hoje! duzentos contos!
A NATUREZA tem segredos grandes e inopináveis. Não me
refiro especialmente ao de anteontem, no Cassino Fluminense, onde algumas
senhoras e homens de sociedade nos deram ópera, comédia e pantomima, com tal
propriedade, graça e talento, que encantaram o salão repleto. Não é a primeira
vez que a comissão do Coração de Jesus ajunta ali a flor da cidade. Aos
esforços das senhoras que a compõem correspondem os convidados, - e desta vez
apesar do tempo, que era execrável, - e aos convidados, em cujo número se
contava agora o Sr. vice-presidente da República, corresponderam os que se
incumbiram de dizer, cantar ou gesticular alguma cousa. Outros contarão por
menor e por nomes o que fizeram os improvisados artistas. A mim nem me cabe
esta nota de passagem, em verdade menos viva que a do meu espírito; mas, pois
que saiu, aí fica.
Não o inopinável e grande da natureza a que quero me
referir, é outro. Um dos maiores sabe-se que é o suicídio. que nos parece
absurdo, quando a vida é a necessidade comum; mas, considerando que é a mesma
vida que leva o homem a eliminá-la, - propter vitam, - tudo afinal se explica
na pessoa que pega em si, e dá um talho, bebe uma droga ou se deita de alto a
baixo na rua ou no mar. As crianças pareciam isentas dessa vertigem; mas há
ainda poucas semanas deram, os jornais notícia de uma criaturinha de doze anos
que acabou com a existência, - uns dizem que por pancadas recebidas, outros que
por nada.
Tivemos agora um caso mais particular: um fazendeiro
rio-grandense deu um tiro na cabeça e desapareceu do número dos vivos. O
telegrama nota que era homem de idade, - o que exclui qualquer paixão amorosa,
conquanto as cãs não sejam inimigas das moças; podem ser invejosas, mas inveja
não é inimizade. E há vários modos de amar as moças, - o modo conjuntivo e o modo
extático; ora, o segundo é de todas as fases deste mundo. Além de idoso, o
suicida era rico, isto é, aquele bem que a sabedoria filosófica reputa o
segundo da terra , ele o possuía em grau bastante para não padecer nos últimos
da vida, ou antes para vivê-los à farta, entre os confortos do corpo e da boca.
Não tinha moléstia alguma; nenhuma paixão política o atormentava. Qual a causa
então do suicídio?
A causa foi a convicção que esse homem tinha de ser
pobre. O telegrama chama-lhe mania, eu digo convicção. Qualquer, porém, que
seja o nome, a verdade é que o fazendeiro rio-grandense, largamente
proprietário, acreditava ser pobre, e daí o terror natural que traz a pobreza a
uma pessoa que trabalhou por ser rica, viu chegar o dinheiro, crescer,
multiplicar-se, e por fim começou a vê-lo desaparecer aos poucos, a mais e mais
depressa, e totalmente. Note-se bem que não foi a ambição de possuir mais
dinheiro que o levou à morte, - razão de si misteriosa, mas menos que a outra;
foi a convicção de não ter nada.
Não abaneis a cabeça. A vossa incredulidade vem de que
a fazenda do homem, os seus cavalos, as suas bolivianas, as suas letras e
apólices valiam realmente o que querem, que valham; mas não fostes vás que vos
matasse, foi ele e nada disso era vossa, mas do suicida. As causas têm o valor
do aspecto, e o aspecto depende da retina. Ora, a retina daquele homem achou
que os bens tão invejados de outros eram cousa nenhuma, e prevendo o pão
alheio, a cama da rua, o travesseiro de pedra ou de lado, preferi ir buscar a
outros climas melhor vida ou nenhuma, segundo a fé que tivesse.
O avesso deste caso é bem conhecido naquele cidadão de
Atenas que não tinha nem possuía uma dracma, um pobre-diabo convencido de que
todos os navios que entravam no Pireu eram dele; não precisou mais para ser
feliz. Ia ao porto, mirava os navios e não podia conter o júbilo que traz uma
riqueza tão extraordinária. Todos os navios! Todos os navios eram seus! Não se
lhe escureciam os olhas e todavia
mal podia suportar a vista de tantas propriedades.
Nenhum navio estranho; nenhum que se pudesse dizer de algum rico negociante
ateniense. Esse opulento de barcos e ilusões comia de empréstimo ou de favor;
mas não tinha tempo para distinguir entre o que lhe dava uma esmola e o seu
criado. Daí veio que chegou ao fim da vida e morreu naturalmente e
orgulhosamente.
Os Dois casos, por avessos que pareçam um ao outro,
são o mesmo e único. A ilusão matou um, a ilusão conservou o outro; no fundo,
há só a convicção que ordena os atos. Assim é que um pobretão, crendo ser rico,
não padece miséria alguma, e um opulento, crendo ser pobre, dá cabo da vida
para fugir à mendicidade. Tudo é reflexo da consciência.
Não mofeis de mim, se achais aí um ar de sermão ou
filosofia. O meu fim não é só contar os atos ou comentá-Ios; onde houver uma
lição útil é meu gosto e dever tirá-la a divulgá-la como um presente aos
leitores: é o que faço aqui. A lição que eu tirar pode ter a existência do
cavalo do pampa ou a do navio do Peru: toda a questão é que valha por uma
realidade, aos olhos do fazendeiro do sul e do cidadão de Atenas.
A lição é que não peçais nunca dinheiro grosso aos
deuses, senão com a cláusula expressa de saber que é dinheiro grosso. Sem ela,
os bens são menos que as flores de um dia. Tudo vale pela consciência. Nós não
temos outra prova do mundo que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em
nós: é a filosofia verdadeira. Todo Rothschild and Sons, nossos credores,
valeriam menos que os nossos criados, se não possuíssem a certeza luminosa de
que são muito ricos. Wanderbilt seria nada; Jay Gould um triste cocheiro de
tílburi sem possuir sequer o carro nem o cavalo, a não ser a convicção dos seus
bens.
Passai das riquezas materiais às intelectuais: é a
mesma cousa. Se o mestre-escola da tua rua imaginar que não sabe vernáculo nem
latim, em vão lhe provarás que ele escreve como Vieira ou Cícero, ele perderá
as noites e os sonos em cima dos livros, comerá as unhas em vez de pão,
encanecerá ou encalvecerá, e morrerá sem crer que mal distingue o verbo do
advérbio. Ao contrário, se o teu copeiro acreditar que escreveu os Lusíadas,
Ierá com orgulho (se souber ler) as estâncias do poeta; repeti-las-á de cor,
interrogará a teu rosto, os teus gestos, as tuas meias palavras, ficará por
horas diante dos mostradores mirando os exemplares do poema exposto. Só meterá
em processo os editores se não supuser que ele é o próprio Camões: tendo essa
persuasão, não fará mais que ler aquele nome tão bem visto de todos, abençoá-lo
em si mesmo; ouvi-lo aos outros, acordado e dormindo.
Que diferença achais entre o mestre-escola e seu
copeiro? Consciência pura. Os frívolos, os crentes de que a verdade é o que
todos aceitam, dirão que é mania de ambos, como o telegrama mandou dizer do
fazendeiro do Sul como os antigos diriam do cidadão de Atenas. A verdade,
porém, é o que deveis saber, uma impressão interior. O povo, que diz as cousas
por modo simples e expressivo, inventou aquele adágio: Quem o feio ama, bonito
lhe parece. Logo, qual é a verdade estética? É a que ele vê, não a que lhe demonstrais.
A conclusão é que o que parece desmentir a natureza da parte de um homem que se
elimina por supor que empobreceu, não é mais que a sua própria confirmação. Já
não possuía nada o suicida. A contabilidade interior usa regras às vezes
diversas da exterior, diversas e contrárias. 20 com 20 podem somar 40, mas
também podem somar 5 ou 3, e até 1, por mais absurdo que este total pareça; a
alma é que é tudo, amigo meu, e não é Bezout que faz a verdade das verdades.
Assim, e pela última vez, repito que vos não limiteis a pedir bens simples, mas
também a consciência deles. Se eles não puderem vir, venha ao menos a
consciência. Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa.
GUITARRA FIM DE SÉCULO
Gastilbeza, l'homme à la carabine, chatait ainsi.
V. HUGO
ABDUL-HAMID, padixá da Turquia
Servo de Alá,
Ao relembrar com outrora gemia
Gastibelzá
Soltou a voz solitária e plangente
Cantando assim: -
"Verei morrer esse eterno doente?
Penso que sim.
"Ó meu harém! ó sagradas mesquitas
Meu céu azul!
Terra de tantas mulheres bonitas,
Minha Istambul!
Ó Dardanelos! ó Bósforo! ó gente
Síria, alepim! -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ouço de um lado bradar o Evangelho,
De outro o Corão,
Ambos à força daquele ódio velho,
Velha paixão.
E sinto em risco o meu trono luzente,
Todo cetim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Gladstone, certo feroz paladino,
Cristão e inglês,
Em discurso chamou-me assassino,
Há mais de um mês;
Ninguém puniu esse dito insolente
De tal mastim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Chamou-me ainda não sei se maluco,
Ele que já
Vai pela idade de mole e caduco,
Velho paxá,
Ele que quis rebelar toda a gente
Da verde Erim.-
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ah! se eu, em vez de gostar da sultana
E outra hanuns,
Trocar quisesse esta Porta Otomana
Pelos comuns,
Dar-me-iam, dizem, o trato excelente
Que dão ao chim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Querem que faça reformas no império,
Voto, eleição,
Que inda mas alto que o nosso mistério
Ponha o cristão,
Que de à cruz o papel do crescente,
Como em Dublim.-
Verei morrer esse eterno doente?
Penso que sim.
"Que tempo aquele em que bons aliados
Bretão, francês,
Defender vinham dos golpes danados
O nosso fez!
Então a velha questão do Oriente
Tinha outro fim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Então a gente da ruiva Moscóvia,
Imperiais
Da Bessarábia, Sibéria, Varsóvia,
Odessa e o mais,
Não conseguiam meter o seu doente
No meu capim
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Hoje meditam levar-me aos pedaços
Tudo o que sou,
Cabeça, pernas, costelas e braços,
Paris, Moscou,
A rica Londres, Viena a potente,
Roma a Berlim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Oh! Desculpai-me se nesta lamúria,
Se neste andar,
Preciso às vezes entrar na Ligúria
Para rimar.
Para rimar um mandão do ocidente
Com mandarim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Constantinopla rimar com manopla,
Bem, sim, senhor;
Porém que a dura exigência da copa
Torna uma flor
Igual erva mofina e cadente
De um mau jardim... -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Pois eu rimei Maomé com verdade,
Mas hoje, ao ver
Que nem mesquita esta velha cidade,
Sinto perder
A fé que tinha de príncipe e crente
Até o fim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Donzelas frescas, matronas gorduchas,
Com feredjehs,
Moças calçadas de lindas babuchas
Nos finos pés,
Mastigam doces com gesto indolente
No meu festim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Onde irão elas comer os confeitos
Que hora aqui têm?
Quem lhes dará esses sonos perfeitos
Do meu harém?
Onde acharão o sabor excelente
De um alfenim? -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"E eu, onde irei, se me deitam abaixo?
Onde irei eu,
Servo de Alá, sem bastão nem penacho?
Tal o judeu
Errante, irei, sem parar, tristemente,
De Ohio a Pequim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ver-me-ão à noite, com a lua ou sem lua.
Seguir atrás
Da costureira que passa na rua,
Honesta, em paz,
Pedir-lhe um beijo um beijo de amor por um tempo
De ouro ou marfim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Comerei só, sem eunucos escuros,
Em restaurant,
Talvez bebendo dos vinhos impuros
Que veda Islã;
Esposo de uma senhora somente
Assim, assim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Penso que sim. Virão logo rasgá-lo
Como urubus
Sobre o cadáver de um pobre cavalo,
Nações de truz.
Farão de cada pedaço jacente
Uma Tonquim. -
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Penso que sim; mas, pensando mais fundo,
Bem pode ser
Que ele ainda fique algum tempo no mundo;
Tudo é fazer
Com que elas briguem na festa esplendente
Antes do fim. -
Verei viver este eterno doente?
Talvez que sim."
O SENADO deixou suspensa a questão do veto do prefeito
acerca do imposto sobre companhias de teatro. Não falaria nisto se não se
tratasse de arte em que a , política não penetra, - ao menos que se veja.
Se penetra, é pelo bastidores; hora, eu sou público,
só me regulo pela sala.
Houve debates à última hora, esta semana, e debate,
não direi encarniçado, para não gastar uma palavra que lhe pode servir em caso
mais agudo... Não, eu não sou desses perdulários que, porque um homem diverge
no corte do colete, chama-lhe logo bandido; eu poupo as palavras. Digamos que o
debate foi vigoroso.
Não sei se conheceis o negócio. O que eu pude alcançar
é que havia uma lei taxando fortemente as companhias estrangeiras. Esta lei foi
revogada por outra que manda igualar as taxas das estrangeiras e das nacionais;
mas logo depois resolveu o conselho municipal que fosse cumprida uma lei
anterior à primeira... Aqui é que eu não sei bem que a lei restaurada apenas
levanta as taxas sem desigualá-las, ou se a tornam outra vez desiguais. Além de
não estar claro no debate, sucede que na publicação do discurso há o uso de
imprimir entre parêntesis a palavra lê quando o orador lê alguma cousa. Para as
pessoas que estão na galeria, é inútil trazer o que o orador leu, porque essas
ouviram tudo; ma com nem todos os contribuintes estão na galeria, (ao
contrário!) a conseqüência é que a maior parte fica sem saber o que é que leu,
e portanto sem perceber a força da argumentação, isto com prejuízo dos próprios
oradores. Por exemplo, um orador, X..., refuta a outro, Y...:
"X... E pergunto eu. Vossa Ex.ª pode
admitir que o documento de que se trata afirme o que o governo do estado alega?
Ouça Vossa Ex.ª. Aqui está o primeiro trecho, o trecho célebre. (Lê)
não há aqui o menor vestígio de afirmação...
"Y... Perdão, leia o trecho seguinte.
"X... O seguinte? Ainda menos. (Lê) não há nada
mais válido. O governador expedirá o decreto, cujo art. 4º não oferece
a menor dúvida; basta lê-lo. (Lê) depois disto, que concluir, senão que o
governador tinha o plano feito? Querem argumentar, Sr. Presidente, com o
parágrafo 7º do art. 6º; mas essa disposição é um absurdo
jurídico. Ouça a Câmara. (Lê) "Vozes: Oh! Oh!"
Não há dúvida que esse uso economiza papel de
impressão e tempo de copiar; mas eu, contribuinte e eleitor, não gosto de
economias na publicação dos debates. Uma vez que estes se imprimem é
indispensável que saiam completos para que eu os entenda. Posso ser para
preguiçoso, morar fora, e tenho direito de saber o que é que se lê nas câmaras.
Se algum membro ou ex-membro do congresso me lê, espero que providenciará de
modo que, para o ano, eu possa ler o que se ler, sem ir passar os meus dia na
galeria do congresso.
Como ia dizendo, não tenho certeza do que é a lei
municipal restaurada; mas para o que eu vou dizer é indiferente. O que deduzi
do debate é que há duas opiniões: uma que entende deverem ser as companhias
estrangeiras fortemente taxadas, ao contrário das nacionais, outra que quer a
igualdade dos impostos. A primeira funda-se na conveniência de desenvolver a
arte brasileira, animando os artistas nacionais que aqui labutam todo ano, seja
de inverno, seja de verão. A segunda, entendendo que a arte não tem pátria,
alega que as companhias estrangeiras, além de nos dar o que as outras não dão,
têm de fazer grandes despesas de transporte, pagar ordenados altos e não convém
carregar mais as respectivas taxas. Tal é o conflito que ficou suspenso.
Eu de mim creio que ambas as opiniões erram. Não erram
nos fundamentos teóricos; tanto se pode defender a universalidade da arte como
sua nacionalidade; erram no que toca aos fatos. Com efeito, é difícil, por mais
que a alma se sinta levada pelo princípio da universalidade da arte, não
hesitar quando nos falam da necessidade de defender a arte nacional; mas é
justamente este o ponto em que a visão do Conselho Municipal, do prefeito e do
Senado me parece algo perturbada.
Posto não freqüente teatros há muito tempo, sei que há
aí uma arte especial; que eu já deixei em botão.
Essa arte (salvo alguns esforços louváveis) não é
propriamente brasileira, nem estritamente francesa; é o que podemos chamar, por
um vocábulo composto, a arte franco-brasileira. A língua de que usa dizem-me
que não se pode atribuir exclusivamente a Voltaria, nem inteiramente a Alencar;
é uma língua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que
a polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e não menos doce prosódia.
Este fenômeno não é único. O teuto-brasileiro é um
produto do Sul, onde o alemão nascido no território nacional não fica bem
alemão nem bem brasileiro, mas um misto, a que lá dão aquele nome. Ignoro se a
língua daquele nosso meio patrício e inteiro colaborador é um organismo igual
ao franco-brasileiro; mas se as escolas das antigas colônias continuam a só
ensinar alemão, é provável que domine esta língua.
Nisto estou com La Palisse.
Não é pelo nascimento dos artistas que a arte
franco-brasileira existe, mas por uma combinação do Rio com Paris ou Bordéus.
Essa arte, que as finadas Mmes. Doche e D. Estela não reconheceriam por não
trazer a fisionomia particular de um ou de outro respectivos idiomas, tem a
legitimidade do acordo e da fusão nos elementos de ambas as origens. Quando
nasceu? É difícil dizer quando uma arte nasce; mas basta que haja nascido,
tenha crescido e viva. Vive, não lhe peço outra certidão.
Acode-me, entretanto, uma ideia que pode combinar
muito bem as duas correntes de opinião e satisfazer os intuitos de ambas as
partes. Essa ideia é lançar uma taxa moderada às companhias estrangeiras e
libertar de todo imposto as nacionais. Deste modo, aquelas virão trazer-nos
todos os invernos algum recado novo, e as nacionais poderão viver desabafadas
de uma imposição onerosa, por mais leve que
seja. Creio que assim se cumprirá o dever de animar as
artes, sem distinção de origens, ao mesmo tempo protegerá a arte nacional. Que
importa que, ao lado dela seja protegida a arte franco-brasileira? Esta é um
fruto local; se merece menos que a outra, não deixa de fazer algum juz à
eqüidade. Aí fica a ideia; é exeqüível. Não a dou por dinheiro, mas de graça e
a sério.
Não me arguam de prestar tanta atenção à língua de uma
arte e à meia língua de outra. Grande cousa é a língua. Aquele diplomata
venezuelano que acaba de atordoar os espíritos dos seus compatriotas pela
revelação de que o tratado celebrado com a Inglaterra, graças aos bons ofícios
dos Estados Unidos, serve ao interesse destes Dois países com perda para
Venezuela, pode não ter razão (e creio que não tenha), mas dá prova certa do
que vale a língua. Os outros Dois são ingleses, falam inglês; foi o pai que
ensinou
esta língua ao filho. Venezuela é uma das muitas
filhas e netas de Espanha que se deixaram ficar por este mundo. A língua
castelhana é rica; mas é menos falada. Se o diplomata tivesse razão, em
Caracas, que é o Rio de Janeiro de Venezuela, as companhias nacionais é que
agüentariam os maiores impostos, enquanto que as de Londres e New York
representariam sem pagar nada. Mas é um desvario, decerto; speremos outros
telegramas.
Relevem o estilo e as ideias; a minha dor de cabeça
não dá para mais.
É MINHA OPINIÃO que não se deve dizer mal de ninguém,
e ainda menos da polícia. A polícia é uma instituição necessária à ordem e à
vida de uma cidade.
Nos melhores tempos da nossa bela Guanabara, como lhe
chamam poetas, tínhamos o Vidigal e o Aragão. Esse Aragão, que eu não conheci,
vinha ainda falar aos de minha geração pela boca do sino de S. Francisco de
Paula, às 10 horas da noite, - hora de recolher, fazendo lembrar aquilo da
ópera: - Abitanti de Parigi, è ora di riposar.
Ó tempos! Tempos! Os escravos corriam para casa dos
senhores, e todo o cidadão, por mais livre que fosse, tinha obrigação de se
deixar apalpar, a ver se trazia navalha na algibeira. Era primitivo, mas
tiradas as navalhas aos malfeitores, poupava-se a vida à gente pacífica.
Não se deve dizer mal da polícia. Ela pode não ser
boa, pode não ter sagacidade, nem habilidade, nem método, nem pessoal; mas, com
tudo isso, ou sem tudo isso, é instituição necessária. Os tempos vão suprindo
as lacunas, emendando os defeitos. Para falar de nós, já começamos a perder a ideia
de uma polícia eleitoral ou de um canapé destinado a alguém que passa de um
cargo a outro e descansa um mês para tomar fôlego. O pessoal secreto é difícil
de se escolher; outra, nem sequer era secreto. Quem se não lembra daquele
famoso assassinato da Rua Uruguaiana , há anos, cujo autor fugia perseguido por
pessoas do povo que bradavam: "Pega! é secreta!" Duas lições houve
nesse acontecimento: 1o., o crime praticado pela virtude; 2o., o secreto
conhecido de toda gente. Não obstante, repito, a instituição é necessária, e
antes medíocre que nenhuma.
Agora mesmo, se nada se tem encontrado acerca da
dinamite tirada de um depósito, é porque os ladrões de dinamite não são como os
de simples lenços pendurados às portas das lojas. Estes são obrigados a furtar
de dia, à vista do dono e dos passantes, correm, são perseguidos pelo clamor
público, e afinal pegados. Eu, apesar do gosto que tenho a psicologia, ainda
não pude descobrir o móvel secreto das pessoas que perseguem neste caso a um
gatuno. É o simples impulso da virtude? É o desejo de perseguir um homem hábil
que quer escapar à lei? Mistério insondável. A virtude, é decerto, um grande e
nobre motivo, e se pudesse haver deliberação no ato, não há dúvida que ela
seria o motivo único; mas, não se pode deliberar quando alguém furta um lenço e
foge; o ato da corrida é imediato. Se os perseguidores fossem outros lojistas,
não há dúvida que, por aquele seguro mútuo natural entre pessoas interessadas,
cada um trataria de capturar e fazer punir o que defraudou o vizinho, e pode
amanhã vir defraudá-lo a ele. Mas, em geral, os perseguidores são pessoas que
nada têm com aquilo. Nenhum deles levaria nunca o lenço de ninguém; não
contesto que um outro, posto em corredor escuro e solitário, diante de um
relógio de ouro, regulando bem, longe dos homens, dificilmente sairá sem o
relógio no bolso. É, por outra maneira, o problema de Diderot. Não vades crer
que eu condeno a perseguição dos delinqüentes; ao contrário, aplaudo o espírito
de solidariedade que deve prender o cidadão à autoridade e à lei; mas não falo
em tese, falo em hipótese.
Portanto, não admira que a dinamite continue
encoberta. Há mais cousas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã
filosofia. É velho este pensamento de Hamlet; mas nem por velho perde. Eu não
peço às verdades que usem sempre cabelos brancos, todas servem, ainda que os
tragam brancos ou grisalhos.
Ora, se hás muita cousa entre o céu e a terra,
dinamite pode lá estar; é muita, convenho, mas o espaço é vasto de sobra. Como
iremos buscá-la tão alto? A polícia, - a própria polícia inglesa, que dizem ser
a melhor aparelhada, ainda não possui agentes aéreos. Ouço que há agora Dois
homens em Paris que tencionam ir em balão descobrir... o que? descobrir o pólo;
mas pólo não é dinamite, que faz voar casas e túneis de estradas de ferro. Pólo
não vive escondido; deixa-se estar à espera. Notemos que os interrogados até
agora não disseram nada que esclareça sobre o paradeiro da matéria roubada; ou
são inocentes, ou estão ligados por juramentos terríveis, a não ser que o
próprio interesse lhes tape a boca; explicação esta muito natural. Não havendo
meios de tortura, - o látego ao menos, - como fazer falar as pessoas mudas?
Mas, tudo isso me tem desviado do ponto a que queria
ir. Vamos a ele. Não se deixem levar por aparências; não cuidem que faço aqui
um noticiário criminal. A boa regra para quem empunha uma pena tratar do que
pode dar de si algum suco, - uma ideia uma descoberta, uma conclusão. Não dando
nada, não vale a pena passar papel e tinta; melhor é abrir as janelas e ouvir o
passaredo que canta no arvoredo, para rimarem juntos, e os insetos que zumbem,
o trem da linha do Corcovado que sobe e ver o sol que desce por estas montanhas
abaixo, garrido e cálido, como um rapaz de vinte anos. Grande sol, quando
esfriarás tu? em que século apagarás o facho com que andas pela escuridão do
infinito? Talvez a terra já não exista, com todas as suas cidades, policiadas
ou não.
Um amigo meu teve um roubo em casa, um cofre de jóias.
Quando, ignoro; pode ter sido agora, pode ter sido antes de 13 de maio, antes
da guerra do Paraguai, antes da guerra dos Farrapos, antes da guerra de Tróia.
Afinal, que valem datas! Suponhamos que é da ópera:
Cést à la du roi Henri,
Messieurs, que se passait ceci.
Furtadas as jóias, o meu amigo conseguiu dar com elas,
dentro do cofre, e o cofre escondido em uma chácara à espera talvez da noite
seguinte, para poder ser levado, com o grande peso que tinha. Já estava aberto,
com Dois relógios de menos. No trabalho a que ele se deu foi acompanhado por
uma praça de polícia, a fim de capturar o ladrão, se fosse achado, mas o ladrão
não apareceu.
Este meu amigo é advogado. Qualquer profano,
descoberto o cofre, levá-lo-ia para casa, dando graças a Deus por só haver
perdido os relógios. O meu amigo, antes de tudo cuidou no corpo de delito.
Fez-me lembrar aquele coronel inglês, Melvil, que ao saber dos ferimentos do
irmão da bela Colomba, admira-se de não terem ainda não terem apresentado
queixa e um magistrado. "Falara do inquérito pelo coroner e de muitas
outras cousas desconhecidas na Córsega , narra finalmente Mérimée. O meu amigo
queria por força que se fizesse corpo de delito, e foi à polícia uma vez, duas,
três, penso que quatro, mas não afirmo.
O intervalo foi sempre, mais ou menos, de duas horas;
mas não achou nunca autoridade disponível. Não era preciso ouvir que voltasse
depois; ele voltaria, ele voltou e (vede o prêmio da tenacidade!) tanto voltou
que achou uma. Então contou-lhe o caso, e acabou pedindo corpo de delito.
- Bem, responderam-lhe; vai-se fazer, mas onde está o
ferido?
A alma do meu amigo não lhe caiu ao chão, porque ele,
depois de tantas idas e vindas, já não tinha alma.
Perdeu a fala, isso sim, não soube que responder. Essa
noção tão particular do corpo de delito fez voltar ao coração todas as belas
cousas que preparara. Para ser exato, não afirmo que saísse calado; pode ser
que afinal apresentasse algumas explicações, vagas, tortas, vexadas, apenas
suspiradas, ao canto da boca.
E tornou para casa, dando mentalmente os Dois relógios
ao ladrão, para que ele não fosse para o inferno com esse pecado às costas; irá
com outros. Enfim, o meu amigo quis gratificar a praça que o acompanhou nas
pesquisas, a praça recusou, dizendo haver estado ali cumprindo a sua obrigação.
Eis aí uma boa nota policial, e não faltarão outras, como a do assalto às
tavolagens, em que nunca as mãos lhe doam.
E a conclusão? A conclusão é que nem todas as palavras
tem o mesmo eco em todas as cabeças, e há muitas noções diversas para um só e
triste vocábulo. Ergo bibamus.
LEITOR, aproveitemos esta rara ocasião que os deuses
nos deparam. Só Dois fôlegos vivos não são candidatos ao governo da cidade, tu
e eu. E ainda assim não respondo por ti; neste século de maravilhas pode dar-se
que um candidato tenha alma bastante para ler, ao café, uma coluna sensaborias,
e ir depois pleitear a palma de combate. Tudo é possível. Já se vêem ossos
através da carne; dizem que Édison medita dar vista aos cegos. É o que faz na
Bahia, sem outro instrumento mais que a sugestão, o nosso grande taumaturgo
Antônio Conselheiro.
Mas em que é que aproveitaremos esta ocasião rara? Em
dizer das letras e da poesia. Aqui temos Valentim Magalhães com o romance Flor
de Sangue; aqui temos Lúcio de Mendonça, com as Canções do Outono. Iremos votar,
decerto, tu e eu, mas há de ser depois de me haveres lido e bebido a chávena de
café. O meu título de eleitor não é dos que ficara devolutos para um cidadão
anônimo pegasse deles e os oferecesse a outros. Francamente, como é que esse
cavalheiro não viu que não se fazem distribuições tais senão a pessoas seguras,
já apalavradas, de olho fino? Em que estava pensando quando entregou os títulos
a desconhecidos que o foram denunciar? Não é que eu condene o ato. Um dos
eleitores defraudados confessou que não vota há muitos anos. Pois se não vota,
como é que admira de que lhe tirem o título? A verdadeira teoria política é que
não há eleitores, há títulos. Um eleitor que é? Um simples homem, não diverso
de outro homem que não seja eleitor; a mesma figura, os mesmos órgãos, as
mesmas necessidades, a mesma origem, o mesmo destino; às vezes, o mesmo
alfaiate; outras, a mesma dama. Que é que os faz diferentes? Esse pedaço de
papel que leva em si um pedaço de soberania. O homem pode ser banqueiro,
agricultor, operário, comerciante, advogado, médico, pode ser tudo;
eleitoralmente é como se não existisse: sem título de eleitor, não é eleitor.
Ora bem, dada a abstenção, descuido, esquecimento ou
ignorância da parte dos donos dos títulos, devem ou podem estes papéis, estes
direitos incorporados ficar como terrenos baldios, sem a cultura do voto? É
claro que não. Uma lei de desapropriação com processo sumário que tirasse o
título de eleitor remisso, três dias antes da votação, e o desse a quem mais
desse, seria a forma legal de restituir àquele papel os seus efeitos. Mas,
porque não temos uma lei dessas, devemos tratar direitos políticos, direitos
constitucionais, como se fossem o lixo das praias, o capim das calçadas ou o
palmo de pó que enche todas essas ruas, e que o vento, a carroça, o pé da besta
levantam, que entra pelos nossos pulmões, cega-nos, suja-nos, irrita-nos,
faz-nos mandar ao diabo o município e o seu governo? Não; seria quase um crime.
Portanto, o erro da pessoa que andou a oferecer
títulos alheios foi a inabilidade. Alguns querem que o cidadão induzido a votar
por outro, esteja a meio caminho de furtar um par de botas. É um erro; se o
fato de votar por outro levasse alguém ao latrocínio, esta parte estaria em
outro pé; ora, é sabido que não a pode haver mais rudimentária ou mais
decadente. Já não há testamentos falsos. Salvo algum peculato, desfalque ou
cousa assim, a maior parte dos roubos são verdadeiras misérias. Pouca audácia,
nenhuma originalidade. Talvez por isso, mal os jornais dão notícia de um delito
desses, o esquecimento absorve o criminoso. Não imprimam absolve; quem absolve
é o júri, no caso de haver processo; eu digo que o esquecimento absorve o
criminoso, no sentido de se não falar mais nisso.
Mais deixemos criminologias e venhamos aos Dois livros
da quinzena. A Flor de Sangue pode-se dizer que é o sucesso do dia. Ninguém
ignora que Valentim Magalhães é dos mais ativos espíritos da sua geração. Tem
sido jornalista, cronista, contista, crítico, poeta, e, quando preciso, orador.
Há vinte anos que escreve dispersando-se por vários gêneros, com igual ardor e
curiosidade. Quem sabe? Pode ser que a política o atraia também, e iremos vê-lo
na tribuna, como no jornalismo, em atitude de combate, que é
um dos característicos do seu estilo. Naturalmente nem
tudo o que escreveu terá o mesmo valor. Quem compõe muito e sempre, deixa
páginas somenos; mas é já grande vantagem dispor da facilidade de produção e do
gosto de produzir.
Pelo que confessa no prefácio, Valentim Magalhães
escreveu este romance para fazer uma obra de fôlego e satisfazer assim a
crítica. No fim do prefácio, referindo-se ao romance e ao poema, como as duas
principais formas literárias, conclui: "Tudo o mais, contos, odes, sonetos
teatrais são matizes, variações, gradações; motivos musicais, apenas porque as
óperas são só eles". Este juízo é por demais sumário e não é de todo
verdadeiro. Parece-me erro pôr assim tão embaixo Otelo e Tartujo. Os sonetos de
Petrarca formam uma bonita ópera. E Musset? Quantas obras de fôlego se escreveram
no seu tempo que não valem as Noites e toda a juventude de seus versos, entre
eles este, que vem ao nosso caso:
Mon verre n'est pas grand, mas je bois dans verre.
Taça pequena, mas de ouro fino cheia de vinho puro,
vinho de todas as uvas, gaulesa, espanhola, italiana e grega, com que ele se
embriagou a si e ao seu século, e aí vai embriagar o século que desponta.
Quanto às ficções em prosa, conto novela, romance, não parece justo desterrar
as de menores dimensões. Clarisse Harlowe tem um fôlego de oito volumes. Taine
crê que poucos suportam hoje esse romance. Poucos é muito: eu acho que raros.
Mas o mesmo Taine prevê que no ano 2000 ainda se lerá Partida de Gamão, uma
novelinha de trinta páginas; e, falando das outras narrativas do autor de
Cármem, todas de escasso tomo, faz esta observação verdadeira: "E que são
construídas com pedras escolhidas, não com estuque e outros materiais da
moda".
Este é o ponto. Tudo é que as obras sejam feitas com o
fôlego próprio de cada um, e com materiais que resistam. Que Valentim Magalhães
pode compor obras de maior fôlego, é certo. Na Flor de Sangue o que o
prejudicou foi querer fazer longa e depressa. A ação, cousa parasita, muita
repetida, e muita que não valia a pena trazer da vida ao livro. Quanto à
pressa, a que o autor nobremente atribui os defeitos de estilo e linguagem, é
causa ainda de outras imperfeições. A maior destas é a psicologia do Dr.
Paulino. O autor espiritualiza à vontade um homem que, a não ser sua palavra,
dá apenas a impressão do lúbrico; e não há admitir que depois da temporada de
adultério, ele se mate por supor não ser amado. Não tenho espaço para outros
lances inadmissíveis, como a ida de Corina à casa da Rua de Santo Antônio (p.
141). Os costumes não estão conservados. Já Lúcio Mendonça contestou que tal
vida fosse a da nossa sociedade. O erotismo domina mais do que se devera
esperar, ainda dado o plano do livro.
Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço
em que tenho o talento de Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma cousa do que
me parece bom e menos bom na Flor de Sangue. Que há no livro certo movimento, é
fora de dúvida; e esta qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente os
defeitos principais deste romance são dos que a vontade do autor pode corrigir
nas outras obras que nos der, e que lhe peço sejam feitas sem nenhuma ideia de
grande fôlego. Cada concepção traz virtualmente as proporções devidas; não se
porá Mm. Bovary nas cem páginas de Adolfo, nem um conto de Voltaire nos volumes
compactos de George Eliot.
Para que Valentim Magalhães veja bem a nota assaz
aguda que deu a algumas partes da Flor de Sangue, leia o prefácio de Araripe
Júnior nas Canções do Outono, comparado com o livro de Lúcio de Mendonça.
O valente crítico fala longamente do amor, e sem
biocos, pela doutrina que vai além de Mantegazza, segundo ele mesmo expõe; e
definido o poeta das Canções do Outono, fala de um ou outro toque de
sensualidade que se possa achar nos seus versos. Entretanto, é bem difícil ver
no livro de Lúcio de Mendonça cousa que se possa dizer sensual. O Ideal é o
título da primeira composição; ele amará em outras páginas com o ardor próprio
da juventude; mas as sensações são apenas indicadas. Basta lembrar que o livro
(magnificamente impresso em Coimbra) é dedicado por ele à esposa, então noiva.
Vários são os versos deste volume, de vária data e
vária inspiração. Não saem da pasta do poeta, para a luz do dia, como segredos
guardados, até agora; são recolhidos de jornais e revistas, por onde Lúcio de
Mendonça os foi deixando. O mérito não é igual em todos; a "Flor do Ipê, a
"Tapera", a "Ave-Maria", para só citar três páginas, são
melhor inspiradas e bem compostas que outras, - versos de ocasião. Há também
traduções feitas com apuro. Por que fatalidade acho aqui vertido em nossa
língua o soneto "Análise", de Richepin? Nunca pude ir com esta página
do autor de Fleurs du Mal. Essa análise da lágrima, que só deixa no crisol
água, sal, soda, muco e fosfato de cal, em que é que diminui a intensidade ou
altera a espiritualidade dos sentimentos que a produzem? É o próprio poeta que,
na Charogne, anunciando à amante que será cadáver um dia, canta as suas emoções
passadas:
Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!
Pois a lágrima é isso, é a essência divina, seja da
dor, seja do prazer, seja ainda da cólera das pobres criaturas humanas.
Felizmente, no mesmo volume o poeta nos dá a tradução do famoso soneto de
Arvers e de outras composições de mérito. Eu ainda não disse que tive o gosto
de prefaciar o primeiro volume de Lúcio de Mendonça, e não o disse, não só para
falar de mim, - que é mau costume, - mas para não dar razão aos que me argúem
de entrar pelo inverno da vida. Em verdade, esse rapaz, que eu vi balbuciar os
primeiros cantos, é hoje magistrado e alto magistrado, e o tempo não terá
andado só para ele. Mas isso mesmo me faz relembrar aquela circunstância.
Ei-nos aqui os Dois, após tantos anos, sem haver descrido a letras, e achando
nelas um pouco de descanso e um pouco de consolo. Muita cousa passou depois das
Névoas Matutinas; não passou a fé nas musas, e basta.
A IMPORTANCIA da carta que se vai ler devia excluir
qualquer outro cuidado desta semana; mas não se perde nada em retificar um
lapso. Pequeno lapso: domingo passado escrevi "autor de Fleurs du
Mal" onde devera escrever ' autor de Blasphèmes", tudo porque uma
estrofe de Baudelaire me cantava na memória para corrigir com ela o seu
patrício Richepin. Vamos agora a carta. Recebi-a anteontem de um cidadão
americano, o Rev. M. Going, que aqui chegou em agosto do ano findo e partiu a 1
ou 2 de setembro para a ilha da Trindade. - "Suspeito uma cousa",
disse-me ele. - "Que cousa?" - "Não posso dizer; se acertar,
terei feito uma grande descoberta, a maior descoberta marítima do século; se
não acertar, fica o segredo comigo." Podes imaginar agora, leitor, o
assombro com que recebi a epístola que vais ler:
Ilha da Trindade, 26 de dezembro de 1896.
Caro senhor. - Esta carta vos será entregue pelo Rev.
James Maxwell, de Nebrasca. Veio ele comigo a esta ilha, sem saber o fim que me
trouxe a ela. Pensava que o meu desejo era conhecer o valor do penhasco que os
ingleses queriam tomar ao Brasil, segundo 1he disse em Royal Hotel, 3, Rua
Clapp, uma sexta-feira. O Rev. Maxwell vos contará o assombro em que ficou e a
minha desvairada alegria quando vimos o que ele não esperava ver, o que
absolutamente ninguém pensou nem suspeitou nunca.
Senhor, esta ilha não é deserta, como se afirma; esta
ilha tem, do lado oriental, uma pequena cidade, com algumas vilas e aldeias
próximas. Eu desconfiava disto, não por a1guma razão científica ou confidência
de navegante, mas por uma intuição fundada em tradição de família. Com efeito,
é constante na minha família que um dos meus avós, aventureiro e atrevido,
deixou um dia as costas da Inglaterra, entre 1648 e 1650, em um velho barco,
com meia dúzia de tripulantes. Voltou dez anos depois", dizendo ter
descoberto um povo civilizado, bom e pacífico, em certa ilha que descreveu. Não
temos outro vestígio; mas, não sei por que razão, - creio que por inspiração de
Deus, - desconfiei que a ilha era a da Trindade.
E acertei; eis a ilha, eis o povo, eis a grande
descoberta que vai fechar com chave de ouro o nosso século de maravilhas.
As notícias atropelam-se-me debaixo da pena, de modo
que não sei por onde continue. A primeira cousa que 1he digo já é que achei a
prova da estada aqui de um Going, no século XVII. Dei com um retrato de Carlos
I, meio apagado e conservado no museu da cidade. Disseram-me que fora deixado
por um homem que residiu aqui há tempos infinitos. Ora, o meu avô citado era
grande realista e por algum tempo bateu-se contra as tropas de Cromwell. Outra
prova de que um inglês esteve aqui é a língua do povo, que
é uma mistura de latim, inglês e um idioma que o Rev.
Maxwell afirma ser púnico. Efetivamente, este povo inculca descender de uma
leva de cartagineses que saiu de Cartago antes da vitória completa dos romanos.
Uma vez entrados aqui, juraram que nenhuma relação teriam mais com povo algum
da terra, e assim se conservaram. Quando a população chegou a vinte e cinco mil
almas, fizeram uma lei reguladora dos nascimentos, para que nunca esse número
seja excedido; único modo, dizem, de se conservarem segregados da cobiça e da
inveja do universo. Não é essa a menor esquisitice desta pequena nação; outras
muitas tem, e todas serão contadas na obra que empreendi. Porquanto, meu caro
senhor, é meu intuito não ir daqui sem haver descrito os costumes e as
instituições do pequenino país que descobri, dizendo de suas origens, raça,
língua o mais que puder coligir e apurar. Talvez lhe traga dano. Não é fora de
propósito crer que a Inglaterra, sabendo que aqui esteve um inglês, há Dois
séculos, reclame a posse da ilha; mas, em tal caso, sendo Going meu parente,
reivindicarei eu a posse e vencerei por um direito anterior. De fato, todo ente
gerado, antes de vir à luz, antes de ser cidadão, é filho de sua mãe, e até
certo ponto é avo da geração futura que virtualmente traz em si. Vou escrever
neste sentido a um legista de Washington. Falei de esquisitices. Aqui está uma,
que prova ao mesmo tempo a capacidade política deste povo e a grande observação
dos seus legisladores. Refiro-me ao processo eleitoral. Assisti a uma eleição
que aqui se fez em fins de novembro. Como em toda a parte, este povo andou em
busca da verdade eleitoral. Reformou muito e sempre; esbarrava-se, porém.
diante de vícios e paixões, que as leis não podem eliminar. Vários processos
foram experimentados, todos deixados ao cabo de alguns anos. É
curioso que alguns deles coincidissem com os nossos de
um e de outro mundo. Os males não eram gerais, mas eram grandes. Havia eleições
boas e pacíficas, mas a violência, a corrupção e a fraude inutilizavam em
algumas partes as leis e os esforços leais dos governos. Votos vendidos, votos
inventados, votos destruídos, era difícil alcançar que todas as eleições fossem
puras e seguras. Para a violência havia aqui uma classe de homens, felizmente
extinta, a que chamam pela língua do país, kapangas ou kapengas. Eram esbirros
particulares, assalariados para amedrontar os e1eitores e, quando fosse
preciso, quebrar as urnas e as cabeças. As vezes quebravam só as cabeças e
metiam nas urnas maços de cédulas. Estas cédulas eram depois apuradas com as
outras, pela razão especiosa de que mais
valia atribuir a um candidato algum pequeno saldo de
votos que tirar-1he os que deveras 1he foram dados pela vontade soberana do
pais. A corrupção era menor que a fraude; mas a fraude tinha todas as formas. Enfim,
muitos eleitores, tomados de susto ou de descrença, não acudiam as urnas.
Vai então. há cinqüenta anos (os nossos aqui são
lunares) apareceu um homem de Estado, autor da lei que ainda vigora no país.
Não podeis caro senhor, conceber nada mais estranho nem também mais adequado
que essa lei: é uma obra-prima de legislação experimental. Esse homem de
Estado, por nome Trumpbal, achou dificuldades em começo, porque a reforma
proposta por ele mudava justamente o princípio do governo. Não o fez, porém,
pelo vão gosto de trocar as cousas. Trumpbal observara que este povo confia me-
nos em si que nos seus deuses; assim, em vez de colocar o direito de escolha na
vontade popular, propôs atribui-lo à Fortuna. Fez da eleição uma consulta aos
deuses. Ao cabo de Dois anos de luta, conseguiu Trumpbal a primeira vitória. -
Pois bem, disseram-lhe; decretemos uma lei provisória, segundo o vosso plano;
far-se-ão por ela duas eleições, e se não alcançar o efeito que esperais,
buscaremos outra cousa. Assim se fez; a lei dura há quarenta e oito anos. Eis
os lineamentos gerais do processo: cada candidato é obrigado a fazer-se
inscrever vinte dias antes da eleição, pelo menos, sem limitação alguma de
número. Nos dez dias anteriores a eleição, os candidatos expõem na praça
pública os seus méritos e examinam os dos seus adversários, a quem podem acusar
também, mas em termos comedidos. Ouvi um desses debates. Conquanto a língua
ainda me fosse difícil de entender, pude alcançar pelas palavras inglesas e
latinas, pela compostura dos oradores e pela fria atenção dos ouvintes, que os
oradores cumpriam escrupulosamente a lei. Notei até que, acabados os discursos,
os adversários apertavam as mãos uns dos outros, não somente com polidez, mas
com afabilidade. Não obstante, para evitar quaisquer personalidades, o
candidato não é designado pelo próprio nome, mas pelo de um bicho, que ele
mesmo escolhe no ato da inscrição. Um é águia, outro touro, outro pavão, outro
cavalo, outro borboleta, etc. Não escolhem nomes de animais imundos,
traiçoeiros, grotescos e outros, como sapo, macaco, cobra, burro; mas a lei
nada impõe a tal respeito. Nas referências que fazem uns aos outros adotaram o
costume de anexar ao nome um qualificativo honrado: o brioso Cavalo, o
magnífico Pavão, o indomável Touro, a galante Borboleta, etc., fazendo dessas
controvérsias, tão fáceis de azedar, uma verdadeira escola de educação. A
eleição é feita engenhosamente por uma máquina, um tanto parecida com a que
tive ocasião de ver no Rio de Janeiro, para sortear bilhetes de loterias. Um
magistrado preside a operação. Escrito o título do cargo em uma pedra negra,
dá-se corda a máquina, esta gira e faz aparecer o nome do eleito, composto de
grandes letras de brome. Os nomes de todos, isto é, os nomes dos animais
correspondentes tem sido postos na caixa interior da máquina, não pelo
magistrado, mas pelos próprios candidatos. Logo que o nome de um aparecer, o
dever do magistrado é proclamá-lo, mas não chega a ser ouvido, tão estrondosa é
a aclamação do povo: - "Ganhou o Pavão! ganhou o Cavalo!" Este grito,
repetido de rua em rua, chega aos últimos limites da cidade, como um incêndio,
em poucos minutos. O alvoroço é enorme, é um delírio. Homens, mulheres,
crianças, encontram-se e bradam: "Ganhou o Cavalo! ganhou o Pavão!"
Mas então os vencidos não gemem, não blasfemam, não rangem os dentes?
Não, caro senhor, e aí está a prova da intuição
política do reformador. Os cidadãos, levados pelo impulso que os faz não
descrer jamais da Fortuna, lançam apostas, grandes e pequenas, sobre os nomes
dos candidatos. Tais apostas parece que deviam agravar a dor dos vencidos, uma vez
que perdiam candidato e dinheiro; mas, em verdade, não perdem as duas cousas.
Os cidadãos fizeram disto uma espécie de perde-ganha; cada partidário aposta no
adversário, de modo que quem perde o candidato ganha o dinheiro, e quem perde o
dinheiro ganha o candidato. Assim, em vez de deixar ódios e vinganças, cada
eleição estreita mais os vínculos políticos do povo. Não sei se uma grande
cidade poderia adotar tal sistema: é duvidoso. Mas para cidades pequenas não
creio que haja nada melhor. Tem a doçura, sem a monotonia do víspora. E,
deixai-me que vo-lo diga francamente, apelando para os seus deuses, este povo,
que conserva as crenças errôneas da raça originária, pensa que são eles que o
ajudam; mas, em verdade. é a Providencia Divina E1a é que governa a terra toda
e dá luz à escuridão dos espíritos. Está em Isaías:
"Ouvi, ilhas, e atendei, povos de longe."
Está nos Salmos: "Do Senhor é a redondeza da terra e todos os seus
habitadores, porque ele a fundou sobre os mares e sobre os rios." Haveria
muito que dizer se pudesse contar outros costumes deste povo, fundamentalmente
bom e ingênuo; mas paro aqui. Conto estar de volta no Rio de Janeiro em fins de
maio ou princípios de junho. Peço-vos que auxilieis o meu amigo Rev. Maxwell;
ele vai buscar-me alguns livros e um aparelho fotográfico. Indagai dele as suas
impressões, e ouvireis a confirmação do que vos digo. Adeus, meu caro senhor;
crede-me vosso muito obediente servo - GOING.
O Rev. Maxwell confirma realmente tudo o que me diz a
carta do Rev. Going. São Dois sacerdotes; e, embora protestantes, não creio que
se liguem para rir de um homem de boa-fé. É tudo, porém, tão extraordinário
que, para o caso de ser um simples hunbug, resolvi publicar a carta. Os
entendidos dirão se é possível a descoberta.
ANTEONTEM, quando os sinos começaram a tocar a
finados, um amigo disse-me: "Um dos Dois morreu, o arcebispo ou a
papa." Não foi o papa. Aquele velhinho transparente, com perto de noventa
anos as costas, além do governo do mundo católico, continua a enterrar os seus
cardeais. Agora mesmo, por telegrama impresso ontem, sabe-se que morreu mais um
cardeal, com o qual sobem a cento e dezoito os que se tem ido da vida, enquanto
Leão XIII fica a espera da hora que ainda 1he não bateu. Outro amigo meu, que
já vira duas vezes o velho pontífice, acaba de escrever-me que o viu ainda uma
vez, em dezembro, na cerimonia da imposição do chapéu a alguns novos cardeais.
Descreve a forma da cerimonia, cheio de admiração e de fé, - uma fé sincera e
singela, flor dos seus jovens anos. Ouvira uma missa ao papa, e, posto
enfraquecido pela idade, este 1he pareceu resistir a ação do tempo.
Não sucedeu o mesmo ao digno arcebispo do Rio de
Janeiro. Posto que muito mais moço, foi mais depressa tocado pela hora da
morte. D. João era um lutador; as folhas do dia lembram ou nomeiam os livros e
opúsculos que escreveu, não contando o trabalho de jornalista, obra que
desaparece todos os dias com o sol, para recomeçar com o mesmo sol, e não
deixar nada na memória dos homens, a não ser o vago sulco de um nome, que se
apaga (para os melhores) com a segunda geração. Este homem, nado em Barcelona,
filho de um belga e de uma senhora espanhola, - creio que era espanhola, -
estava longe de crer que acabaria na sede arquiepiscopal de uma grande capital
da América. Tais são os destinos, tais os ventos que levam a vela de cada um, -
ou para a navegação costeira e obscura, ou para a descoberta remota e gloriosa.
Era um lutador. Eu confesso que a primeira e mais viva
impressão episcopal que tenho não é de homem de combate, talvez porque a hora
não era de combate. A impressão que me ficou mais funda foi a daquele D. Manuel
do Monte Rodrigues, Conde de Irajá. A boca cheia de riso, como Frei Luís de
Sousa refere de S. Bartolomeu dos Mártires, os olhos pequenos, com a pouca luz
restante, coados pelos vidros grossos dos óculos de ouro, a benção pronta, a
mão já tremula, o corpo já curvado, descia da sege episcopal, todo vestido de
paz e sossego. Uma figura daquelas, na imaginação da criança, facilmente se
liga a ideia da imortalidade. Um dia, porém, D. Manuel morreu. A terra, credor
que não perdoa, e apenas reformará algumas letras, veio pedir-lhe a restituição
do empréstimo. D. Manuel entregou-lho, aumentado dos juros de uma vida de
virtudes e trabalhos.
Veio o moço D. Pedro, e com pouco soou a hora de
combate, que foi longa e ruidosa. A parte dele não foi grande na luta; pelo
menos, não teve igual eco aos outros. Nem por isso a imagem do primeiro bispo
me ficou apagada pela do segundo, apesar do auxílio do tempo em favor de D.
Pedro.
Não era a mansidão que conservava o relevo daquele.
Nenhum lutador mais impetuoso, mais tenaz e mais capaz que D. Vital, bispo de
Olinda, e a impressão que este me deixou foi extraordinária. Vi-o uma só vez, a
porta do tribunal, no dia em que ele e o bispo do Pará tiveram de responder no
processo de desobediência.
A figura do frade, com aquela barba cerrada e negra,
os olhos vastos e plácidos, cara cheia, moça e bela, desceu da sege, não como o
velho D. Manuel, mas com um grande ar de desdém e superioridade, alguma cousa
que o faria contar como nada tudo o que se ia passar perante os homens. Sabe-se
que morreu na Europa, creio que na Itália. Há quem acredite que voluntariamente
não tornaria a cadeira de Pernambuco.
Ao seu companheiro de então, o bispo do Pará, tive
ocasião de vê-lo ainda, numa sala, familiar e grave, atraente e circunspecto,
mas já sem aquele clangor das trombetas de guerra; a campanha acabara, a
tolerância recuperara os seus direitos.
Também a luta para o arcebispo D. João não era a
mesma; não havia a crise .dos primeiros tempos em que se distinguiu. Era a luta
de todos os dias, que a imprensa católica naturalmente mantém contra princípios
e institutos que 1he são adversos, sem por isso concitar os fiéis a
desobediência e a destruição.
Leão XIII é o modelo dessa defesa do dogma sem a
agitação da guerra, tolerando o que uns chamam calamidade dos tempos, outros
conquistas do espírito civil, mas que, sendo fatos estabelecidos, não há modo
visível de os desterrar deste mundo. Quem esperará que a Igreja reconheça
nenhum outro matrimonio, além do católico? Mas quem quererá que recuse a benção
aos que se casam civilmente? Não é só o imposto que se dá a César, ou não é só
o imposto em dinheiro; é também a obediência as suas leis.
A Igreja protestará, mas viverá.
Este ponto prende com outro bispo, o do Rio Grande,
que pregou agora em uma igreja de Santa Maria da Boca do Monte contra o
casamento civil e contra os que se não confessam. Diz uma carta aqui publicada
que foi tão violento em sua linguagem que o povo que enchia a igreja veio
esperá-lo a porta e fez-1he uma demonstração de desagrado. O correspondente
chama-1he - "charivari medonho". Eu posso não entender bem nem mal a
violência do bispo; mas o que ainda menos entendo é a dos fiéis. Que foram
então os fiéis fazer ao templo onde pregava o bispo? Foram lá, porque são
fiéis, porque estão na mesma comunhão de sentimentos religiosos. Se a
tolerância lhes parecia conveniente, e a brandura necessária, era caso de
discordar do bispo e até lastimá-lo, mas pateá-lo? Que fariam então os mais
terríveis inimigos do Credo? Por que a pateada, "o charivari medonho"
é a ultima ratio do desagrado. Alguns, considerando o bastão pensarão que
aquela é só penúltima. Mas nem uma nem outra razão é própria de católicos.
Salvo se os fiéis que ouviam o bispo eram meros passeantes que entraram na
igreja como em um parque aberto, para descansar a vista e os pés. Pode
deduzir-se isto em desespero de causa; mas, francamente, não sei que pense.
Folguemos em crer que o arcebispo agora morto não daria azo a tal explosão, não
só por si, mas ainda pelo respeito em que o tinham.
A SEMANA é de mulheres. Não falo daquelas finas damas
elegantes que dançaram em Petrópolis por amor de uma obra de caridade. Para
falar delas não faltarão nunca penas excelentes. Quisera dizer penas de alguma
ave graciosa, a fim de emparelhar com a de águia que vai servir para assinar o
tratado de arbitramento entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Mas se o nome
de pena ficou ao pedacinho de metal que ora usamos, direi as damas de
Petrópolis que também haverá um coração para adornar as que escreverem delas,
como houve um para enfeitar a pena de águia diplomática. Diferem os Dois
corações em ser este de ouro, cravejado de brilhantes. E são ingleses! e são
anglo-americanos! E dizem-se homens práticos e duros! Em meio de tanta dureza e
tanta prática, lá acharam uma nesga azul de poesia, um raio de simbolismo e uma
expressão de sentimento que se confunde com a dos namorados.
Nós, que não somos práticos e temos uma nota de
meiguice no coração. tão alegres que enchemos as ruas de confetes cinco ou seis
semanas antes do carnaval, nós não proporíamos aquele coração de ouro com
brilhantes para assinar o tratado. Não é porque as nossas finanças estão antes
para o simples aço de Birmingham, mas por não cair em ternura pública, neste
fim de século, e um pouco por medo da troca.
Nós temos da seriedade uma ideia que se confunde com a
de sequidão. Ministro que em tal pensasse cuidaria ouvir, alta noite, por baixo
das janelas, ao som do violão, aqueles célebres versos de Laurindo:
Coração, por que palpitas?
Coração por que te agitas?
Os ingleses e os anglo-americanos, esses são capazes
de achar uma nota de poesia nas mulheres de soldados que se foram despedir de
seus amigos do 7º batalhão, quando este embarcou para a Bahia, quarta-feira.
Foram despedir-se a praia, como as esposas dos Lusíadas e até as fizeram
lembrar aos que não esqueceram este e os demais versos: "Qual em cabelo: ó
doce e amado esposo!" As diferenças são grandes; umas eram consortes dos
barões assinalados que saíram a romper o mar "que geração alguma não
abriu", estas cá são tristes sócias dos soldados, e não podiam ir com
eles, como de costume. Queriam acompanhá-los até a Bahia, até o sertão, até os
Canudos, onde o Major Febrônio não entrou, por motivos constantes de um
documento público. Dizem que choravam muitas; dizem que outras declaravam que
iriam em breve juntar-se a eles, tendo vivido com eles e querendo morrer com
eles. Delas não poucas os vieram acompanhando de Santa Catarina e nada
conheciam da cidade, mas bradavam com a mesma alma que buscariam meios de
chegar até onde chegasse a expedição.
Talvez tudo isso vos pareça reles e chato. Deus meu,
não são as lástimas de Dido, nem a meia dúzia de linhas da notícia podem pedir
meças aos versos do poeta. Os soldados do 7º batalhão não são Enéias; vão à
cata de um iluminado e seus fanáticos, empresa menos para glória que para
trabalhos duros. Assim é; mas é também certo, pelo que dizem as gazetas, que as
tais mulheres padeciam deveras. Ora, a dor, por mais rasteira que doa, não
perde o seu ofício de doer. Essas amigas de quartel não elevam o espírito, mas
pode ser que contriste ouvi-las, como entristece ver as feridas dos mendigos
que andam na rua ou residem nas calçadas, corredores e portas.
Entre parêntesis, não excluo do número dos mendigos
aqueles mesmos que tem carro, porquanto as suas despesas são relativamente
grandes. Há dias, alguém que lê os jornais de fio a pavio deu com um anúncio de
um homem que se oferecia para puxar carro de mendigo; donde concluía esta
senhora (é uma senhora) que há homens mais mendigos que os próprios mendigos.
Chegou ao ponto de crer que a carreira do mendigo é próspera, uma vez que a dos
seus criados é atrativa. Não vou tão longe; eu creio que antes ser diretor de
banco, - ainda de banco que não pague dividendos. Tem outro asseio, outra
compostura, outra respeitabilidade, e durante o exercício governa o mercado, ou
faz que governa, que é a mesma cousa. Pobres amigas de quartel! Não direi, para
fazer poesia, que fostes misturar as vossas lágrimas amargas com o mar, que é
também amargo; faria apenas um trocadi1ho, sem grande sentido, pois não é o sal
que dói. Também não quero notar que a aflição é a rasoura da gala e do molambo.
Não; eu sou mais humano; eu peço para vós uma esperança, - a esperança máxima,
que é o esquecimento. Se não houverdes dinheiro para embarcar, pedi ao menos o
esquecimento, e este caluniado amigo dos homens pode ser que venha sentar-se a
beira das velhas tábuas que vos servem de leito. Se ele vier, não o mandeis
embora; há casos em que ele não é preciso, e entretanto fica e faz prosperar um
sentimento novo. No nosso pode ser necessário. Enquanto o sócio perde uma perna
cumprindo o seu dever, a sócia deslembrada perde a saudade, que dói mais que
ferro no corpo, e tudo se acomoda.
Lágrimas parecem-se com féretros. Quando algum destes
passa, rico ou pobre, acompanhado ou sozinho, todos tiram o chapéu sem
interromper a conversação, que tanto pode ser da expedição dos Canudos como do
naufrágio da Laje. Por isso, descobre-te ao ver passar aquelas outras lágrimas
humildes e desesperadas que verteram as esposas e filhos dos operários que
naufragaram na fortaleza. Também estas
correram a praia, umas pelos pais, outras pelos
maridos, todas por defuntos, dos quais só alguns apareceram; a maior parte, se
não ficou ali no seio das águas, foi levada por estas, barra fora, a descoberta
de um mundo mais que velho.
Era uso dos operários irem às manhãs e tornarem às
tardes; mas o mar tem surpresas, e as suas águas não amam só as vítimas
ilustres. Também lhes servem as obscuras, sem que aliás precisem de umas nem de
outras; mas é por amor dos homens que elas os matam. Assim ficam eles avisados
a se não arriscarem mais sem grandes cautelas.
Em caso de desespero, não trabalhem. O trabalho é
honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas.
CONHECI ONTEM o que é celebridade. Estava comprando
gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de S. José, esquina do Largo
da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz
descansada :
- Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que
briga lá fora.
- Quem?
- Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem
que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me
que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler,
ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola,
muita lenda, disseram-1he que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão,
e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe
o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade,
caro e tapado leitor, é isto mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por
entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma
pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta,
à porta da estalagem, ou no quarto em que residirem.
Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova Iorque
e de Londres onde o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O
efeito é triste. mas vê se tu. leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer
baixar o menor dos nossos títulos. Habitante da cidade, podes ser conhecido de
toda a Rua
do Ouvidor e seus arrabaldes, cansar os chapéus, as
mãos, as bocas dos outros em saudações e elogios; com tudo isso, com o teu nome
nas folhas ou nas esquinas de uma rua, não chegarás ao poder daquele
homenzinho, que passeia pelo sertão uma vila, uma pequena cidade. a que só
falta uma folha. um teatro,
um clube, uma polícia e sete ou oito roletas, para
entrar nos almanaques.
Um dia, anos depois de extinta a seita e a gente dos
Canudos, Coe1ho Neto, contador de cousas do sertão, talvez nos de algum quadro
daquela vida, fazendo-se cronista imaginoso e magnífico deste episódio que não
tem nada fim-de-século. Se leste o Sertão, primeiro livro da "Coleção
Alva", que ele nos deu agora, concordarás comigo. Coelho Neto ama o
sertão, como já amou o Oriente, e tem na palheta as cores próprias - de cada
paisagem. Possui o senso da vida exterior. Dá-nos a floresta, com os seus
rumores e silêncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um caboclo que, por
menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecerão que é um caboclo.
Este livro do Sertão tem as exuberâncias do estilo do
autor, a minuciosidade das formas, das cousas e dos momentos, o numeroso rol
das características de uma cena ou de um quadro. Não se contenta com duas
pinceladas breves e fortes; o colorido é longo, vigoroso e paciente, recamado
de frases como aquela do céu quente 'donde caía uma paz cansada", e de
imagens como esta: "A vida banzeira, apenas alegrada pelo som da voz de
Felicinha, de um timbre fresco e sonoro de mocidade, derivava como um rio lodoso
e pesado de águas grossas, a beira do qual cantava uma ave jucunda." A
natureza está presente a tudo nestas páginas. Quando Cabiúna morre
("Cega", 280) e estão a fazer-1he o caixão, a noite, são as águas, é
o farfalhar das ramas fora que vem consolar os tristes de casa pela perda
daquele "esposo fecundante dasmeigas virgens, patrono humano da floragáo
dos campos, reparador dos flagelos do sol e das borrascas".
"Cega" é uma das mais aprimoradas novelas do livro. "Praga"
terá algures demasiado arrojo, mas compensa o que houver nela excessivo pela
vibração extraordinária dos quadros.
Estes não são alegres nem graciosos, mas a gente orça
ali pela natureza da praga, que é o cólera. Agora, se quereis a morte jovial,
tendes Firmo, o vaqueiro, um octogenário que "não deixa cair um verso no
chão", e morre cantando e ouvindo cantar ao som da viola. "Os
Velhos" foram dados aqui. "Tapera" saiu na Revista Brasileira.
Os costumes são rudes e simples, agora amorosos, agora
trágicos, as falas adequadas as pessoas, e as ideias não sobem da cerebração
natural do matuto. Histórias sertanejas dão acaso não sei que gosto de ir
descansar, alguns dias, da polidez encantadora e alguma vez enganadora das
cidades. Varela sabia o ritmo particular desse sentimento; Gonqalves Dias, com
andar por essas Europas fora, também o conhecia; e, para só falar de um
prosador e de um vivo, Taunay dá vontade de acompanhar o Dr. Cirino e Pereira
por aquela longa estrada que vai de Sant'Ana de Paranaíba a Camapuama, até o
leito da graciosa Nocência. Se achardes no Sertão muito sertão, lembrai-vos que
ele é infinito, e a vida ali não tem esta variedade que não nos faz ver que as
casas são as mesmas, e os homens não são outros. Os que parecem outros um dia é
que estavam escondidos em si mesmos.
Ora bem, quando acabar esta seita dos Canudos, talvez
haja nela um livro sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro
Coelho Neto, se tiver igual talento, pode dar-nos daqui a um século um capítulo
interessante, estudando o fervor dos bárbaros e a preguiça dos civilizados, que
os deixaram crescer tanto, quando era mais fácil tê-los dissolvido com uma
patrulha, desde que o simples frade não fez nada. Quem sabe? Talvez então algum
devoto, relíquia dos Canudos, celebre o centenário desta finada seita.
Para isso, basta celebrar o centenário da cabeleira do
apóstolo, como agora, pelo que diz o Jornal do Comércio, comemoraram em Londres
o centenário da invenção do chapéu alto. Chapéus e cabelos são amigos velhos.
Foi a 15 de janeiro último. Não conhecendo a história deste complemento
masculino, nada posso dizer das circunstancias em que ele apareceu no dia 15 de
janeiro de 1797. Ou foi exposto a venda naquela data, ou apontou na rua, ou
algum membro do parlamento entrou com ele no recinto dos debates, a maneira
britânica. Fosse como fosse, os ingleses celebraram esse dia histórico da
chapelaria humana. Sabeis o que Macaulay disse da morte de um rei e da morte de
um rato. Aplicando o conceito ao presente caso, direi que a concepção de um
chapeleiro no ventre de sua mãe é, em absoluto, mais interessante que a
fabricação de um chapéu; mas, hipótese haverá em que a fabricação de um chapéu
seja mais interessante que a concepção do chapeleiro. Este não passará do
chapéu comum e trabalhará para uma geração apenas; aquele será novo e ficará
para muitas gerações.
Com efeito, lá vai um século, e ainda não acabou o
chapéu alto. O chapéu baixo e o chapéu mole fazem-lhe concorrência por todos os
feitios, e, as vezes parecem vence-lo. Um fazendeiro, vindo há muitos anos a
esta capital, na semana em que certa chapelaria da Rua de S. José abriu ao
público as suas seis ou sete portas, ficou pasmado de vê-las todas, de alto a
baixo, cobertas de chapéus compridos.
Tempo depois, voltando e indo ver a casa, achou-1he as
mesmas seis ou sete portas cobertas de chapéus curtos. Cuidou que a vitória
destes era decidida, mas sabeis que se enganou. O chapéu alto durará ainda e
durará por muitas dúzias de anos. Quando ninguém já o trouxer de passeio ou de
visita, servirá nas cerimonias públicas. Eu ainda alcancei o porteiro do
Senado, nos dias de abertura e de encerramento da assembléia geral, vestindo
calção, meia e capa de seda preta, sapato raso com fivela, e espadim a cinta.
Por fim acabou o vestuário do porteiro. O mesmo
sucederá ao chapéu alto; mas por enquanto há quem celebre o seu primeiro século
de existência. Tem-se dito muito mal deste chapéu. Chamam-lhe cartola, haminé,
e não tarda canudo, para rebaixá-lo até a cabeleira hirsuta de Antônio
Conselheiro. No Carnaval, muita gente o não tolera, e os mais audazes saem a
rua de chapéu baixo, não tanto para poupar o alto, como para resguardar a
cabeça, sem a qual não há chapéu alto nem baixo.
ESTOU COM INVEJA aos argentinos. Agora que os gregos
surgem de toda parte par correr a Atenas, receber armamento e passar a Ilha de
Creta, Buenos Aires dá 200 desses patriotas que aí vão lutar contra os
otomanos. Nós, que devíamos dar 500, não damos nenhum. Certamente não os temos,
ou tão raros são eles que melhor é irem pela calada. Conheci outrora um grego.
Petrococchino, homem da praça, e conheci também a Aimée, uma francesa, que em
nossa língua se traduzia por amada, tanto nos dicionários como nos corações.
Era uma criaturinha do finado Alcazar, que nenhuma Turquia defendeu da Hélade.
Ao contrário, os turcos fugiram e a bandeira helênica se desfraldou na Creta da
Rua Uruguaiana... E daí é possível que nem mesmo este Petrococchino fosse
grego.
Notório, como ele era, não os temos agora. Na lista da
polícia, aparecem as vezes nomes de gregos, como de turcos, mas a gente que
cultiva a planta noturna pode adorar a cruz e o crescente, não se bate por ele
nem por ela. Eu quisera, entretanto, ver. partir daqui, Rua do Ouvidor abaixo,
uma falange bradando para ser entendida da terra os versos de Hugo: En Grece!
Lembras-te, não? Se és do meu tempo não esqueceste que tu e eu, quando
expeitorávamos os primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as Orientais
contavam já trinta anos e mais. Mas era por elas que ainda aprendíamos poesia.
Trazíamos de
cor as páginas contemporâneas da revolução helênica, e
do bravo Canáris, queimador de navios, e da batalha de Navarino, e da marcha
turca, e de toda aquela ressurreição de um país meio antigo, meio cristão. En
Grece! cantava o poeta, pedindo que 1he selassem o cavalo e 1he dessem a
espada, que queria partir já, já, contra os turcos; mas a lira mudava
subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo quem era ele. Confessava
então não haver mais que uma folha que o vento leva, nem amar outra cousa mais
que as estrelas e a lua. Tão pouca cousa não era nos demais versos em que
cantava os heróis gregos, mas Hugo lembrava-se de Byron...
Com efeito, Byron armando-se para ir ao encontro do
muçulmano, se teve o melancólico desfecho de 1824, nem por isso perdeu o bri1hante
arranco de 1823; era preciso fazer cousa idêntica ou análoga. Não se podia
convidar a bater os turcos sem ir pelo mesmo caminho. Um poeta lírico tinha de
ser efetivamente épico. E vede bem este grande homem, que ainda ontem Olavo
Bilac evocava aqui, naquela prosa sugestiva que lhe conheceis, vede bem que não
estava aborrecido nem cansado: acabava de escrever os últimos cantos de Don
Juan, e não sorvera ainda os últimos beijos da Guiccioli. Para levar alguma
parte desta para a Grécia, levou-lhe o irmão, cunhado in partibus infidelium, e
meteu-se em navio que fretou, com um médico e remédios para mil homens durante
um ano. Na Grécia organizou e equipou umas centenas de soldados e pôs-se a
testa deles. Nem todos poderiam fazer as cousas por este estilo manhoso. Era,
ao mesmo tempo que um ato heróico, uma aventura poética, um apêndice do Child
Harold. A febre não quis que ele perecesse na ponta de uma adaga otomana.
Missolonghi avisou assim aos demais poetas que não saíssem a campo, em defesa
da velha Grécia remoçada, não por medo de morrer ali ou alhures, mas porque o
exemplo de Byron devia ficar com Byron. O epitáfio do poeta tinha de ser único.
Ao concerto universal daquele tempo não faltaram liras
nem poetas. Cada língua teve o seu Píndaro.
Lembra-te de Lamartine; lembra-te de José Bonifácio,
cuja célebre ode clamava aos gregos, com entusiasmo: Sois helenos! sois homens!
Compara ontem com hoje. Talvez o ardor do Romantismo ajudou a incendiar as
almas. Os olhos estavam ainda mal acordados daquele vasto pesadelo imperial,
que foi também um grande sonho, campanhas de conquista e de opressão, campanhas
de liberdade, tudo feito, desfeito e refeito; a reconstituição da Grécia pedia
uma cruzada particular. Cimódoce pergunta a Eudoro: "Há também uma Vênus
crista?" Esta Vênus era agora a própria Grécia convertida, como s heroína
de Chateaubriand, e conquistada ao turco depois de muito sangue.
Que os helenos são homens é o que estás vendo agora,
quando toda a faculdade de medicina internacional cuida de alongar os dias do
"enfermo", com os seus xaropes de notas e pílulas de esquadras sem
fogo. Os ínfimos gregos não se arreceiam e, cansados de ouvir gemer Creta, lá
se foram a arrancá-la dos braços otomanos. A diplomacia é uma bela arte, uma nobre
e grande arte; o único defeito que há nas suas admiráveis teias de aranha é que
uma bala fura tudo, e ~ vontade de um povo, se algum santo entusiasmo 1he
aquece as veias, pode esfrangalhar as mais finas obras da astúcia humana. Se a
Grécia acabar vencendo, as grandes potências não terão sido mais que jogadores
de voltarete a tentos.
Que outra cousa tem sido elas, a propósito das
reformas turcas? As reformas vem, não vem, redigem-se, emendam-se, copiam-se,
propõem-se, aceitam-se, vão cumprir-se e não se cumprem. Vereis que ainda caem
como as reformas cubanas, que, depois de tanto sangue derramado, vieram pálidas
e mofinas.
Ninguém as quer, e o ferro e o fogo continuam a velha
obra. Assim se vai fazendo a história, com aparência igual ou vária, mediante a
ação de leis, que nós pensamos emendar, quando temos a fortuna de vê-las. Muita
vez não as vemos, e então imitamos Penélópe e o seu tecido, desfazendo de noite
o que fazemos de dia, enquanto outro tecelão maior, mais alto ou mais fundo e
totalmente invisível compõe os fios de outra maneira, e com tal força que não
podemos desfazer nada. Sucede que, passados tempos, o tecido esfarrapa-se e
nós, que trabalhávamos em rompe-lo, cuidados que a obra é nossa. Na verdade, a
obra é nossa, mas é porque somos os dedos do tecelão; o desenho e o pensamento
são dele, e presumindo empurrar a carroça, o animal é que a tira do atoleiro,
um animal que somos nós mesmos... Mas aí me embrulho eu. e estou quase a
perder-me em filosofias grossas e banais. Oh! banalíssimas!
Domingo próximo é possível que te explique esta
confusão da minha alma. Estou certo que me entenderás e aplaudirás. Além da
confusão da alma. imagina que me dói a testa em um só ponto escasso, no
sobrolho direito; a dor, que não precisa de extensão grande para fazer padecer
muito, contenta-se as vezes com o espaço necessário i cabeça de um alfinete.
Também esta reflexão é banal, mas tem a vantagem de acabar a crônica.
"DOMINGO próximo é possível que te explique esta
confusão da minha alma. Estou certo que me entenderás e aplaudirás." Assim
concluí eu a Semana passada. Venho cumprir aquela meia promessa.
É certo que a festa suntuosa de quarta-feira afrouxou
em parte a sensação exposta naquelas palavras. A recepção do palácio do governo
respondeu ao que se esperava do ato, e deixou impressão forte e profunda.
Aquele edifício que eu vi, há trinta anos, logo depois de acabado, passou por
várias mãos, viveu na obscuridade e na hipoteca, passou finalmente ao poder do
governo, e o ilustre Sr. Vice-presidente da República acaba de inaugurá-lo com
raro esplendor. Foi o sucesso principal da semana; mas a semana já não é minha,
como ides ver.
Leitor. Deus gastou seis dias em fazer este mundo, e
repousou no sétimo. Ora, Deus podia muito bem não repousar, mas quis deixar um
exemplo aos homens. Daí o nosso velho descanso de um dia, que os cristãos
chamaram do Senhor. Eu não sou Deus, leitor; não criei este mundo, tanto que
lhe acho algumas imperfeições, como a de nascerem as uvas verdes, para engano
das raposas. Eu as faria nascer maduras e talvez já engarrafadas. Mas criticar
obra feita não custa; Deus não podia prever que os homens não se limitassem a
falsificar eleições e fizessem o mesmo ao vinho.
Vamos ao que importa. Se Deus descansou um dia, depois
de seis dias de trabalho, Força é que eu descanse algum tempo depois de uma
obra de anos. Há cerca de cinco anos que vos digo aqui ao domingo o que me
passa pela cabeça, a propósito da semana finda, e até sem nenhum propósito.
Parece tempo de repousar o meu tanto. Que o repouso seja breve ou longo, é o
que não sei dizer; vou estirar estes membros cansados e cochilar a minha sesta.
Antes de cochilar, podia fazer um exame de consciência
e uma confissão pública, a maneira de Sarah Bernhardt ou de Santo Agostinho.
Oh! perdoa-me, santo da minha devoção, perdoa esta união do teu nome com o da
ilustre trágica; mas este século acabou por deitar todos os nomes no mesmo
cesto, misturá-los, tirá-los sem ordem e cose-los sem escolha. É um século
fatigado. As Forças que despendeu, desde princípio, em aplaudir e odiar, foram
enormes. Junta a isso as revoluções, as anexações, as dissoluções e as
invenções de toda casta, políticas e filosóficas, artísticas e literárias, até
as acrobáticas e farmacêuticas, e compreenderás que é um século esfalfado. Vive
unicamente para não desmentir os almanaques. Todos os séculos tem cem anos;
este não quer sair da velha regra, nem ser menos constante que o nosso robusto
Barbacena, seu grande rival Em 1he batendo a hora, irá com facilidade para onde
foram os séculos de Péricles e de Augusto.
O meu exame de consciência, se houvesse de faze-lo,
não imitaria Agostinho nem Sarah. Nem tanta humildade, nem tanta glória. O
grande santo dividiu, é verdade, as confissões humanas em duas ordens, uma que
é um louvor, outra que é um gemido, definindo assim as suas e as da
representante de Dona Sol.
Faz crer que não há terceira classe, em que a gente
possa louvar-se com moderação e gemer baixinho; mas eu cuido que há de haver. A
imitar uma das duas, acho que a mais difícil seria a de Sarah. Não li ainda as
confissões desta senhora, mas pela nota que nos deu dela Eça de Queirós, com
aquela graça viva e cintilante dos seus três últimos "Bilhetes
Postais", não sei como é que uma criatura possa dizer tanta cousa de si
mesma. Em particular, vá. Há pessoas que, não receando indiscretos, escancaram
os corações, e os amigos reconhecem que, por mais que se pense bem de outro,
pensa-se menos bem que ele próprio.
Mas. em público, em letra de forma, no Fígaro, que é o
Diário Oficial do universo, custa crer, mas é verdade.
Antes gemer, com esta cláusula de gemer baixinho, e
confessar os pecados, mas com discrição e cautela.
Pecados são ações, intenções ou omissões graves; não
se devem contar todas. nem integralmente, mas só a parte que menos pesa a alma
e não faz desmerecer uma pessoa no conceito dos homens. Não especifico, por não
perder tempo, e quem se despede, mal pode dizer o essencial. O essencial aqui é
dizer que não faço confissão alguma, nem do mal, nem do bem. Que mal me saiu da
pena ou do coração? Fui antes pio e eqüitativo que rigoroso e injusto. Cheguei
a elegia e a lágrima, e se não bebi todos os Cambarás e Jataís deste mundo, é
porque espero encontrá-los no outro, onde já nos aguardam os xaropes do Bosque
e de outras partes. Lá irá ter o grande Kneipp, e anos depois o kneippismo.
pela regra de que primeiro morrem os autores que as invenções. Há mais de um
exemplo na filosofia e na farmácia.
Não tireis da última frase a conclusão de cepticismo.
Não achareis linha céptica nestas minhas conversações dominicais. Se destes com
alguma que se possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao
cepticismo. Achar que uma cousa é ruim, não é duvidar deles, mas afirmá-la. O
verdadeiro, céptico não crê, como o Dr. Pangloss. que os narizes se fizeram
para os óculos, nem, como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes; o
céptico verdadeiro descrê de uns e de outros. Que economia de vidros e de
defluxos, se eu pudesse ter esta opinião!
Adeus, leitor. Força é deitar aqui o ponto final. A
mim, se não fora a conveniência de ir para s rede, custar-me-ia muito pinear o
dito ponto, pelas saudades que levo de ti. Não há nada como falar a uma pessoa
que não interrompe. Diz-se-lhe tudo o que se auer, o ctue va1e e o que não
vale, repetem-se-1he as cousas e os modos, as frases e as ideias,
contradizem-se-lhe as opiniões, e a pessoa que lê, não interrompe. Pode lançar
a folha para o lado ou acabar dormindo. Quem escreve não vê o gesto nem o sono,
segue caminho e acaba. Verdade é que, neste momento, adivinho uma reflexão tua.
Estás a pensar que o melhor modo de sair de uma obrigação destas não difere do
de deixar um baile, que é descer ao vestiário, enfiar o sobretudo e sumir-se no
carro ou na escuridão. Isto de empregar tanto discurso .faz crer que se
presumem saudades nos outros, além de ser fora da etiqueta. Tens razão, leitor;
e, se fosse tempo de rasgar esta papelada e escrever diversamente, crê que o
faria; mas é tarde, muito tarde. Demais, a frase final da outra semana
precisava de ser explicada e cumprida; daí todos estes suspiros e curvaturas.
Falei então na confusão da minha alma, e devia dizer em que é que ela consistia
e consiste, e cuja era a causa.
A causa está dita; é a natural melancolia da
separação. Adeus, amigo, até a vista. Ou, se queres um jeito de falar mais
nosso, até um dia. Creio que me entendeste, e creio também que me aplaudes,
como te anunciei na semana passada. Adeus!
ENTRE TAIS e tão tristes casos da semana, como o
terremoto de Venezuela, a queda do Banco Rural e a morte do sineiro da Glória,
o que mais me comoveu foi o do sineiro.
Conheci Dois sineiros na minha infância, aliás três, -
o Sineiro de S. Paulo, drama que se representava no Teatro S. Pedro, - o
sineiro da Notre Dame de Paris, aquele que fazia um só corpo, ele e o sino, e
voavam juntos em plena Idade Média, e um terceiro, que não digo, por ser caso
particular. A este, quando tornei a vê, era caduco. Ora, o da Glória, parece
ter lançado a barra adiante de todos.
Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da
Glória, mas estava longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as
falas. Um dia cheguei a crer que andasse nisso eletricidade. Esta força
misteriosa há de acabar por entrar na igreja e já entrou, creio eu, em forma de
luz. O gás também já ali se estabeleceu. A igreja é que vai abrindo a porta as
novidades, desde que a abriu a cantora de sociedade ou de teatro, para dar aos
solos a voz de soprano, quando nós a tínhamos trazida por D. João VI, sem
despir-1he as calças. Conheci uma dessas vozes, pessoa velha, pálida e
desbarbada; cantando, parecia moça.
O sineiro da Glória é que não era moço. Era um
escravo, doaau em 1853 aquela igreja, com a condição de a servir Dois anos. Os Dois
anos acabaram em 1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o ofício.
Contem bem os anos, quarenta e cinco, quase meio
século, durante os quais este homem governou uma torre. A torre era dele, dali
regia a paróquia e contemplava o mundo.
Em vão passavam as gerações, ele não passava.
Chamava-se João. : Noivos casavam, ele repicava as bodas; crianças nasciam, ele
repicava ao batizado; pais e mães morriam, ele dobrava aos funerais.
Acompanhou a história da cidade. Veio a febre amarela,
o cólera-mórbus, e João dobrando. Os partidos subiam ou caíam, João dobrava ou
- repicava, sem saber deles. Um dia começou a guerra do Paraguai, e durou cinco
anos; João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas
vitórias. Quando se decretou o ventre livre das escravas, João é que repicou.
Quando se fez a abolição completa, quem repicou foi João. Um dia proclamou-se a
República, João repicou por ela, e repicaria pelo Império, se o Império
tornasse.
Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o
ofício. João não sabia de mortos nem de vivos; a sua obrigação de 1853 era
servir a Glória, tocando os sinos, e tocar os sinos, para servir a Glória,
alegremente ou tristemente, conforme a ordem. Pode ser até que, na maioria dos
casos, só viesse a saber do acontecimento depois do dobre ou do repique.
Pois foi esse homem que morreu esta semana, com
oitenta anos de idade. O menos que 1he podiam dar era um dobre de finados, mas
deram-1he mais; a Irmandade do Sacramento foi buscá-lo a casa do vigário Molina
para a igreja, rezou-se-1he um responso e levaram- no para o cemitério, onde
nunca jamais tocará sino de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça deste mundo.
Repito, foi o que mais me comoveu dos três casos.
Porque a queda do Banco Rural, em si mesma, não vale mais que a de outro
qualquer banco. E depois não há bancos eternos. Todo banco nasce virtualmente
quebrado; é o seu destino, mais ano, menos ano. O que nos deu a ilusão do
contrário foi o finado Banco do Brasil, uma espécie de sineiro da Glória, que
repicou por todos os vivos, desde Itaboraí até Dias de Carvalho, e sobreviveu
ao Lima, ao "Lima do Banco". Isto é que fez crer a muitos que o Banco
do Brasil
era eterno. Vimos que não foi. O da República já não
trazia o mesmo aspecto; por isso mesmo durou menos.
Ao Rural também eu conheci moço; e, pela cara, parecia
sadio e robusto. Posso até contar uma anedota, que ali se deu há trinta anos e
responde ao discurso do Sr. Júlio Otoni. Ninguém me contou; eu mesmo vi com
estes olhos que a terra há de comer, eu vi o que ali se passou há tanto tempo.
Não digo que fosse novo, mas para mim era novíssimo.
Estava eu ali, ao balcão do fundo, conversando. Não
tratava de dinheiro, como podem supor, posto fosse de letras, mas não há só
letras bancárias; também as há literárias, e era destas que eu tratava. Que o
lugar não fosse propício, creio; mas, aos vinte anos, quem é que escolhe lugar
para dizer bem de Camões?
Era dia de assembléia geral de acionistas, para se
1hes dar conta da gestão do ano ou do semestre, não me lembra. A assembléia era
no sobrado. A pessoa com quem eu falava tinha de assistir a sessão, mas, não
havendo ainda número, bastava esperar cá embaixo. De resto, a hora estava a
pingar. E nós falávamos de letras e de artes, da última comédia e da ópera
recente. Ninguém entrava de fora, a não ser para trazer ou levar algum papel,
cá de baixo. De repente, enquanto eu e o outro conversávamos, entra um homem
lento, aborrecido ou zangado, e sobe as escadas como se fossem as do patíbulo.
Era um acionista. Subiu, desapareceu. Íamos continuar, quando o porteiro desceu
apressadamente.
- Sr. secretário! Sr. secretário!
- Já há maioria?
- Agora mesmo. Metade e mais um. Venha depressa, antes
que algum saia, e não possa haver sessão.
O secretário correu aos papéis. pegou deles, tornou.
voou, subiu, chegou, abriu-se a sessão. Tratava-se de prestar contas aos
acionistas sobre o modo por que tinham sido geridos os seus dinheiros, e era
preciso espreitá-los, agarrá-los, fechar a porta para que não saíssem e
ler-lhes a viva força o que se havia passado. Imaginei logo que não eram
acionistas de verdade; e, falando nisto a alguém, à porta da rua, ouvi-lhe esta
explicação, que nunca me esqueceu:
- O acionista, disse-me um amigo que passava, é um
substantivo masculino que exprime "possuidor de ações" e, por
extensão, credor dos dividendos. Quem diz ações diz dividendos. Que a diretoria
administre, vá, mas que 1he tome o tempo em prestar-1he contas, é demais.
Preste dividendos; são as contas vivas. Não há banco mau se dá dividendos. Aqui
onde me vê, sou também acionista de vários bancos, e faço com eles o que faço
com o júri. não vou lá, não me amolo.
- Mas, se os dividendos falharem?
- É outra cousa, então cuida-se de saber o que há.
Pessoa de hoje, a quem contei este caso antigo,
afirmou-me que a pessoa que me falou, há trinta anos, a porta do Rural, não fez
mais que afirmar um principio, e que os princípios são eternos. A prova é que
aquele ainda agora o seria, se não fosse o incidente da corrida dos cheques há Dois
meses.
- Então, parece-lhe...?
- Parece-me.
Quanto ao terceiro caso triste da semana, o terremoto
de Venezuela, quando eu penso que podia ter acontecido aqui, e, se aqui
acontecesse, é provável que eu não tivesse agora a pena na mão, confesso que
lastimo aquelas pobres vítimas. Antes uma revolução. Venezuela tem vertido
sangue nas revoluções, mas sai-se com glória para um ou outro lado, e alguém
vence, que é o principal; mas este morrer certo fugindo-1hes o chão debaixo dos
pés, ou engolindo-os a todos ah!... Antes uma, antes dez revoluções, com
trezentos mil diabos! As revoluções servem sempre aos vencedores, mas um
terremoto não serve a ninguém. Ninguém vai ser presidente e de ruínas. É só
trapalhada, confusão e morte inglória. Não, meus amigos. Nem terremotos nem
bancos quebrados. Vivem os sineiros de oitenta anos, e um só, perpétuo e único
badalo!
EU GOSTO de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém
mete o nariz. aí entra o meu com a curiosidade estreita e aguda que descobre o
encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícia tão graves como a
taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia
paraguaio, cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas
miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos
míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.
Não nego que o imposto sobre a falta de filhos e o
celibato podia dar de si uma página luminosa, sem aliás tocar na estatística.
Só a parte cívica. Só a parte moral. Dava para elogio e para descompostura. A
grandeza da pátria, da indústria e dos exércitos faria o elogio. Q regímen de
opressão inspirava a descompostura, visto que obriga casar para não pagar a
taxa; casado, obriga a fazer filhos, para não pagar a taxa; feitos os filhos,
obriga a criá-los e educá-los. com o que afinal se paga uma grande taxa. Tudo
taxas. Quanto ao suicídio do chefe de polícia, são palavras tão contrárias umas
as outras que não há crer nelas. Um chefe de polícia exerce funções
essencialmente vitais e alheias a melancolia e ao desespero.
Antes de se demitir da vida, era natural demitir-se do
cargo, e o segundo decreto bastaria acaso para evitar o primeiro.
Deixei taxas e mortes e fui a casa de um leiloeiro, que
ia vender objetos empenhados e não resgatados.
Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no
prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato e evangélico. Está
autorizado por Jesus Cristo : Tu es Petrus, etc. Mal comparando, o meu ainda é
melhor. O da Escritura está um pouco forçado, ao passo que o meu, - o martelo
batendo no prego, - é tão natural que nem se concebe dizer de outro modo.
Portanto, edificarei a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo.
Havia lá broches, relógios, pulseiras, anéis, botões,
o repertório do costume. Havia também um livro de missa, elegante e
escrupulosamente dito para missa, a fim de evitar confusão de sentido. Valha-me
Deus!
até nos leiloes persegue-nos a gramática. Era de
tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, além do valor espiritual, tinha
aquele que propriamente o levou ao prego. Foi uma mulher que recorreu a esse
modo de obter dinheiro. Abriu mão da salvação da alma, para salvar o corpo, a
menos que não tivesse decorado as orações antes de vender o manual delas. Pobre
desconhecida! Mas também (e é aqui que eu vejo o dedo de Deus), mas também quem
é que 1he mandou comprar um livro de tartaruga com ornamentações de prata? Deus
não pede tanto; bastava uma encadernação simples e forte, que durasse, e feia
para não tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela.
Mas vamos ao que me põe a pena na mão; deixemos o
livro e os artigos do costume. Os leilões desta espécie são de uma monotonia
desesperadora. Não saem de cinco ou seis artigos. Raro virá um binóculo.
Neste apareceu. um, e um despertador também, que
servia a acordar o dono para o trabalho. Houve mais uns cinco ou seis
chapéus-de-sol, sem indicação do cabo... Deus meu! Quanto teriam recebido os
donos por eles, além de algum magro tostão? Ríamos da miséria. É um derivativo
e uma compensação. Eu, se fosse ela, preferia fazer rir a fazer chorar.
O lote inesperado, o lote escondido, um dos últimos do
catálogo, perto dos chapéus-de-sol, que vieram no fim, foi uma espada. Uma
espada, senhores, sem outra indicação; não fala dos copos, nem se eram de ouro.
É que era uma espada pobre. Não obstante, quem diabo a teria ido pendurar do
prego? Que se pendurem chapéus-de-sol, um despertador, um binóculo, um livro de
missa ou para missa, vá. O sol mata os micróbios, a gente acorda sem máquina,
não é urgente chamar a vista as pessoas dos outros camarotes, e afinal o
coração também é livro de missa. Mas uma espada!
Há Dois tempos na vida de uma espada, o presente e o
passado. Em nenhum deles se compreende que ela fosse parar ao prego. Como iria
lá ter uma espada que pode ser a cada instante intimada a comparecer ao
serviço? Não é mister que haja guerra; uma parada, uma revista, um passeio, um
exercício, uma comissão, a simples apresentação ao ministro da guerra basta para
que a espada se ponha a cinta e se desnude, se for caso disso. Eventualmente,
pode ser útil em defender a vida ao dono. Também pode servir para que este se
mate, como Bruto.
Quanto ao passado, posto que em tal hipótese a espada
não tenha já préstimos, é certo que tem valor histórico. Pode ter sido
empregada na destruição do despotismo Rosas ou López, ou na repressão da
revolta, ou na guerra de Canudos, ou talvez na fundação da República, em que
não houve sangue, é verdade, mas a sua presença terá bastado para evitar
conflitos.
As crônicas antigas contam de barões e cavaleiros já
velhos, alguns cegos, que mandavam vir a espada para mirá-la, ou só apalpá-la,
quando queriam recordar as ações de glória, e guardá-la outra vez. Não ignoro
que tais heróis tinham castelo e cozinha, e o triste reformado que levou esta
outra espada ao prego pode não ter cozinha nem teto. Perfeitamente. Mas ainda
assim é impossível que a alma dele não padecesse ao separar-se da espada.
Antes de a empenhar, devia ir ter a alguém que 1he
desse um prato de sopa. "Cidadão, estou sem comer há Dois dias e tenho de
pagar a conta da botica, que não quisera desfazer-me desta espada, que batalhou
pela glória e pela liberdade..." 8 impossível que acabasse o discurso. O
boticário perdoaria a conta, e duas ou três mãos se 1he meteriam pelas
algibeiras dentro, com fins honestos. E o triste reformado iria alegremente
pendurar a espada de outro prego, o prego da memória e da saudade.
Catei, catei, catei, sem dar por explicação que
bastasse. Mas eu já disse que é faculdade minha entrar por explicações miúdas.
Vi casualmente uma estatística de S. Paulo, os imigrantes do ano passado, e
achei
milhares de pessoas desembarcadas em Santos ou idas
daqui pela Estrada de Ferro Central. A gente italiana era a mais numerosa.
Vinha depois a espanhola, a inglesa, a francesa, a portuguesa, a alemã, a
própria turca, uns quarenta e cinco turcos. Enfim, um grego. Bateu-me o
coração, e eu disse comigo; o grego é que levou a espada ao prego.
E aqui vão as razões da suspeita ou descoberta Antes
de mais nada, sendo o grego não era nenhum brasileiro, - ou nacional, como
dizem as notícias da polícia. Já me ficava essa dor de menos. Depois, o grego
era um, e eu corria menor risco do que supondo algum das outras colônias, que podiam
vir acima de mim, em desforço do patrício. Em terceiro lugar, o grego é o mais
pobre dos imigrantes. Lá mesmo na terra é paupérrimo. Em quarto lugar, talvez
fosse também poeta, e podia ficar-lhe assim uma canção pronta, com estribilho:
Levei a minha espada ao prego.
Eu cá sou grego.
Finalmente, não 1he custaria empenhar a espada, que
talvez fosse turca. About refere de um general, Hadji-Petros, governador de
Lamia, que se deixou levar dos encantos de uma moça fácil de Atenas, e foi
demitido do cargo. Logo requereu a. rainha pedindo a reintegração: "Digo a
Vossa Majestade pela minha honra de soldado que, se eu sou amante dessa mulher,
não é por paixão, é por interesse; ela é rica, eu sou pobre, e tenho filhos,
tenho uma posição na sociedade, etc." Vê-se que empenhar a espada é
costume grego e velho.
Agora que vou acabar a crônica, ocorre-me se a espada
do leilão não será acaso alguma espada de teatro, empenhada pelo contra-regra,
a quem a empresa não tivesse pago os ordenados. O pobre-diabo recorreu a esse
meio para almoçar um dia. Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e
vão almoçar também, que é tempo.
Machado de Assis
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