VI
Ut circumcidereturpuervocatum est nomen ejus Jesus.
Tanto que se circuncidou o Menino, logo se chamou Salvador. Mas com que
consequência? – pergunta S. Bernardo: Circumciditurpueretvocatur Jesus; quid
sibivultistaconnexio? Que parentesco tem o nome com a acção? Que combinação tem
o salvar com o circuncidarse? Três razões acho nos santos; duas repito, uma só
pondero.
S. Bernardo e Eusébio Emisseno, dizem que foi a
circuncisão de Cristo: Totiussuperfluitatisabjectio: Uma estreita e mui
reformada privação de todo o supérfluo. Vinha Cristo como Rei e Redentor do
Mundo a remi-lo e restaurá-lo, e a primeira cousa que fez, como a mais
necessária e importante, foi estreitar-se em sua Pessoa, cercear demasias,
cortar superfluidades e fazer uma pragmática geral com seu exemplo:
Totiussuperfluitatisabjectio . Muitas graças sejam dadas a Deus, que para
confirmação ou imitação desta grande razão de estado divina, não temos
necessidade de cansar a memória, senão de abrir os olhos; não de resolver
escrituras antigas, senão de venerar e amar exemplos presentes. Assim obra quem
assim reina; assim sabe libertar quem assim sabe estreitar:
Ut circumcidereturpuer, vocatum est nomen ejus Jesus.
A segunda razão é de Santo Epifânio, e diz que foi:
Ut confirmaretcircumcisionem,
quamoliminstitueratejusadventuiservientem: «Que quis o Redentor confirmar desta
maneira e honrar a circuncisão, pelo que antes da sua vinda tinha servido.» Bem
advertido, mas muito melhor imitado. Parece que os decretos do Governo de
Portugal e os decretos da Providência Divina correram parelhas (quanto pode
ser) na sua e na nossa redenção. Decretou Deus que à circuncisão se lhe
confirmassem suas antigas honras. havendo respeito ao bem que tinha servido: e
o mesmo decreto se passou cá, e com muita razão: Ut
confirmaretcircumcisionemejusadventuiservientem. Tinha servido a circuncisão no
tempo passado e na Lei Velha, pois honre-se no tempo presente e premeie-se na
Lei Nova; que não é .bem que a felicidade geral venha a ser infortúnio dos que
serviram. Que a circuncisão, que tinha tantos anos de serviços, que a
circuncisão, que tinha derramado tanto sangue, houvesse de ser desgraçada,
porque o mundo foi venturoso, não estava isso posto em razão. Pois baixe um
decreto que lhe confirme efectivamente todas as honras passadas: Ut
confirmaretcircumcisionem, quamoliminstituerat; que é bem que a Lei da Graça
premeie não só os serviços seus, senão os da Lei Antiga, para mostrar, nisso mesmo,
que é Lei da Graça.
Oh! que grande política esta, assim humana, como
divina! El-reiAssuero mandava ler as histórias e crónicas do reino, para fazer
mercês aos que em tempo de seus antecessores tinham servido. El-rei Salomão
sustentava de sua própria mesa aos filhos de Berzelai, por serviços feitos em
tempo e à pessoa de David; e ó Rei dos reis, Cristo Redentor nosso, quando no
Monte Tabor desembargou suas glórias (que também pode ser expediente estarem
embargadas por algum tempo), repartiu-as a três que serviam e a dois que tinham
servido; a S. Pedro, a S. João e a Santiago, porque actualmente serviam; e a
Moisés e a Elias, um vivo e outro defunto, porque tinham servido em tempos
passados. Assim recebe Cristo e autoriza hoje a circuncisão, conforme as honras
do tempo antigo, não porque se quisesse servir dela, que já estava muito
envelhecida e a queria aposentar, senão pelo bem que dantes tinha servido:
Ejusodventuiservientem.
A terceira e última razão é de Santo Ambrósio, de
Santo Agostinho, de S. João Crisóstomo, de Santo Tomás e ainda de S. Paulo, ou
quando menos fundada em sua doutrina, e é esta (alego tantos Doutores pela
dificuldade da razão): Ea ratione pro nobiscircumcisus est, ut
circumcisionemauferret: «Recebeu Cristo a circuncisão, porque, como autor da
Lei Nova, queria tirar do Mundo a circuncisão.» Estranha sentença! Pois porque
Cristo queria tirar do Mundo a circuncisão, por isso recebe e executa em si a
mesma circuncisão?! Antes parece que para a tirar do Mundo havia de entrar
condenando-a, desterrando-a, proibindo-a sob graves penas, e não a admitindo
por nenhum caso.
Pouco sabe das razões verdadeiras de estado quem assim
discorre. Circuncida-se Cristo para tirar do Mundo a circuncisão, porque quem
entra a introduzir uma lei nova, não pode tirar de repente os abusos da velha.
Há-de permitir com dissimulação para tirar com suavidade; há-de deixar crescer
o trigo com cizânia, para arrancar a cizânia.
quando não faça mal às raízes do trigo. Todo o zelo é
mal sofrido, mas o zelo português mais impaciente que todos. A qualquer
relíquia dos males passados, a qualquer sombra das desigualdades antigas, já
tomamos o céu com as mãos, porque não está tudo mudado, porque não está
emendado tudo. Assim se muda um reino? Assim se emenda uma monarquia? Tantos
entendimentos assim se endireitam? Tantas vontades tão diferentes assim se
temperam? Rei era Cristo, e Rei Redentor, e nenhuma cousa trazia mais diante
dos olhos, que extinguir os usos da Lei Velha e renovar e introduzir os
preceitos da Nova; e com ter sabedoria infinita e braços omnipotentes, ao cabo
de trinta e três anos de reino, muitas cousas deixou como as achara, para que
seu sucessor S. Pedro as emendasse. Já Cristo não estava vivo, quando se rasgou
o véu do templo, figura da Lei Antiga. E que cousa se podia representar mais
fácil, que romper um tafetá em trinta e três anos? Pouco e pouco se fazem as
cousas grandes, e não há melhor arbítrio para as concluir com brevidade, que
não as querer acabar de repente.
Instituiu Cristo, Redentor nosso, o sacramento da
Eucaristia, e instituiu-o na mesma mesa em que estava o cordeiro legal. Pois,
Senhor meu, que combinação é esta, ou que companhia? O cordeiro com o
sacramento? As cerimónias da Lei Velha com os mistérios da Nova na mesma mesa?!
– Sim, que assim era necessário que fosse, para que viesse a ser o que era
necessário. Queria Cristo introduzir o sacramento e lançar fora o cordeiro da
Lei. e para isso permitiu que o cordeiro estivesse embora na mesma mesa com o
sacramento, que desta maneira se desterram com suavidade as sombras das leis
velhas, e se vão introduzindo e conciliando os resplendores das novas. Estejam
agora juntos o sacramento e o cordeiro, que amanhã irá fora o cordeiro, e
ficará o sacramento. Com este vagar faz Deus as cousas, e assim quer que as
façam os que estão em seu lugar (quando elas o sofrem); e tenha mais paciência
o zelo, não seja tão estreito de coração. Mais dói aos reis que aos vassalos
dissimular com algumas cousas; mas por força se hão-de fazer assim, para se não
fazerem por força. Muito lhe doeu a Cristo, gotas de sangue lhe custou
contemporizar com a circuncisão; mas foi necessário dissimular com dor, para
remediar mm sucesso. Não é o mesmo permitir que aprovar, antes o que se permite
já se supõe condenado. A benevolência e dissimulação, como são afetos da mesma
cor, equivocam-se facilmente nas aparências; e quantas vezes se choraram
ruínas, os que se invejaram favores! Vem a ser indústria no príncipe, o que é
razão de estado no lavrador, que as espigas que há-de cortar, essas abraça
primeiro.
Assim abraçou Cristo a circuncisão, porque a queria
cortar e arrancar do Mundo: Ea ratione circumcisus est, ut
circumcisionemauferret, mostrando na suavidade desta razão, e nas outras cousas
por que se circuncidou, quão bem se proporcionava com os meios o nome que lhe
puseram de Salvador: Ut circumcidereturpuer, vocatum est
nomenejus Jesus.
Mas porque se chamou Salvador? Porque não tomou outro
nome? Que o não tomasse de algum atributo de sua divindade, bem está, pois
vinha a ser homem! mas ainda em quanto homem tinha Cristo a maior dignidade da
terra, que era a de rei. Pois já que havia de tomar o nome do ofício e não da
pessoa, porque não se chamou Rei, porque se chamou Salvador? – A razão deu-a
Tertuliano: Gratiusilli erat pietatis nomen, quammajestatis: Deixou Cristo o
nome de rei e tomou o de Salvador, porque «estimava mais o nome de piedade, que
o título de majestade». O nome de Rei era nome majestoso, o nome de Salvador
era nome piedoso; o nome de Rei dizia imperar, o nome de Salvador dizia
libertar; e fazendo o Senhor a eleição pela estimação, tomou o de nosso
remédio, deixou o de sua grandeza. Por isso os anjos, na embaixada que deram
aos pastores, puseram primeiro o nome de Salvador e depois o de Ungido:
Quianatus est vobishodieSalvator, qui est Christus Dominus. E por isso no
título da cruz se chamou o Senhor Jesus Rei. e não Rei Jesus: Jesus Nazarenus,
RexJudaeorum; para mostrar no princípio e no fim da vida, que estimava mais o
exercício de nossa liberdade, que a grandeza de sua majestade: Gratiusilli erat
pietatis nomen, quammajestatis.
Se os corações puderam discorrer sensivelmente, quanto
melhor falaram neste passo, do que os poderá copiar a língua? Isto que
Tertuliano disse pelo primeiro Libertador do género humano, pudéramos nós dizer
com ação de graças pelo segundo libertador de Portugal, o qual nesta
felicíssima e verdadeiramente real ação mostrou bem quanto mais estimava o nome
da piedade, que o título da majestade; pois convidado tantas vezes para a
grandeza, rejeitou generosamente o ceptro; e agora chamado para o remédio,
aceitou animosamente a coroa: Gratiusilli erat pietatis nomen, quammajestatis.
Rei não por ambição de reinar, senão por compaixão de libertar; rei
verdadeiramente imitador do Rei dos reis, que sobre todos os títulos de sua
grandeza estimou o nome de Libertador e Salvador: Vocatum est nomen ejus Jesus.
Pe. Antonio Vieira
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