Um Dia em Quatro Palavras
Ao romper do dia de Sant’Ana estavam
todos na ilha de... descansando nos braços do sono; era isso muito natural,
depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado. Com
efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de
D. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha
tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes bulhenta, perturbava a ordem
dos jogos, de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim;
outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um
só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la teve em recompensa um
beliscão.
Finalmente, ouviu-se a voz de: - vamos
dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo. O último que se deitou foi
Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando
todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre
Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.
São seis horas da manhã e todos dormem ainda o sono solto. Um autor pode entrar
em toda parte e, pois... Não, não, alto lá! no gabinete das moças... não
senhor, no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro
estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso
Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso
lá?... dá um beijo em Fabrício, acorda espantado e ainda em cima empurra
cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...
Oh! beleza! oh! inexplicável poder de
um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o
ilude e ainda zomba dele dormindo!
Estava o nosso estudante sonhando que
certa pessoa, de quem ele teve até aborrecimento e que agora começa com os
olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente
despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua
cabeceira; que traquinas como sempre, em vez de chamá-lo, queria rir-se,
acordando-o pouco a pouco; que, para isso, aproximava seu rosto do dele, e,
assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação
causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos lábios
dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia vê-la
fugir ao menor movimento; que, finalmente, não podendo mais resistir aos seus
férvidos desejos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um
salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto
chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a
realidade) e ele deu um salto e, em lugar de pregar um terno beijo nos lábios
de D. Carolina, foi, com toda a força e estouvamento, bater com os beiços e
nariz contra a testa de Fabrício; e como se o colega tivesse culpa de tal
infelicidade, deu-lhe dois empurrões, dizendo:
- Sai-te daí, peste!... ora, quando eu
sonhava com um anjo, acordo-me nos braços de Satanás!...
Corra-se, porém, um véu sobre quanto se
passou até que se levantaram do almoço. A sociedade se dividiu logo depois em
grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois
velhos ferraram-se no gamão, as moças
espalharam-se pelo jardim e os quatro estudantes tiveram a péssima lembrança de
formar uma mesa de voltarete.
E apesar do poder todo da cachaça do
jogo, de cada vez quer qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar
vazio e junto do arco da varanda, que olhava para o jardim,
colocava-se uma sentinela. Já se vê que
o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por exemplo,
distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e espadilha e
era codilhado todas as mãos que jogava de feito. A Moreninha já fazia
travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele, que se acusava de
haver sido injusto para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para,
em compensação, render-lhe toda a justiça.
D. Carolina brilhava no jardim e, mais
que as outras, por graças e encantos que todos sentiam e que ninguém poderia
bem descrever, confessava-se que não era bela, mas jurava-se que era
encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores olhos, porém não havia quem
resistisse à viveza de seus olhares; as que mais apaixonados fossem da doce
melancolia de certos semblantes em que a languidez dos olhos e brandura de
custosos risos estão exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam
por força que no lindo rosto moreno de D. Carolina nada iria melhor do que o
prazer que nele transluz e o sorriso engraçado e picante que de ordinário
enfeita seus lábios; além disto, sempre em brincadora guerra com todos e em
interessante contradição consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma
risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando não dizer palavra,
apresenta-se, escondendo-se, sempre quer, jamais querendo.
Nunca também se havia mostrado a
Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso boas razões havia: esse era o
dia dos anos de sua querida avó e a pobre Paula, sua estimada
ama, estava completamente
restabelecida. Eis uma deliciosa invasão!... dez moças entram de repente na
varanda e num momento dado tudo se confunde e amotina; D. Carolina atira no
meio da mesa do voltarete uma mão cheia de flores; enquanto Filipe faz tenção
de dirigir-lhe um discurso admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa, para
tornar a aparecer logo depois. É impossível continuar assim!... dá-se por
acabado o jogo e a Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o
irmão.
- Parabéns, Sra. D. Joaquina, disse
Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!
- Como?... perguntou ela.
- Ora, que esta minha prima nunca
entende as figuras do Sr. Augusto, acudiu D. Carolina; explique-se, Sr. Doutor!
- Sua prima, minha senhora, a aurora e
a rosa disputam sobre qual primará na viveza da cor, e eu vejo que ela já tem
presa no cabelo uma das duas rivais.
- Eu o encarrego com prazer da guarda
fiel desta minha competidora... seja o seu carcereiro! disse D. Quinquina,
querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para oferecê-la a Augusto.
- Ó minha senhora! seria um cruel
castigo para ela, que se mostra tão vaidosa!
- Pois rejeita?...
- Certo que não; aceito mas rogo um
outro obséquio.
- Qual?...
- Que por ora lhe conceda seus cabelos
por homenagem.
- Pois bem, será satisfeito; eu
guardarei a sua rosa.
- Mas cuidado, não haja quem liberte a
bela cativa! disse Leopoldo.
- Protesto que a hei de furtar,
acrescentou D. Carolina.
- Desafio-lhe a isso! respondeu-lhe a
prima.
Então começou uma luta de ardis e
cuidados entre a Moreninha e D. Quinquina. Aquela já tinha debalde esgotado
quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil espírito, e enfim, fingindo-se
fatigada, veio sossegadamente conversar junto de D. Quinquina, que, não menos
viva, conservava-se na defensiva. Depois de uma meia hora de hábil afetação, a
menina travessa, com um rápido movimento, fez cair o leque de sua adversária;
Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e D. Quinquina, um instante despercebida,
curvou-se também e soltou logo um grito, sentindo a mão da prima sobre a rosa,
e com a sua foi acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mãozinhas,
que mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se completamente a rosa.
- Morreu a bela cativa!... morreu a
pobre cativa!... gritaram as moças.
- D. Carolina está criminosa! disse D.
Clementina.
- Vai ao júri, minha senhora!
- É verdade, vamos levá-la ao júri.
A idéia foi recebida com aplauso geral,
só Filipe se opôs.
- Não, não, disse ele. Carolina é muito
rebelde, e se fosse condenada não cumpriria a sentença.
- Ó maninho! não diga isso.
- Você jura obedecer?...
- Eu juro por você.
- Tanto pior... era mais um motivo para
se tornar perjura.
- Pois bem, dou a minha palavra, não é
suficiente?
- Basta! basta!
Organizou-se o júri; Fabrício foi
encarregado da presidência, um outro moço serviu de escrivão, e cinco moças
saíram por sorte para juradas; D. Clementina terá de ser a relatora da
sentença. Augusto foi declarado suspeito na causa, e Filipe foi escolhido para
advogado da ré e Leopoldo da autora.
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