05 agosto 2022

Capítulo IV - Na sala de audiências do tribunal de Mirgorod - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo IV

 

Na sala de audiências do tribunal de Mirgorod

 

Que bela cidade que é Mirgorod! Creio que não há edifício que lhe falte. Possui-os de todos os tipos e formas, cobertos com telhados de todos os gêneros: de palha, de junco, de madeira. Uma rua à direita, outra à esquerda, e de todos os lados bonitas vedações por onde trepa o lúpulo, donde pendem bilhas e por detrás das quais se distinguem as flores radiantes do girassol, as cores suntuosas das papoulas, as formas arredondadas das melancias. Que maravilhoso espetáculo! objetos variados, camisas, saias e

roupas interiores estendidas ao sol mais realçam este espetáculo, porque os habitantes de Mirgorod, ignorando ladrões e ratoneiros, expõem nos quintais tudo quanto lhes dá na gana. Quando se entra na cidade pelo lado da praça, é-se forcado a parar por um bom bocado para que o olhar se deleite: há na praça um charco, um charco único no seu gênero, um charco como nunca ninguém viu outro semelhante!

 

Um charco que inunda quase toda a praça! Ah, que belo charco! Os edifícios que o rodeiam, casas e casinhas que de longe se confundem com medas de feno, estão presos pela beleza desse charco.

 

Posso afirmar sem receio de contradição que o tribunal da primeira instância leva a palma a todos esses edifícios. Pouco me importa que seja de carvalho ou de bétula, porque a verdade é que possui uma fachada com oito janelas, oito janelas, meus bons amigos, que dão para a praça, para aquela toalha de água de que acabo de falar, e a que o presidente da Câmara gosta de chamar um lago! De todos os edifícios de Mirgorod, este foi o único contemplado com um revestimento exterior que faz lembrar o granito; os restantes tiveram de se contentar com uma barrela de cal. A escadaria deste nobre edifício avança pela praça dentro, e nos degraus é vulgar verem-se galinhas procurando afanosamente grãos de trigo ou de milho, ali deixados, não propositadamente mas por esquecimento de litigantes imprudentes.

 

O edifício compreende o tribunal e a prisão. O tribunal ocupa duas salas asseadas e caiadas: primeiro uma sala de espera para os queixosos, depois uma sala de audiências mobiliada com uma mesa com um friso de debrues de tinta, e sobre a qual se encontra o "espelho da justiça", quatro cadeiras em carvalho, de costas altas, e ao longo das paredes armários revestidos de ferro forjado, túmulos da chicana de todo o distrito. Sobre um destes armários distinguia-se naquele dia uma bota bem engraxada.

 

A audiência já durava desde a manhã. O juiz, um homem avantajado embora mais magro que Ivan Nikiforovitch, de cara bonacheirona e roupão sebento, com o cachimbo numa das mãos e uma chávena de chá na outra, conversava com o seu assessor. O juiz tinha o nariz tão próximo da boca que o lábio superior lhe servia de tabaqueira onde ele espalhava o tabaco destinado a ser absorvido pelas fossas nasais. Assim, pois, conversava o juiz com o seu assessor. A pequena distância uma criada descalça segurava uma bandeja empilhada de chávenas. No topo da mesa um escrivão lia uma sentença num tom de voz tão dolente, tão monótono, que o próprio réu se deixou adormecer. E não restam dúvidas de que o juiz teria sido o primeiro a render-se ao sono se um assunto interessante o não mantivesse acordado.

 

"Daria tudo", perorava o juiz, deliciando-se com o chá já frio, "daria tudo para saber o que se há-de fazer para que eles cantem. Há dois anos tive um melro que a princípio cantava maravilhosamente, e que de repente deixou de cantar. Começou a gaguejar, a voz foi-se alterando cada vez mais, perdeu toda a limpidez, e não houve outro remédio senão pô-lo em liberdade. Ora bem, a cura é tudo quanto há de mais simples: faz-se uma pequena incisão na goela, mais pequena que uma ervilha - mas este tratamento deve ser feito com uma agulha. Consegui saber este segredo por intermédio de ZakharProkofievitch, e se lhe interessa, vou-lhe contar como é que a coisa se passou. Cheguei à casa dele..."

 

-Quer que leia outra, DemianeDemianovitch? - interrompeu o escrivão, que já tinha terminado a leitura

uns minutos antes.

 

-Já acabou? Mas tão depressa? E eu que não ouvi nada! Onde estão os papéis? Dê-mos para eu assinar.

O que é que vem a seguir?

-O processo do cossaco Lokitko, sobre o roubo duma vaca.

-Ótimo. Pode começar a ler... "Então cheguei a casa dele. Se quiser posso contar como ele me recebeu.

Para ajudar a escorregar a vodka serviram um esturjão fumado, que era de lamber os beiços! Não tem comparação" (e nesta altura o juiz sorriu e deu um estalo com a língua, o que lhe permitiu inspirar as partículas de tabaco depositadas na sua tabaqueira natural) "... com a bodega que nos fornece o nosso digno merceeiro. Nem provei o arenque porque, como sabe, me faz sempre ardor no estômago, mas fiz as honras ao caviar, que tem de se reconhecer que estava simplesmente delicioso... Depois saboreei um licor perfumado com centaureia. Havia também licor de açafrão, mas eu nunca lhe toco; não há dúvida que é um licor excelente mas, como toda a gente sabe, se bem que a princípio abra o apetite, acaba depois por tirar a vontade de comer..."

 

-Ah! Mas que sorte inesperada! - exclamou subitamente o juiz ao ver entrar Ivan Ivanovitch.

-Que Deus esteja convosco! Muito bons dias! - disse Ivan Ivanovitch, com a sua cortesia habitual. Meu Deus, como ele sabia ganhar as simpatias de toda a gente! Nunca vi uma pessoa tão delicada. E a verdade é que sabia o que valia, e aceitava a consideração geral como uma homenagem que era devida ao seu mérito.

 

O próprio juiz ofereceu uma cadeira a Ivan Ivanovitch, sorvendo ao mesmo tempo, pelo nariz, todo o tabaco de reserva no lábio, o que nele era um sinal infalível de profunda satisfação.

 

-Que lhe posso oferecer, Ivan Ivanovitch? - perguntou. - Aceita uma chávena de chá?

-Não, muitíssimo obrigado - respondeu Ivan Ivanovitch, que se levantou, inclinou a cabeça em sinal de agradecimento, e voltou a sentar-se.

-Só uma chaveninha - insistiu o juiz.

-Não, não se incomode DemianeDemianovitch.

Ao pronunciar estas palavras, Ivan Ivanovitch levantou-se, inclinou-se e tornou a sentar-se.

-Mas é só uma chaveninha.

-Nesse caso, seja. Só uma chávena.

E Ivan Ivanovitch estendeu a mão para pegar na chávena.

Deus Nosso Senhor, que profunda cordialidade a deste homem! É impossível descrever o efeito que as suas boas maneiras tinham sobre toda a gente.

-Só mais uma chávena?

-Muitíssimo obrigado - respondeu Ivan Ivanovitch que se inclinou e pousou sobre a bandeja a chávena virada para baixo.

-Faça-me esse favor, Ivan Ivanovitch.

-Peço-lhe muita desculpa, mas é impossível.

E ao pronunciar estas palavras, Ivan Ivanovitch levantou-se, inclinou-se e tornou a sentar-se.

-Ivan Ivanovitch, beba mais uma chávena só para me dar prazer.

-Não, muito obrigado; mas estou muito sensibilizado pela sua insistência.

E, ainda ao pronunciar estas palavras, Ivan Ivanovitch levantou-se, inclinou-se e tornou a sentar-se.

-Vamos lá, só mais uma chávena.

Ivan Ivanovitch estendeu o braço e tirou uma chávena da bandeja.

Caramba! Como este homem sabia manter a sua dignidade.

-DemianeDemianovitch - disse Ivan Ivanovitch, após ter engolido o último golo de chá -, traz-me aqui um assunto urgente; venho apresentar uma queixa - Ivan Ivanovitch pousou a chávena e tirou da algibeira uma folha de papel timbrado escrito dos dois lados -, uma queixa contra o meu inimigo, contra o meu inimigo figadal.

-E quem é ele?

-Ivan NikiforovitchDovgotchkoun.

Ao ouvir isto, o juiz quase caiu da cadeira.

-O que é que o senhor disse? - exclamou ele, levantando os braços. - Ivan Ivanovitch, é de fato o senhor que está aqui na minha frente?

-Como vê, sou eu mesmo.

-Que todos os santos do céu o protejam! Mas como é que, de repente, se tornou inimigo de Ivan Nikiforovitch? Mas é mesmo o senhor que está a falar? Por favor, repita o que disse. Não está ninguém atrás de si a falar no seu lugar?

-Mas o que tem isto de extraordinário? Odeio-o e não o posso ver. Fez-me uma afronta mortal, fez um ultraje à minha honra.

-Valha-me a Santíssima Trindade! Como é que a minha pobre mãe poderá acreditar numa coisa dessas?

Todos os dias, quando a minha irmã e eu discutimos e nos zangamos, a minha velhota diz-nos logo:

"Meus filhos, vocês estão sempre como o cão e o gato. Reparem no exemplo de Ivan Ivanovitch e de Ivan Nikiforovitch. Aquilo é que são uns amigos!" Olha os grandes amigos! Bem, conte-me lá o que aconteceu.

-O assunto é muito delicado, DemianeDemianovitch, e difícil de explicar. É melhor ler a minha queixa, aqui está, segure por este lado, que é melhor.

 

-Faça o favor de ler em voz alta, TarassTikhonovitch - ordenou o juiz, voltando-se para o escrivão.

TarassTikhonovitch pegou no papel e, depois de se ter assoado como se assoam todos os escrivões de todos os tribunais de primeira instância, isto é, com o auxílio de dois dedos, começou a ler.

 

"Eu, abaixo assinado, Ivan, filho de Ivan Pererepenko, fidalgo, proprietário em Mirgorod, apresento a seguinte queixa:

 

"Primeiro: A sete de Julho de este ano de mil oitocentos e dez, um indivíduo cujo comportamento criminoso e ímpio ultrapassa todas as medidas e provoca a revolta geral, refiro-me ao fidalgo Ivan, filho de NikiforDovgotchkoun, fez-me uma afronta mortal, que não só atinge a minha honra de indivíduo, como é um insulto ao meu nome e à minha categoria social. Por outro lado, o mencionado fidalgo, cujo temperamento violento está de acordo com o seu abjeto exterior, não é mais que um receptáculo de palavrões e de frases infamantes."

 

O escrivão, que se queria assoar, fez uma ligeira pausa, enquanto o juiz, com as mãos juntas numa atitude de deferência, murmurava para consigo: "Safa! isto é que é saber escrever!"

 

A pedido de Ivan Ivanovitch, TarassTikhonovitch recomeçou a ler.

 

"Quando eu acabava de lhe fazer uma proposta amigável, o mencionado fidalgo Ivan, filho de NikiforDovgotchkoun, aplicou-me publicamente uma denominação tão ultrajante como ignominiosa, nomeadamente a palavra pato bravo. "Contudo, ninguém ignora no distrito de Mirgorod que nunca usei nem tenho a menor intenção de usar no futuro o nome deste animal imundo. O registro de batismo da paróquia dos Três Prelados, em que se indica o dia do meu nascimento e o meu nome de batismo, fornece uma prova irrefutável da nobreza das minhas origens. Por outro lado, um pato bravo, como o poderá testemunhar toda e qualquer pessoa por muito pouco versada em ciências que seja, um pato bravo nunca poderia estar inscrito num registro de batismo, visto o dito pato bravo ser uma ave e não um homem, verdade esta duma tal evidência que para

ser aceite não é necessário ter-se passado por um seminário. Não obstante isto, e apesar de ele estar perfeitamente ao corrente destes fatos, o abominável fidalgo acima mencionado mimoseou-me com este vocábulo infame no intuito exclusivo de me insultar mortalmente na minha qualidade de homem e na minha posição social.

 

"Segundo: O indecoroso, descortês e grosseiro fidalgo, acima mencionado, cometeu um grave atentado contra o bem de família que recebi em legítima herança de meu defunto pai Ivan, filho de OnissiPererepenko, eclesiástico durante a sua vida e atualmente de santa e gloriosa memória. Com efeito, desprezando todas as leis, deslocou mesmo para diante da minha porta a capoeira de patos, na intenção evidente de acentuar o ultraje anterior, visto que a antiga capoeira, ainda bastante sólida, ocupava um local muito bem escolhido. Ao fazer isto, o mesmo triste indivíduo propunha-se unicamente forçar-me a presenciar atos repugnantes, pois ninguém ignora que se não freqüentam recintos deste gênero, principalmente quando ocupados por patos. No decurso desta operação ilegal, os dois apoios dianteiros da capoeira invadiram uma parte do terreno que me transmitiu em legítima herança o meu defunto pai de gloriosa memória, Ivan, filho de OnissiPererepenko, propriamente num local a seguir à minha arrecadação e daí em linha rata até o lugar onde as criadas costumam lavar as vasilhas.

 

"Terceiro: O mencionado fidalgo, cujo nome, por si só, inspira uma repulsa insuperável, alimenta o tenebroso desígnio de lançar fogo a minha casa, o que é superabundantemente comprovado pelos fatos que se seguem. Primeiro: ultimamente este pérfido indivíduo aventura-se freqüentemente a sair à rua, o que em circunstâncias normais lhe é vedado pela sua preguiça inata e obesidade ignóbil; segundo: a habitação desse indivíduo, que confina com a vedação da propriedade que me legou em legítima herança o meu defunto pai de gloriosa memória, Ivan, filho de OnissiPererepenko, a dita habitação está agora iluminada todos os dias e durante longas horas, prova duma manifesta evidência, visto que anteriormente a sua sórdida avareza o impedia de acender até um simples coto de vela. "Por tudo isto, e estando para todos os efeitos devidamente comprovado que o dito fidalgo, Ivan, filho de NikiforDovgotchkoun, é réu de numerosos crimes, como, por exemplo, tentativa de incêndio, insultos graves ao meu nome e estirpe, roubo de terrenos, e, o que é ainda pior, junção repreensível e prejudicial do epíteto 'pato bravo' ao meu nome de família, venho requerer a Vossas Excelências que contra o dito perturbador da ordem pública seja passada ordem de captura, que seja encarcerado na prisão municipal, algemado de pés e mãos, e condenado a uma pesada multa com o pagamento de custas, danos e prejuízos. Apela-se para o Tribunal para que seja dado seguimento imediato a este requerimento, que foi redigido, escrito e assinado por mim, fidalgo e proprietário de Mirgorod.

 

"Ivan filho de Ivan Pererepenko."

 

Terminada a leitura o juiz aproximou-se de Ivan Ivanovitch, pegou-lhe na aba da sobrecasaca e falou-lhe mais ou menos nestes termos:

-Que é que o senhor pretende com isso, Ivan Ivanovitch? Não chame sobre si a cólera divina. Mande esse requerimento ao diabo que o leve, vá procurar Ivan Nikiforovitch, e dê-lhe um abraço. Depois mande comprar uma boa garrafa de vinho de Santorin ou de Nikopol, ou faça simplesmente um bom ponche e mande-me chamar. Bebemos todos juntos, e vai ver que os fumos do álcool vos farão esquecer todo esse assunto.

 

-Não, DemianeDemianovitch - replicou Ivan Ivanovitch naquele tom grave que lhe ficava tão bem. - Um assunto destes não se pode resolver amigavelmente. Desejo-lhe muito boa tarde. Meus caros senhores, muito boa tarde acrescentou no mesmo tom grave, dirigindo-se às pessoas que se encontravam na sala. - Espero que seja dado ao meu requerimento a atenção que lhe é devida.

 

E retirou-se, deixando todos os presentes profundamente surpreendidos. O escrivão tomou uma pitada de rapé; o juiz ficou especado, passeando um dedo distraído numa poça de tinta que estava sobre a mesa, porque os empregados tinham derramado o caco de garrafa que servia de tinteiro. Por fim quebrou o silêncio.

 

-Que é que o senhor diz a isto, DorofeiTrophimitch? - perguntou ao seu assessor.

-Absolutamente nada - respondeu o assessor.

-Sempre acontece cada coisa neste mundo! - concluiu o juiz.

 

Mal tinha acabado de falar, a porta abriu-se bruscamente e projetou na sala de audiências a metade dianteira de Ivan Nikiforovitch, cuja metade traseira tinha ficado prisioneira na sala de espera. O aparecimento de Ivan Nikiforovitch, e principalmente num lugar daqueles, provocou o espanto geral. O juiz deu um grito de surpresa, o escrivão interrompeu a leitura, um dos funcionários, enfiado numa espécie de fraque de lã da Frísia, pegou na caneta com os dentes, e outro apanhou uma mosca. O velhote meio inválido que desempenhava simultaneamente funções de oficial de diligências e de moço de cartório, que estivera até então de sentinela à porta de entrada, vestido com uma blusa suja enfeitada nas costas com um remendo, e que tinha passado o tempo a coçar-se - até este velhote ficou de boca aberta e deu uma pisadela não sei a quem.

 

-Então é o senhor, Ivan Nikiforovitch! Que bons ventos o trazem? Como vai essa saúde?

 

Mas Ivan Nikiforovitch estava mais morto que vivo. Entalado entre os dois batentes da porta, não podia deslocar-se nem para a frente nem para trás. O juiz lembrou-se de pedir às pessoas que porventura estivessem na sala de espera, que viessem em seu socorro. A única pessoa que se encontrava naquela sala, uma velha de braços descarnados, esforçou-se em vão por prestar auxílio. Nesse momento, um dos funcionários do tribunal, um latagão de lábios grossos, de costas largas, nariz achatado e olhar turvo de ébrio, com o casaco roto nos cotovelos, aproximou-se de Ivan Nikiforovitch e cruzou-lhe os braços como se faz a uma criança; depois piscou o olho ao velhote, que colocou um joelho no ventre do paciente; e

apesar dos seus gemidos, os esforços conjugados dos dois homens conseguiram projetá-lo na sala de espera. Abriram imediatamente o outro batente da porta. É verdade que tanto o funcionário como o velhote exerceram nesta altura uma atividade altamente meritória, mas o hálito que exalavam tinha um cheiro tão forte que, durante algum tempo, parecia que a sala de audiências se tinha transformado numa taberna.

 

-Não se magoou, Ivan Nikiforovitch? Hei-de dizer à minha mãezinha que lhe mande um bocado de ungüentomata-dores que ela usa; esfregue só as costas e os rins, e verá que amanhã já não sente nada.

A única resposta de Ivan Nikiforovitch, que estava enterrado numa cadeira, eram uns "ahs" e "ohs" prolongados. Finalmente, com uma voz que mal se ouvia, proferiu:

-Quer?

Depois, tirando do bolso a tabaqueira, acrescentou:

-Sirva-se, se faz favor.

-Acredite que estou muito contente de o ver - replicou o juiz. - Mas francamente não consigo descobrir a que devemos o prazer da sua visita.

-Um requerimento - balbuciou Ivan Nikiforovitch.

-Um requerimento? Mas que espécie de requerimento?

-Uma queixa... (uma crise de asma obrigou-o a fazer uma longa pausa)... uma queixa contra um patife...

contra Ivan IvanovitchPererepenko.

-Meu Deus! Também o senhor! Uma amizade como era raro encontrar! ... Uma queixa contra um homem tão honesto!...

-Ele... o diabo em pessoa... - conseguiu articular Ivan Nikiforovitch.

O juiz benzeu-se.

-Queira ler o meu requerimento.

-Vamos lá, leia, TarassTikhonovitch - ordenou contrariado ao escrivão. Num movimento instintivo, o nariz do juiz aproximou-se do lábio, o que nele denunciava geralmente um contentamento profundo.

 

Este ato de independência fez aumentar a indignação do magistrado, que, para punir o impudente, limpou com o lenço, num gesto rápido, todo o tabaco que repousava sobre o lábio.

 

Após a preparação prévia habitual, efetuada sem o auxílio de lenço, o escrivão começou, no seu tom monótono, a leitura do que se segue:

"Eu, abaixo assinado, Ivan filho de NikiforDovgotchkoun, fidalgo de Mirgorod, apresento a seguinte queixa:

 

"Primeiro: Em virtude do seu caráter malévolo e duma manifesta aversão contra mim, o pretenso fidalgo Ivan, filho de Ivan Pererepenko, não cessa de me causar os mais terríveis e monstruosos prejuízos. Ontem à noite, armado de machados, escopros, serras e outros utensílios de serralheiro, como qualquer gatuno vulgar, introduziu-se na capoeira situada no meu pátio, que é minha propriedade inalienável, e, com as suas próprias mãos, serrou-a da forma mais ignóbil, sem que eu tenha jamais dado o menor pretexto a um tal ato de banditismo.

 

"Segundo: O mencionado fidalgo Pererepenko nutre o pérfido desígnio de atentar contra a minha existência. A sete do mês passado, abrigando no seu seio esse pérfido desígnio, pretendeu adquirir uma espingarda que se encontra no meu quarto, oferecendo-me em troca, com o espírito mesquinho e avarento que o caracteriza, vários objetos desprovidos de qualquer valor, a saber, uma marrã castanha e duas medidas de aveia. Tendo-me apercebido, a partir desse momento, das suas intenções criminosas, fiz tudo quanto estava ao meu alcance para o dissuadir desse propósito. Mas o mencionado patife Ivan, filho de Ivan Pererepenko, ofendeu-me da maneira mais grosseira possível, e passou a votar-me desde então um ódio sem tréguas. Acresce que o mencionado fidalgo de trazer por casa, Ivan, filho de Ivan, Pererepenko, é na realidade um indivíduo de baixa condição. A irmã, pessoa de um mau comportamento notório, há uns cinco anos pôs-se a andar com o regimento de caçadores que nessa altura pertencia à

guarnição de Mirgorod, enquanto mandava inscrever o legítimo esposo no registro dos camponeses. O pai e a mãe eram indivíduos de tão maus costumes, que se embebedavam ao desafio. Contudo, o procedimento ordinário e imoral do mencionado fidalgo de trazer por casa ultrapassa de longe a conduta abominável da sua família. A verdade é que ele, sob a máscara da devoção religiosa, comete as ações mais escandalosas: por exemplo, não respeita nem os dias de jejum nem a quaresma; e tanto assim, que na véspera do advento, este renegado comprou um carneiro e mandou-o matar no dia seguinte pela sua concubina Gapka, sob o pretexto insidioso de ter necessidade imediata de sebo para a sua reserva de velas e lamparinas.

 

"Por tudo isto, e estando para todos os efeitos devidamente comprovado que o dito fidalgo de trazer por casa é réu dos crimes de roubo, sacrilégio e banditismo, venho requerer a Vossas Excelências que contra ele seja passado mandato de captura, e que seja encarcerado ou na prisão municipal ou numa prisão do Estado. Venho além disto requerer que lhe sejam retirados os títulos de nobreza que usa atualmente, que lhe seja ministrada uma severa correção com um bom par de chicotadas, e que seja deportado para a Sibéria ou para qualquer outra colônia penal conveniente; além disso, que seja condenado ao pagamento de custas, danos e prejuízos. Apela-se para o Tribunal para que seja dado seguimento imediato a este requerimento, que foi assinado por mim, fidalgo de Mirgorod.

 

"Ivan, filho de Nikifor, Dovgotchkoun."

 

Logo que o escrivão terminou a leitura, Ivan Nikiforovitch pegou no gorro, cumprimentou os circunstantes e preparou-se para efetuar a sua retirada. O juiz ainda tentou detê-lo. -Está assim com tanta pressa, Ivan Nikiforovitch? Espere um bocadinho e tome uma chávena de chá comigo. Ò Orychka, pedaço d'asno, que é que estás aí a fazer, especada que nem um espantalho? Já acabaste de fazer olhinhos bonitos aos meus funcionários? Despacha-te, trás lá o chá!

 

Mas o assombro de ter conseguido realizar uma viagem tão longa e de ter logrado sobreviver a tantas provações, deu coragem a Ivan Nikiforovitch para transpor sem hesitação a porta fatal, limitando-se a murmurar:

-Não, por favor, não se incomode...

E, fechando a porta atrás de si, deixou o tribunal estupefato.

 

Não restavam dúvidas. Impunha-se fazer seguir o processo. Os dois requerimentos seguiriam os trâmites legais, e a partir desse momento o assunto tornaria um aspecto mais sério. E precisamente neste momento, uma circunstância imprevista veio avolumar ainda mais o interesse que nele se fixara. Quando o juiz abandonava a sala de audiências na companhia do assessor e do escrivão, e os funcionários amontoavam num saco as luvas, com que réus e queixosos os brindavam, sob a forma de galinhas, ovos, pães, enchidos, bolos e outras ninharias, precisamente nesse momento irrompeu na sala uma marrã

castanha e, perante o espanto profundo da assistência, distinguiu com a sua escolha, não um enchido ou um pedaço de pão, mas nem mais nem menos que o requerimento de Ivan Nikiforovitch, cujas folhas pendiam dum canto da mesa. Com este adorno no focinho, a realçar o seu fato de seda castanha, a marrã safou-se a toda a pressa, escapando à perseguição dos homens de justiça, apesar da chuva de réguas e tinteiros que sobre ela lançaram.

 

Esta aventura inaudita mergulhou-os numa extrema e profunda consternação, pois ainda não tinham tirado cópia do requerimento. O juiz, ou melhor, o seu escrivão, conferenciou demoradamente com o assessor acerca deste caso sem precedente. Decidiu-se por fim enviar um relatório a Sua Excelência o Presidente da Câmara, uma vez que a instrução do processo recaía sob a alçada da polícia municipal.

 

Este relatório, enviado nesse mesmo dia com o número 389, provocou uma conversa bastante curiosa, como se poderá ver no capítulo seguinte.

 

Nikolai Gogol

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