Pedilúvio
Sentimental
Ria-se, jogava-se, brincava-se. Todos se haviam já
esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de D. Carolina
tomado seu copo de vinho de mais, não era justo que tantas moças e moços, em
boa disposição de brincar, e umas poucas de velhas determinadas a maçar meio
mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E além
disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável diagnóstico;
como, pois, se arrojaria Paula a morrer, contra a
ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...
Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o
Sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava
prodigiosamente; grande alemão para roncar!... era uma escala inteira que ele
solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!... dir-se-ia que entoava um
hino... a Baco. Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como é seu
velho costume, haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas
que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo
moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se
um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a Sra. D. Ana achou a ocasião
oportuna para ir dar ordens ao chá, D. Violante ocupou-se em desenvolver a um
velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o defict provável do
Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de
importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana.
Já se vê que D. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que
julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, como o
episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores,
viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jugo
muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses,
grandes inventores, sem dúvida!...
A rapaziada empregava melhor o seu tempo: também
jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo
tinha diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de
cinqüenta anos. Era um homem de estatura muito menos que ordinária, tinha o
rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivas, gordo, de pernas arqueadas,
ajuntava ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre
rapazes, por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda
dos moços. O Sr. Batista (este é o seu nome) era fértil em jogos; quando um
aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do
enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com
aplauso geral, principalmente das moças:
era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.
Caso célebre!... já se viu que coincidência!... ora
expliquem, se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas as
doze tem a sorte feito com que Filipe abrace D. Clementina e Fabrício D.
Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como
se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha,
exclama:
- Quantos abraços!... pois outra vez?...
- Eu já não dei inda agora?... ora isto!...
Entre os rapazes, porém, há um que não está
absolutamente satisfeito: é Augusto.
Será por que no tal jogo da palhinha tem por vezes
ficado viúvo?... não! ele esperava isso como castigo de sua inconstância. A
causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala!
Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito em ordem;
não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum
beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a
buliçosa, a tentaçãozinha não está aí; D. Carolina está ausente!...
Com efeito, Augusto, sem amar D. Carolina (ele assim o
pensa), já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas
horas. Agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa,
mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é
o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior
graça; aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como
abelha, perderia metade de que vale, se não estivesse em contínua agitação. O
beijaflor
nunca se mostra tão belo como quando se pendura na
mais tênue flor e voeja nos ares; D. Carolina é um beija-flor completo. Neste
momento a Sra. D. Ana entrou na sala, e depois, dirigindo-se à grande varanda
da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da
palhinha e começava novo; Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona
da casa.
- Não joga mais, Sr. Augusto? disse ela.
- Por ora não, minha senhora.
- Parece-me pouco alegre.
- Ao contrário... estou satisfeitíssimo.
- Oh! seu rosto mostra não sentir o que me dizem seus
lábios; se aqui lhe falta alguma coisa.
- Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.
- Então que falta?
- A Sra. D. Carolina.
A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de
avó acabava de ser incensado;
era tocar-lhe no fraco.
- Gosta de minha neta, Sr. Augusto?
- É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele,
mostrando as flores.
- Vá buscá-la, disse a Sra. D. Ana, apontando para
dentro.
- Minha senhora, tanta honra!...
- O amigo de meu neto deve merecer minha confiança;
esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está sem dúvida no
quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto de sua ama.
A Sra. D. Ana levou Augusto pela mão até ao corredor e
depois o empurrou brandamente.
- Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca
prova de minha estima para com o amigo de meu neto.
Augusto não esperou ouvir nova ordem: e endireitou
para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu
sem ruído e parou no limiar.
Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e
abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez
ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor,
junto do leito, a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado,
objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a
sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher;
este objeto era nobre...
D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para
a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não
sabia o que via.
- Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse D.
Carolina.
Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.
A escrava abaixou-se; puxou os pés da pobre Paula;
depois, pondo a mão n’água, tirou-a de repente, e sacudindo-a:
- Está fervendo!... Disse.
- Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem
quente, assim disseram os moços.
A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com
presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.
- Estonteada!... sai... afasta-te, exclamou D.
Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.
A escrava não obedeceu.
- Afasta-te daí, disse a menina com tom imperioso; e
depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os
contra o peito, chorando, e começou a banhálos. Belo espetáculo era o ver essa
menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego,
mergulhando suas mãos, tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera
lançar um grito de dor à escrava, quando aí tocara de leve com as suas, tão
grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis
que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada...
ficou em seu lugar o anjo de candura.
Mas o sensível estudante viu as mãozinhas tão
delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas
dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:
- Perdoe, minha senhora.
- Oh!... o senhor estava aí?
- E tenho testemunhado tudo!
A menina abaixou os olhos, confusa e apontando para a
doente, disse:
- Ela me deu de mamar...
- Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas
mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia
encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.
- Nenhum o fará com jeito.
- Experimente.
- Mas a quem encarregarei?
- A mim, minha senhora.
- O senhor falava de meus escravos...
- Pois nem para escravo eu presto?
- Senhor!...
- Veja se eu sei dar um pedilúvio!
E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de
Paula, enquanto D. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.
Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a
jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos
braços.
Agora deixemo-la descansar, disse o moço.
- Ela corre algum risco?... perguntou a menina.
- Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.
- Obrigada!
- Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? Disse
Augusto, oferecendo a mão direita à bela Moreninha.
Ela não respondeu, mas olhou-o com gratidão, e
aceitando o braço do mancebo deixou o quarto de Paula.
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