Travessuras de
D. Carolina
Mas ela não pára: o movimento é a sua vida; esteve no
jardim e em toda a parte; cantou de sobre o rochedo e ei-la outra vez no
jardim! Infatigável, apenas suas faces se coraram com o rubor da agitação.
Travessa menina!... Porém, ela tempera todas as travessuras com tanta viveza,
graça e espírito, que menos valera se não fizera o que faz. Não há um só, entre
todos, der cuja alma se não tenham esvaído as idéias desfavoráveis que, à
primeira vista, produziu o gênio inquieto de D. Carolina. O mesmo Augusto não
pôde resistir à vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo, disseram duas
palavras sobre ela.
- Então, como a achas agora?... disse Leopoldo,
apontando para a irmã de Filipe.
- Interessante, espirituosa e capaz de levar a glória
ao mais destro casuísta. Olha, Fabrício vê-se doido com ela.
- Só isso?...
- Acho-a bonita.
- Nada mais?...
- Tem voz muito agradável.
- É tudo o que pensas?...
- Tem a boca mais engraçada que se pode imaginar.
- Só?...
- Muito esbelta.
- Que mais?
- É tão ligeira como um juramento de mulher.
- Dize tudo de uma vez.
- Pois que queres que eu diga?
- Que a amas!... que dás o cavaco por ela.
- Amá-la? não faltava mais nada! amo-a como amo as
outras... isso sim.
- Pois meu amigo, todos nós estamos derrotados; o
diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se fizer a
saúde que hoje fizemos, todos, à exceção de Filipe, pronunciarão a letra C...
- Também Fabrício?
- Ora! esse está doente... perdido... doido, enfim!
- E ela?
- Zomba de todos nós; cada cumprimento que lhe
endereçamos paga ela com uma resposta que não tem troco e que nos racha de meio
a meio. Tu ainda não lhe disseste nada?
- Cousas vãs... e palavras da tarifa.
- E ela?
- Palavras da tarifa... e cousas vãs.
- Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.
- Tanto melhor para mim.
- E pior para ela, mas... adeus! o meu lindo par se
levanta do banco de relva em que descansava; vou tomar-lhe o braço; tenho-me
singularmente divertido: a bela senhora é
filósofa!... faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft
e, como esta defende os direitos das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe
pedi uma comenda para quando fosse Ministra de Estado, e a patente de cirurgião
do exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois
lhe prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia
Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria
a discussão de uma mensagem ao governo-geral, em prol dos tais direitos das
mulheres: além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando: adeus!...
adeus!...
No entanto D. Carolina continuava a cativar todos os
olhares e atenções; tinham notado, é verdade, que ela estivera alguns momentos
recostada à efígie da Esperança, triste e pensativa. Fabrício jurava mesmo que
a vira enxugar uma lágrima, mas logo depois desapareceu completamente a menor
aparência de tristeza, tornou a brilhar-lhe o prazer em ebulição. Todos tinham
tido seu quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um, nas
graças maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima
predileta, porque também foi ele o único que se atreveu a travar luta com ela.
Finalmente D. Carolina acabava de entrar outra vez no
jardim, depois de ter cantado sua balada. De todos os lados soavam-lhe os
parabéns, mas ela escapou a eles, correndo
para junto de uma roseira toda coroada por suas belas
e rubras flores. Fabrício, que ainda não estava suficientemente castigado e
que, além disto, começava a gostar seu tantum da Moreninha, se dirigiu com D.
Joaninha para o lado em que ela se achava.
- É decididamente o que eu pensava, disse Fabrício,
quando se viu ao pé de D. Carolina; e dirigindo-se a D. Joaninha: sim... sua
bela prima ama as rosas, exclusivamente.
- Conforme as ocasiões e circunstâncias, respondeu a
menina.
- Poderia eu merecer a honra de uma explicação?
perguntou Fabrício.
- Com toda a justiça e, continuou D. Carolina
rindo-se, tanto mais que foi a V. S.ª que me dirigi. Eu queria dizer que, entre
um beijo-de-frade ou um cravo-de-defunto e uma rosa, não hesito em preferir a
última.
Fabrício fingiu não entender a alusão e continuou;
- Todavia não é sempre bem pensada semelhante
preferência; a rosa é como a beleza: encanta mais espinha; V. S.ª o sabe, não é
assim?
- Perfeitamente, mas também não ignoro que a rosa só
espinha quando se defende de alguma mão impertinente que vem perturbar a paz de
que goza; V. S.ª o sabe, não é
assim?
- Oh! então a Sra. D. Carolina foi bem imprudente em
quebrar o pé dessa rosa com que brinca, expondo assim seus delicados dedos; e
bem cruel também em fazê-la murchar de inveja, tendo-a defronte de seu formoso
semblante.
- Pela minha vida, meu caro senhor! nunca vi pedir uma
rosa com tanta graça: quer servir-se dela?
- Seria a mais apetecível glória...
- Pois aqui a tem... Querida prima, nada de ciúmes.
E Fabrício, recebendo o belo presente, em vez de olhar
para a mão que o dava, atentava em êxtase o rosto moreno e o sorrir malicioso
de D. Carolina. Ao momento de se encontrar a mão que dava e a que recebia,
Fabrício sentiu que lhe apertavam os dedos; seu primeiro pensamento foi crer
que era amado; mas logo se lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele
retirou vivamente a mão, exclamando involuntariamente:
- Ai! feri-me!...
Era que a travessa lhe havia apertado os dedos contra
os espinhos da rosa. Mas a flor tinha caído na relva: Fabrício, já menos
desconcertado, a levantou com presteza, e, encarando a irmã de Filipe,
disse-lhe, em tom meio vingativo:
- Foi um combate sanguinolento, ma ganhei o prêmio da
vitória.
- Pois feriu-se?... perguntou D. Carolina, chegando-se
com fingido cuidado para ele.
- Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por
algumas gotas de sangue... valeu a pena.
- Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente...
maldita rosa! eu te amaldiçôo!...
E dando um piparote na inocente flor, a desfolhou
completamente; não ficou na mão de Fabrício mais que o verde cálice. D.
Carolina correu para junto de sua digna avó; o pobre estudante ficou
desconcertado.
- E esta! murmurou ele, enfim.
- Foi muito bem feito! disse D. Joaninha, cheia de
zelos e dando-lhe um beliscão, que o fez ir às nuvens.
- Perdão, minha senhora... seja pelo amor de Deus!
exclamou Fabrício, que se via batido por todos os lados.
No entanto começava a declinar a tarde; uma voz reuniu
todas as senhoras e senhores em um só ponto: serviu-se o café num belo caramanchão;
mas, como fosse ele pouco espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se
abrigaram as senhoras, enquanto os homens se conservavam na parte de fora.
Escravas decentemente vestidas ofereciam chávenas de
café fora do caramanchão, e, apesar disse, D. Carolina se dirigiu com uma para
Fabrício, que praticava com Augusto.
- Eu quero fazer as pazes, Sr. Fabrício; vejo que deve
estar muito agastado comigo e venho trazer-lhe uma chávena de café temperado
pela minha mão. Fabrício recuou um passo e colocou-se à ilharga de Augusto: ele
desconfiava das tenções da menina; sua primeira idéia foi esta: o café não tem
açúcar. Então, começou entre os dois um duelo de cerimônias, que durou alguns
instantes; finalmente, o homem teve de ceder à mulher. Fabrício ia receber a
chávena, quando esta estremeceu no pires... D. Carolina, temendo que sobre ela
se entornasse o café, recuou um pouco. Fabrício fez outro tanto: a chávena,
inda mal tomada, tombou: o café derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou
ainda mais com vivacidade, mas, encontrando a raiz de um chorão que sombreava o
caramanchão, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na relva.
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