06 agosto 2022

As Lágrimas de Amor - A MORENINHA - Joaquim Manuel de Macedo

 

As Lágrimas de Amor

 

- Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi a minha avó, que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.

Era no tempo em que ainda os portugueses não haviam sido por uma tempestade empurrados para a terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, uma jovem tamoia linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa estava no agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar na ilha, e vinte vezes já o havia feito, sem que uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela era Aí. A pobre Aí, que sempre o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos era tão mal pagos, que Aí, de cansada, procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecê-lo: porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe, e nem o esqueceu.

 

Desde então tomou outro partido: chorou. Ou porque sua dor era tão grande que lhe podia espremer o amor em lágrimas desde o coração até aos olhos, ou porque, selvagem mesma, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto, Aí chorou. E porque também nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a moça julgou dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Aí cantou.

 

Seu canto era triste e selvagem, mas terno canto. Dizem que um velho frade português, ouvindo-o por tradição depois de muitos anos, o traduziu para a nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta. Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Aí subia ao rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca dela dava fé, nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua cabeça. Mas Aí era tão formosa e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo não pôde vencer do insensível moço, pôde do bruto rochedo; com efeito, seu canto havia amolecido a rocha e suas lágrimas a traspassaram. E o mancebo vinha sempre, e sempre ela cantava e chorava, e nunca ele a atendia.

 

Uma vez, e já então o rochedo estava todo traspassado pelas lágrimas da virgem selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das outras, não olhou para Aí, nem lhe escutou as sentidas cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva; mas, ao tempo que em mais sossego dormia, duas gotas das lágrimas de amor, que tinham passado através do rochedo, caíram-lhe sobre as pálpebras, que lhe cerravam os olhos. Aoitin despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas, saltando dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Aí e disse bem alto:

·  Linda moça!

- No outro dia ele voltou e já, então, olhou para a virgem selvagem, mas não ouviu ainda o canto dela; depois de caçar veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de lágrima lhe veio cair no ouvido; na volta não só admirou a beleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:

- Voz sonora!

 

Terceiro dia amanheceu e Aoitin viu e ouviu Aí; caçou e cansou, veio repousar na gruta, e dessa vez a gota de lágrima lhe caiu no lugar do coração e, quando voltava, disse bem alto:

- Sinto amar-te!

Ora, parece que nada mais faltava a Aí, e que a ela cumpria responder a este último grito de Aoitin, confessando também o seu amor tão antigo; mas a natureza da mulher é a mesma, tanto na selvagem como na civilizada: a mulher deseja ser amada, fingindo não amar; deseja ser senhora do mesmo de quem é escrava: e pois Aí nada respondeu; mas riu-se, suas lágrimas secaram; porém já a este tempo as muitas que havia derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.

 

No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada, que já não cantava, nem chorava: mesmo antes de chegar à praia, foi clamando:

- Sinto amar-te!

E Aí não respondeu e só sorriu-se.

Nada de caça... nada de pesca... já o insensível era escravo e não vivia longe do encanto que o prendia: correu, pois, para a gruta, deitou-se, mas não dormiu. Quem ama não dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente, que seu coração estava em fogo: - era a febre do amor... Aoitin teve sede; a dois passos viu a fonte que manava; correu açodado para ao pé dela e, ajuntando as suas mãos, foi bebendo as lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe brilhava; e quando a sede foi saciada, já estava feliz; a fonte era milagrosa.

 

As lágrimas de amor, que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam esconder a sua origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado. Então ele não mais buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez um rodeio e foi, de manso, trepando pelo rochedo, até chegar junto de Aí, que, com os olhos na praia do lado oposto, esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito:

- Sinto amar-te!

Mas de repente ela estremeceu, porque uma mão estava sobre seu ombro: e quando olhou viu Aoitin, que sorrindo-se lhe disse num tom seguro e terno:

- Tu me amas!?

Aí não respondeu, mas também não fugiu dos braços de Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.

 

Desde então foram felizes ambos na vida, e foi numa mesma hora que morreram ambos. A fonte nunca mais deixou de existir e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes virtudes...

Dizem, pois, que quem bebe desta água não sai da nossa ilha sem amar alguém dela e volta, por força, em demanda do objeto amado. E em segundo lugar, querem também alguns que algumas gotas bastam para fazer a quem as bebe adivinhar os segredos de amor.

- Terminei aqui a minha história, disse a Sra. D. Ana, respirando. 

- E eu sou capaz de jurar, disse Augusto, que pela terceira vez sinto ruído de alguém que se retira correndo.

- Pois examine depressa.

Augusto correu à porta e voltou logo depois.

- E então?... perguntou a Sra. D. Ana.

- Ninguém, respondeu o estudante.

- E vê alguém no jardim?...

- Apenas a Sra. D. Carolina, que vai apressadamente para o rochedo.

- Sempre minha neta!...

- E eu, minha senhora, tenho que pedir-lhe uma graça.

- Diga.

- Rogo-lhe que, por sua intervenção, me facilite o prazer de ouvir sua linda neta cantar a balada de Aí, que tanto me interessou com o seu amor.

- Oh!... não carece pedir... não a ouve cantar... sobre o rochedo?... E a balada.

- Será possível?!

- Adivinhou o seu pensamento.

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