05 agosto 2022

Capítulo V - Conferência entre duas notáveis individualidades de Mirgorod - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo V

 

Conferência entre duas notáveis individualidades de Mirgorod

 

Depois de se ter ocupado de alguns problemas domésticos, Ivan Ivanovitch preparava-se para gozar o seu repouso quotidiano debaixo do alpendre, quando com grande espanto seu viu resplandecer certos pontos vermelhos junto à porta de entrada do seu domínio. Era o vestuário de sua excelência o presidente da Câmara, brilhando como um couro castanho avermelhado que tivesse sido envernizado. "Que boa idéia a de PiotrFiodorovitch de vir dar dois dedos de conversa", disse para consigo Ivan Ivanovitch. A sua surpresa não foi menor, ao ver o presidente caminhar a passos largos e agitando os braços, o que raras vezes lhe acontecia. O uniforme do senhor presidente tinha oito botões; faltava-lhe o nono que se tinha perdido havia dois anos durante a procissão da festa anual da igreja. A despeito das admoestações diárias feitas aos oficiais de serviço à hora do acontecimento, até hoje o desaparecido tem escapado às investigações policiais. Estes oito botões tinham sido colocados no uniforme do presidente um à direita, outro à esquerda, um à direita, outro à esquerda e assim por diante. Durante a sua última campanha uma bala tinha-lhe atravessado a perna esquerda; e quando andava, atirava com tanta força a perna inválida, que quase impedia que a perna direita lhe prestasse os seus bons serviços. Desta maneira, antes que ele chegasse ao alpendre, Ivan Ivanovitch teve muito tempo para se perder em conjecturas sobre as possíveis intenções do seu visitante. E o seu interesse redobrou, quando viu que o senhor presidente da Câmara trazia a espada nova à cinta. Não restavam dúvidas de que o assunto devia ser da maior importância...

 

-Muito bom dia, PiotrFiodorovitch - exclamou Ivan Ivanovitch.

 

Sendo muito curioso por natureza, como se disse anteriormente, mal podia conter a impaciência ao ver o presidente tomar o patamar de assalto, sem ao menos levantar os olhos para ele. A verdade é que o esforço de subir as escadas não lhe permitia desviar os olhos dessa operação delicada, porque sempre que subia um degrau a perna inválida batia na perna sã, obrigando-o a uma grande concentração nos seus movimentos.

 

-Tenho o prazer de cumprimentar o meu caro amigo e benfeitor Ivan Ivanovitch - respondeu o senhor presidente.

-Sente-se, PiotrFiodorovitch, o senhor tem um ar cansado; com certeza que a sua perna o incomoda muito.

-A minha perna! - exclamou com ar indignado o presidente, mimoseando Ivan Ivanovitch com um daqueles olhares terríveis com que um gigante fulmina um pigmeu, ou com que um doutor esmaga um reles professor de dança. E ao pronunciar aquelas palavras, levantou a perna e bateu no chão com força.

 

Esta bravata saiu-lhe cara porque com o impulso todo o seu corpo oscilou, e acabou por bater com o nariz no corrimão. Mas o nosso respeitável defensor da ordem retomou rapidamente o equilíbrio e, para disfarçar a atrapalhação, fez menção de tirar a tabaqueira do bolso.

 

-Pode crer, meu caro amigo e benfeitor Ivan Ivanovitch, que no curso da minha existência fiz campanhas muito mais sérias que esta última. Olhe, por exemplo a de 1807. Ainda lhe hei-de contar de uma vez em que tive de saltar um muro para ir ter com uma alemãzinha de se lhe tirar o chapéu...

O presidente piscou o olho e sorriu com um ar diabolicamente brejeiro.

-Então onde é o passeio hoje? - perguntou Ivan Ivanovitch, desejoso de desviar a conversa e de que o presidente declinasse o mais depressa possível os motivos da sua visita. Ele bem queria ir logo direito ao assunto sem mais rodeios, mas o seu conhecimento das normas da etiqueta fazia-lhe reconhecer os inconvenientes de um tal procedimento. Apesar de o coração lhe bater mais depressa, tinha de se dominar e esperar pacientemente a revelação da chave do enigma.

 

-Ora bem, já que o senhor insiste - replicou o presidente - vou-lhe explicar o motivo da minha visita...

Mas antes de tudo, deixe-me dizer-lhe que o tempo hoje está magnífico...

Nesta altura, Ivan Ivanovitch quase teve um ataque.

-Um assunto muito grave me traz hoje à sua presença... - continuou o presidente.

 

O rosto do senhor presidente assumiu a mesma expressão inquieta que tinha quando, havia pouco, tomara o patamar de assalto.

 

Ivan Ivanovitch voltou a si e, como de costume, passou ele a fazer as perguntas.

-Mas de que se trata? É de fato um assunto grave?

-Ora bem, trata-se do seguinte... Mas primeiro permita-me que lhe diga, meu caro amigo e benfeitor Ivan Ivanovitch, que eu, pessoalmente, não tenho nada com isto... Contudo, em nome do governo, tenho que lhe dizer com toda a franqueza: o senhor transgrediu os regulamentos da polícia...

-Que é que o senhor está para aí a dizer, PiotrFiodorovitch? Não percebo nada.

-O quê, o senhor não sabe a que me refiro?! Então um dos seus animais rouba um documento oficial muito importante, e o senhor vem-me dizer que não sabe do que se trata?

-Mas que animal?

-A sua marrã castanha, com sua licença.

-E de que é que me acusam? Que culpa tenho eu se o contínuo deixa a porta do tribunal aberta?

-Mas a verdade é que se o animal é seu a culpa também é sua.

-Então o senhor acha que um porco e eu é uma e a mesma coisa! Muito obrigado pelo elogio.

-Mas eu não disse nada disso, Ivan Ivanovitch! Deus é testemunha que eu não disse nada disso. Por amor de Deus, encare o caso como deve ser. O senhor sabe sem dúvida alguma que, segundo ordens expressas do governo, é proibida a circulação nas ruas da nossa cidade a animais pouco asseados, e muito particularmente nas ruas principais. Concorde que isto é proibido.

-O senhor diz o que quiser. Mas olha a grande coisa se à porca lhe apetece dar uma volta pela cidade!

-Perdão, Ivan Ivanovitch, deixe-me que lhe repita que isso é proibido. Que é que se há-de fazer!... As autoridades é que mandam, e nós temos de lhes obedecer. Também é verdade que de vez em quando aparecem aí pelas ruas umas galinhas e uns patos. Mas note bem que eu disse: galinhas e patos; quanto aos bodes e aos porcos fiz no ano passado um edital proibindo-lhes o acesso a recintos públicos, edital esse que foi lido em voz alta perante todos os habitantes, que foram convocados para esse efeito.

 

-Fale à vontade, PiotrFiodorovitch, fale à vontade!... O que eu sei é que o senhor não perde a oportunidade para me arranjar complicações.

-Eu, arranjar-lhe complicações! Mas o que está o senhor a dizer, meu querido amigo! Ponha lá a mão na consciência. Quando, no ano passado o senhor acrescentou um sótão à sua casa, que ficou mais alta do que é permitido, eu disse-lhe alguma coisa? Não. Fechei os olhos muito bem fechados. E acredite-me, meu caro amigo, mesmo neste assunto, a verdade é que eu... enfim... mas o senhor compreende, os deveres das minhas funções exigem que eu vele pela higiene pública. E vamos lá, meu amigo, estará certo que, de repente, na rua principal...

 

-Não há dúvida que a sua rua principal é uma maravilha! Qualquer vagabundo não hesita em deixar lá os seus detritos.

-Se me dá licença, Ivan Ivanovitch, o senhor agora está a ofender-me... É verdade que isso pode acontecer de vez em quando, mas é principalmente ao longo dos muros, dos tapumes, e noutros lugares mais ou menos afastados. Mas o senhor deve concordar que se uma marrã castanha se lembra de ir passear para a rua principal ou para o largo, o caso já...

 

-Olhem a grande desgraça. Ao fim e ao cabo, as marrãs são criaturas de Deus, PiotrFiodorovitch.

-Tem toda a razão. Toda a gente sabe que o senhor é um homem muito instruído, versado nas ciências e em muitas outras coisas; ao passo que eu confesso que não recebi nenhuma instrução, e só aprendi a ler aos trinta anos; como o senhor sabe, eu sou tarimbeiro...

 

-Hum! - resmungou Ivan Ivanovitch.

-É verdade - continuou o presidente - em 1801 era eu tenente da 4.ª companhia de Caçadores 42, que, para sua informação, era comandada pelo capitão Ieremeiev...

 

Neste momento o digno magistrado, mergulhando os dedos na tabaqueira de Ivan Ivanovitch, retirou um pedaço de tabaco que começou a amoldar com os dedos para lhe dar a forma mais conveniente...

 

-Hum! - resmungou Ivan Ivanovitch.

-Mas - recomeçou o presidente - o meu dever é obedecer às ordens do governo. E o senhor não ignora que, seja quem for que desvie documentos oficiais, deve ser enviado a tribunal.

-Sei isso tão bem que, para seu governo, vou-lhe explicar exatamente como se deve interpretar essa lei.

O artigo em questão não se aplica senão aos seres humanos, por exemplo ao senhor, admitindo que tivesse desviado qualquer documento. Mas não se esqueça do que lhe disse, uma marrã é um animal, uma criatura do Senhor.

-Não digo que não, mas a lei diz expressamente: "Seja quem for que desvie...". Ouça bem: "seja quem for". Não faz exceções nem de espécie nem de sexo nem de condição. Por conseqüência, um animal também está incluído e pode muito bem ser acusado. E o dito animal, como perturbador da ordem pública, deve ser entregue à Polícia até que a sentença seja pronunciada.

-Não, PiotrFiodorovitch - retorquiu friamente Ivan Ivanovitch. - Nada disso vai acontecer.

-Como o senhor quiser; mas pelo meu lado eu tinha que proceder de acordo com as ordens dos meus chefes.

 

- O senhor quer meter-me medo? Quer o senhor dizer que tencionava mandar prender a minha marrã por aquele maneta que é lá funcionário do tribunal? A minha criada punha-o pela porta fora aos pontapés, e ainda acabava por lhe partir o outro braço.

 

-Não vale a pena zangarmo-nos. Já que não está disposto a entregá-la à Polícia, faça com ela o que entender: mate-a pelo Natal, se quiser fazer presunto, ou então coma a carne fresca. Mas se fizer enchidos agradecia-lhe que me mandasse alguns, para provar. A sua Gapka prepara-os que é uma maravilha, e a minha AgrafenaTrophimovna é doida pelos chouriços que ela faz.

 

-Quanto aos enchidos, está bem, mando-lhe uns quantos.

-E pode estar certo de que não está a tratar com um ingrato, meu querido amigo e benfeitor... E agora tenho de lhe falar sobre outro assunto. Fui encarregado pelo nosso juiz, e por todos os amigos das nossas relações, de ver se o consigo reconciliar com Ivan Nikiforovitch.

-De me reconciliar! Com esse malandro, com aquele grosseirão! Nunca! Está a ouvir? Nunca!!!

Nesse dia Ivan Ivanovitch estava disposto a tomar resoluções enérgicas.

-O senhor é que sabe, Ivan Ivanovitch - respondeu o presidente, atafulhando as narinas de tabaco. - Eu não sou ninguém para lhe dar conselhos. Mas deixe-me que lhe diga que se o senhor se reconciliasse com ele...

 

Mas neste momento Ivan Ivanovitch entrou em considerações sobre a caça às codornizes, que era o seu processo infalível de desviar uma conversa quando lhe convinha. E o presidente acabou por regressar a casa sem ter conseguido levar a bom fim nenhum dos assuntos de que fora incumbido.

 

Nikolai Gogol

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