05 agosto 2022

XVI - A Tortura da Carne

 

XVI

 

Cobriu o revólver com um jornal, apressadamente.

- Então continuas na mesma? - perguntou Lisa sobressaltada, fitando-o.

- Que queres dizer com isso?

- Vejo no teu olhar a mesma expressão que tinhas outrora, quando nada querias dizer-me...

Dize-me meu querido, o que te aflige... Tenho a certeza de que sofres. Desabafa comigo, isso aliviar-te-á. Qualquer que seja a causa dos teus sofrimentos, encontraremos um remédio para eles.

- Acreditas nisso?

- Fala, fala, não te deixarei sem que me digas o que tens.

Eugénio esboçou um sorriso doloroso.

- Falar? É impossível. Aliás, nada tenho para te dizer.

Podia ser, no entanto, que acabasse por lhe dizer tudo; mas nessa altura entrou a ama e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta. Lisa saiu para cuidar da filha.

- Hás-de dizer-me o que tens, eu venho já.

- Sim, talvez...

Ela nunca pôde esquecer o sorriso magoado com que o marido disse estas palavras. Saiu.

Apressadamente, como se fosse praticar um delito, Eugénio pegou no revólver e examinou-o.

«Estará carregado? Sim, e desde há muito... Já foi até disparado uma vez... Bem, aconteça o que acontecer...

Encostou o revólver ao parietal direito, hesitou um momento mas, lembrando-se de Stepanida e da decisão tomada de não a tornar a ver, da luta que nos últimos tempos travara consigo próprio, da tentação, da queda, tremeu horrorizado. «Não, antes isto». E deu ao gatilho...

Quando Lisa acorreu ao quarto, mal tivera tempo de descer a varanda, viu-o deitado de bruços, no chão, e o sangue negro e espesso corria da ferida.

Procedeu-se a investigações, mas ninguém pôde atinar com a causa do suicídio. O tio nem por sombras podia admitir que o acontecimento tivesse qualquer relação com as confidências que dois meses antes Eugénio lhe fizera.

Bárbara Alexievna afirmava que sempre tinha previsto aquele desfecho. «Via-se logo, quando se punha a discutir».

Nem Lisa nem Maria Pavlovna compreendiam como aquilo sucedera, e nem tão pouco se podiam conformar com a opinião dos médicos, que classificaram Eugénio de psicópata, de semi-louco. Não podiam admitir tal hipótese, estavam convencidos de que ele era mais ajuizado do que a maioria dos homens.

Se Eugénio Irtenieff era um anormal, um doente, ter-se-ia de concluir que todos os homens o eram e, ainda mais, que doentes serão todos os que nos outros vêem sintomas de loucura quando não têm um espelho em que possam ver o que lhes vai dentro da alma.


Barros Vital

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