05 agosto 2022

XIV - A Tortura da Carne

 

XIV

 

Ao confessar o seu segredo ao tio, em especial aquilo que tanto o apoquentava após aquele dia da chuva, Eugénio sentiu-se mais aliviado. Marcou-se a partida para a semana seguinte.

Daí a dias, Eugénio foi à cidade levantar dinheiro para a viagem, deu as necessárias ordens para que a lavoura não sofresse qualquer atraso e de novo se tornou alegre e optimista.

Sentia-se renascer.

Partiu com Lisa para a Crimeia sem ver uma só vez Stepanida. Passaram dois meses deliciosos. Eugénio, com as profundas impressões experimentadas nos últimos tempos, esquecera-se completamente do passado. Na Crimeia fez relações e novos amigos se lhes juntaram. A vida então tornara-se para Eugénio uma festa. Davam-se também com um velho marechal, pertencente à nobreza provinciana, homem liberal e inteligente que muito distinguia Eugénio.

No fim do mês de Agosto, Lisa deu à luz uma linda e sadia menina, depois dum parto inesperado e fácil. Em Setembro voltaram à sua casa de campo, trazendo consigo uma ama,

porque Lisa não podia amamentar a criança. Completamente liberto das antigas apoquentações, Eugénio voltava feliz e parecia outro homem. Em seguida àqueles transes por que passam todos os maridos nesse momento difícil da vida das esposas, sentia que amava a sua cada vez com maior ardor. Aquilo que experimentava pela filhinha quando a segurava nos braços era um sentimento inédito, que fazia dele o mais feliz dos homens.

Acrescia que um novo interesse se juntara, agora, às suas ocupações. Com efeito, devido à sua intimidade com Dumchine, o velho marechal da nobreza, Eugénio interessava-se pelo Zemstvo, entendendo que era da sua obrigação tomar parte nos negócios públicos. Em Outubro devia ser convocada a assembleia para efeitos da sua eleição. Depois de regressar da Crimeia teve de ir, uma vez, à cidade e outra a casa de Dumchine. Não mais voltara a pensar nos tormentos que passara nem na luta que se vira obrigado a travar para não cair na tentação. Era com dificuldade que relembrava, agora, essa crise, cuja causa atribuía a uma espécie de loucura que se apoderara de si. Sentia-se livre, tão livre que uma vez estando a sós com o feitor, chegou a pedir, com toda a serenidade, informações sobre Stepanida.

- Que faz Petchnikoff? Agora está sempre em casa?

- Não. Continua permanentemente na cidade.

- E a mulher?

- Oh! Essa! Deu em droga. Agora vive com Zinovci. É uma perdida, uma desgraçada.

É melhor assim, pensou Eugénio, coisa estranha. O caso agora é-me por completo indiferente. Devo estar muito mudado.

E assim a vida para Eugénio corria-lhe à medida dos seus desejos: a propriedade pertencialhe inteiramente; a refinaria funcionava com regularidade, a colheita da beterraba tinha sido esplêndida, a mulher dera à luz uma linda menina, com a maior felicidade, a sogra tinha-se ido embora; e fora eleito por unanimidade. A seguir à eleição, Eugénio regressou a casa e foi muito felicitado. Viu-se obrigado a agradecer, e ao jantar bebeu cinco taças de champanhe. Tudo se lhe apresentava decididamente com um risonho aspecto. Tudo parecia estar resolvido.

Enquanto se dirigia para casa, ia a magicar em vários projetos que tencionava realizar. O verão impunha-se o caminho era lindo e o sol brilhava radiante. Ao aproximar-se da quinta, Eugénio pensava que, por causa da sua eleição, iria ocupar agora entre o povo a situação que sempre ambicionara, isto é, poderia dar trabalho a muita gente e dispor da influência política de que passava a gozar. Fantasiava já como daí a três anos sua esposa, as outras pessoas e os camponeses o julgariam. Por exemplo, aqueles que acolá vêm, pensava ao avistar um homem e uma mulher que se dirigiam para ele, com um balde de água, e que se detiveram para lhe dar passagem. O camponês era o velho Petchnikoff e a mulher era Stepanida!

Eugénio olhou para ela, reconheceu-a e sentiu alegremente que ficara absolutamente calmo.

Ela estava cada vez mais bela mas isso em nada o perturbou. Dirigiu-se a casa. Lisa esperava-o na escada.

- Posso dar-te um abraço - perguntou o tio?

- Sim, fui eleito.

- Magnífico! Agora é preciso beber!

Na manhã seguinte Eugénio percorreu toda a propriedade, o que já há algum tempo não fazia. Na eira estavam a funcionar as debulhadoras de trigo. Para inspeccionar o trabalho, Eugénio passou entre as mulheres não reparando em nenhuma delas. Mas, apesar dos seus esforços nesse sentido, por duas vezes notou os olhos pretos e o lenço vermelho de Stepanida. Ela transportava palha. Duas vezes, também, ela o olhou de soslaio e de novo Eugénio sentiu qualquer coisa que não sabia bem o que era. Mas no outro dia, quando voltou à eira, onde se deixou ficar duas horas, sem necessidade para tal, mas, apenas, para olhar a imagem daquela formosa mulher, Eugénio percebeu que estava irremediavelmente perdido. Outra vez os antigos tormentos, outra vez todo aquele horror e já não havia

salvação possível.

Acontecera aquilo que sempre receara. No dia seguinte, à tarde, sem saber como, apareceu junto da sebe do pátio, em frente da granja onde certa vez, pelo Outono, tivera uma entrevista com Stepanida. Ia passeando mas, num dado momento, parou para acender um cigarro. Uma vizinha notou-o e, voltando para trás, ele ouviu dizer a alguém: Vai, que ele está à tua espera, há mais de uma hora. Vai, não sejas tola! Não podia voltar atrás; um camponês vinha agora ao seu encontro, mas viu uma mulher que corria para ele do lado da granja. Era Stepanida.


Barros Vital

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