VIII
Era a véspera da Trindade. Lisa estava grávida de
cinco meses e, embora tivesse os necessários cuidados, andava muito bem
disposta. A mãe de Lisa e a mãe de Eugénio, que nessa altura estava em casa
dele, a pretexto de cuidar da nora, tinham frequentes disputas que muito
aborreciam o casal.
Aconteceu que, por essa ocasião, Lisa resolvera mandar
fazer uma grande limpeza a toda a casa, o que não acontecia desde a Páscoa;
para ajudar os criados, chamou duas mulheres a dias para lavarem os soalhos,
janelas e móveis, bater os tapetes, pregar os reposteiros, etc.
De manhã cedo, as mulheres chegaram com grandes baldes
de água e puseram-se a trabalhar. Uma delas era Stepanida que, por intermédio
dum criado, conseguiu ser chamada: queria ver de perto a senhora da casa.
Stepanida vivia como dantes, sem o marido; e, como outrora, tinha entendimentos
com o velho Danilo, que a surpreendera uma vez a roubar lenha. Foi depois disso
que Eugénio a conheceu; e agora mantinha relações com um dos empregados do
escritório da refinaria.
Afirmava que não pensara mais no senhor. Ele agora tem
a sua esposa - dizia ela - mas gostava de ver a casa que todos dizem estar
muito bem posta.
Eugénio, desde que a encontrara com o filho nos
braços, não a tornara a ver. Ela não trabalhava fora de casa, porque tinha de
tomar conta da criança, e muito raramente ia à aldeia.
Naquela manhã, Eugénio levantou-se às cinco horas e
saiu para o campo antes que chegassem as mulheres encarregadas da limpeza da
casa; mas já havia gente na cozinha, perto do fogão, a aquecer água.
Contente, e cheio de apetite, Eugénio voltou para
almoçar. Entregando o cavalo ao jardineiro, bateu com o pingalim na erva, ao
mesmo tempo que repetia um dos seus estribilhos habituais. Ouvia-se o bater dos
tapetes. Todos os móveis estavam fora de casa, no pátio. «Meu Deus, que limpeza
anda Lisa a fazer. Eis o que é uma boa dona de casa!
Sim, e que dona de casa!» dizia, ao lembrar-se de Lisa
em roupas brancas, com aquele rosto radiante de felicidade que sempre
apresentava quando o fitava. «Sim, é preciso mudar de botas, de contrário - e
voltou a repetir a frase - «Sim, em Lisa cresce um novo Irtenieff».
E, sorrindo, empurrou a porta do quarto. Mas, no mesmo
instante, a porta abriu-se, puxada
de dentro, e ele deu de cara com uma mulher que saía
do quarto, com um balde na mão, a saia enrolada, os pés descalços, as mangas
arregaçadas até aos cotovelos. Afastou-se para a deixar passar. Ela afastou-se
também, ajeitando com a mão húmida o lenço que escorregara.
- Faça favor de passar - disse Eugénio, mas de repente
reconheceu-a.
A rapariga sorriu-lhe com os olhos, fitou-o
alegremente e, soltando a saia, retirou-se.
Mas afinal que significa isto? Não é possível disse
Eugénio franzindo o sobrolho e afastando com a mão, como se fosse uma mosca,
certa ideia importuna. Estava aborrecido por tê-la visto mas, ao mesmo tempo,
não podia afastar os olhos do seu corpo ondulante, dos seus pés descalços, dos
seus braços, dos seus ombros, das graciosas pregas da saia
encarnada, erguida até meia perna.
«Mas por que será que eu estou a olhar para ela?»
perguntou procurando desviar a vista.
«Sim, tenho de mudar de calçado». Entrou no quarto e
ainda não tinha dado cinco passos quando se voltou para a ver uma vez mais. Ela
fazia qualquer coisa, a pequena distância e, no mesmo instante, também se
voltou para Eugénio. «Ah! que estou eu a fazer? Ela é capaz de pensar... Sim,
com certeza já pensou.»
O quarto ainda estava molhado. Uma mulher idosa e
magra dava começo à lavagem.
Eugénio avançou na ponta dos pés até onde se
encontravam as botas. Ia a retirar-se quando a mulher saiu também. Esta vai e
Stepanida vem.
«Meu Deus, que irá passar-se? Que estou eu a fazer?»
Pegou nas botas e foi calçar-se para o vestíbulo. Escovou-se e apareceu no
terraço onde já estavam a mãe e a sogra. Lisa, evidentemente, esperava-o.
Entrou por outra porta ao mesmo tempo que ele.
Meu Deus, se ela, que me supõe tão puro e tão
inocente, soubesse!, pensou Eugénio.
Lisa, como sempre, foi ao encontro do marido, radiante
de felicidade. Mas, nesse instante, ela pareceu-lhe singularmente pálida,
desfigurada, esquelética... Durante o café, as duas senhoras, trocaram
insinuações, cujos efeitos Lisa tentava iludir habilmente.
- Estou morta por que terminem com a limpeza do teu
quarto - disse ela ao marido. - Gosto de ver tudo bem arrumado...
- Deixa lá isso. E tu dormiste depois de eu ter saído?
- Dormi. Sinto-me muito bem, até.
- Como pode uma mulher nesse estado sentir-se bem com
este calor insuportável e num quarto com as janelas viradas para o sol, sem
reposteiros nem cortinas? - disse Bárbara Alexievna, a mãe de Lisa. Em minha
casa há sempre cortinas.
- Mas aqui às dez horas da manhã já temos sombra -
retorquiu Maria Pavlovna.
- É por isso que há tantas febres... - A humidade... -
tornou Bárbara Alexievna, sem reparar que estava em contradição consigo própria
- O meu médico disse sempre que não se pode diagnosticar a moléstia sem
conhecer o temperamento do doente. E ele sabe muito bem o que diz, é o melhor
médico que há por estas redondezas. Também, pagamos-lhe cem rublos, por cada
visita. O meu defunto marido não gostava de chamar o médico para ele;
mas, em se tratando de mim, não olhava a despesas.
- Mas como pode um homem fugir a despesas, quando está
em jogo a vida da mulher e do filho? - disse Eugénio.
- Uma boa esposa obedece ao seu marido - acrescentou
Bárbara Alexievna. - Simplesmente, Lisa está ainda muito fraca depois da doença
que teve.
- Não, mamã, eu sinto-me bem. - E mudando de assunto -
Não lhe serviram creme cozido?
- Eu não quero creme cozido. Contento-me com o creme
fresco.
- Eu bem disse a Bárbara Alexievna, mas ela não faz
caso - disse Maria Pavlovna, como que a justificar-se.
- E, realmente, não quero.
Pretendendo terminar uma conversa que lhe era
desagradável, Bárbara Alexievna perguntou a Eugénio:
- Afinal, sempre lançaram à terra os fosfatos?
Lisa, entretanto, corria a buscar o creme.
- Não vás, que não me apetece - gritou a mãe.
- Lisa! Lisa, mais devagar! - acudiu Maria Pavlovna. -
Essas pressas podem dar mau resultado.
- Nada nos faz mal, quando estamos tranquilos de
espírito - sentenciou Bárbara Alexievna, parecendo aludir a qualquer coisa.
Lisa, entretanto, corria a buscar o creme fresco.
Cabisbaixo, Eugénio bebia o café e ouvia em silêncio.
Já estava habituado àquelas conversas que o irritavam particularmente. Queria
reflectir sobre o que se passara consigo naquele dia, e não o conseguia. Depois
do café, Bárbara Alexievna retirou-se de mau humor. A conversa entre os três
tornou-se depois simples e agradável. Mas Lisa reparou que alguma coisa
preocupava Eugénio e perguntou-lhe se tinha tido algum aborrecimento.
Como não estava preparado para essa pergunta
atrapalhou-se um pouco ao responder negativamente. Lisa, no entanto, ficou
desconfiada. Que alguma coisa o afligia, estava ela bem certa disso. Mas por
que seria que ele não falava francamente.
Barros Vital
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