IX
No fim do almoço, separaram-se. Eugénio foi, como de
costume, para o escritório. Não lia nem escrevia; sentado, fumava cigarro atrás
de cigarro. O que o surpreendia e entristecia penosamente eram os pensamentos
que, de repente, lhe vieram à cabeça, tanto mais que, desde que casara, se
supunha liberto deles. Com efeito, a partir dessa data, não voltara a ter
relações com Stepanida, nem com outra mulher que não fosse a sua. Intimamente
regozijava-se com essa libertação, mas eis que, de súbito, como por acaso,
verificava não estar de todo liberto, posto que tais sentimentos viviam dentro
de si, incisivos e indomáveis.
Precisava de escrever uma carta. Sentou-se à
secretária para esse efeito. Escrita a carta, esquecido completamente dos
pensamentos de há pouco, dirigiu-se para a estrebaria. E, de novo, como de
propósito ou por um infeliz acaso, quando ia a descer a escada, viu na sua
frente a saia vermelha, o lenço vermelho e, balançando os braços requebrando o
corpo, ele passou à sua frente. Não só passou à sua frente, mas deu também uma
pequena corrida, como se estivesse a brincar com ele. Neste momento, vieram-lhe
à imaginação o meio dia brilhante, as urtigas, Danilo, a cabana e, à sombra dos
plátanos, uma boca risonha que mordiscava folhas...
Não, é impossível deixar isso tudo, disse ele, e,
esperando que as duas mulheres desaparecessem, tornou ao escritório. Era meio
dia em ponto e contava lá encontrar o feitor que, com efeito, acabava de
acordar. Espreguiçando-se e bocejando, olhava para o vaqueiro, que lhe dizia qualquer
coisa.
- VassiliNicolaievitch!
- Queira dizer, senhor.
- Preciso de lhe falar.
- Estou às suas ordens!
- Acabe o que estava a dizer.
- Verás que não podes com ele... - disse
VassiliNicolaievitch, voltando-se para o vaqueiro.
- É pesado, VassiliNicolaievitch.
- Que há? - perguntou Eugénio.
- Foi uma vaca que pariu no campo.
- Bem. Vou dar ordens para arrearem Nicolau que leve
um carro dos grandes.
O vaqueiro saiu.
- Veja lá, VassiliNicolaievitch, o que me havia de
acontecer... - começou Eugénio, corando e sentando-se. - Calcule que em
solteiro tive uma ligação... Talvez tenha ouvido falar nisso.
VassiliNicolaievitch sorriu e, mostrando-se
compadecido, perguntou:
- Trata-se da Stepanida?
- Sim. Peço-lhe, que não torne a contratá-la para trabalhar
cá em casa. Compreenderá que isso é muito desagradável para mim...
- Foi o criado Ivan, quem possivelmente, deu essa
ordem.
- Então, ficamos entendidos. Não acha que faço bem? -
disse Eugénio para esconder a sua
confusão.
- Vou já tratar disso.
E Eugénio tranquilizou-se pensando que, se passara um
ano sem a encontrar, não seria difícil esquecê-la definitivamente. De resto,
VassiliNicolaievitch falará ao criado, este por sua vez falará a Stepanida, e
ela compreenderá a razão por que não quero vê-la aqui, dizia consigo Eugénio,
satisfeito por ter tido a coragem de se abrir com VassiliNicolaievitch, embora
isso lhe tivesse custado. «Sim, tudo, menos esta vergonha». E estremecia, só
com a lembrança desse crime.
O esforço moral que fez, para ter aquele desabafo com
VassiliNicolaievitch e lhe dar aquela ordem, serenou Eugénio. Parecia-lhe que
tudo estava arrumado e até Lisa notou que o marido voltava inteiramente calmo e
mesmo mais alegre do que era costume. Se calhar estava aborrecido por causa das
discussões entre minha mãe e a dele. Realmente, com a sua sensibilidade e o seu
nobre carácter, é sempre desagradável ouvir alusões, hostis e de tão mau gosto,
pensava Lisa.
O tempo estava lindo. As mulheres, segundo uma velha
tradição, foram ao bosque apanhar flores, com as quais teceram coroas e,
aproximando-se da escadaria da casa senhorial, puseram-se a dançar e a cantar.
Maria Pavlovna e Bárbara Alexievna, com os seus elegantes vestidos, saíram para
o terraço e acercaram-se da roda para ver as camponesas. O tio, um bêbedo muito
devasso, que passava o verão com Eugénio, seguia-as, envergando rajo chinês.
Como de costume, havia uma grande roda gritante de
cores vivas, de mulheres novas e de raparigas, roda que era como o centro de
toda aquela animação. Em volta dela, de todos os lados, como planetas que giram
em torno do astro principal, raparigas de mãos dadas faziam rodar as saias; os
rapazes riam com satisfação e por tudo e por nada, corriam e agarravam-se uns
aos outros; os mais velhos, de poddiovka azul e preta, com bonés e blusas
encarnadas, quando passavam, faziam estalar entre os dedos sementes de
girassol; os criados e os estranhos olhavam, de longe, a roda. As duas senhoras
aproximaram-se mais; Lisa pôs-se atrás delas, vestida de azul, com uma
fita da mesma cor no cabelo, mostrando os braços bem
torneados e brancos, e os cotovelos que saíam das largas mangas. Eugénio não
desejava aparecer, mas seria ridículo esconderse.
Apareceu, pois, na escadaria, de cigarro na boca;
saudou os rapazes e os camponeses e dirigiu-se a um deles. Nesse momento, as
raparigas cantavam, batiam palmas e saltavam em animada roda.
- A senhora chama-o - disse-lhe um criado
aproximando-se dele. Lisa chamava-o para que ele visse uma das mulheres que
melhor dançava. Era Stepanida. Vestia saia amarela, corpete sem mangas e
ostentava lenço de seda. Estava enérgica, corada e alegre. Era, não havia
dúvida, certo que dançava muito bem, mas Eugénio nem sequer deu por isso.
- Sim, sim, - respondeu ele enquanto tirava e voltava
a pôr os óculos.
Desta forma nunca mais me vejo livre dela!, pensou. E
não a fitava porque receava o seu encontro; mas, assim mesmo, olhando de
soslaio, achou-a extraordinariamente insinuante.
Além disso, lia-lhe nos olhos que ela também o via e
se sabia admirada. Demorou-se apenas o bastante para não parecer grosseiro e,
percebendo que Bárbara Alexievna o chamava, tratando-o com afectada hipocrisia
por «querido», voltou as costas e foi-se embora.
Regressou a casa para não a ver, mas, quando subiu ao
andar superior, sem saber como nem porquê, abeirou-se da janela e ali ficou a
olhar para Stepanida, embevecido, enquanto as duas senhoras e Lisa se
conservavam perto da escadaria. Depois, retirou-se para que o não vissem e
voltou para o terraço. Acendeu um cigarro e desceu ao jardim ao encontro da
camponesa. Mal tinha dado dois passos na alameda, quando, por entre as árvores,
descortinou o seu colete sem mangas sobre a blusa cor-de-rosa e o lenço
encarnado. Ia com outra mulher. Para onde? De repente apoderou-se dele um
desejo irreprimível, ardente.
Como se obedecesse a uma força estranha, Eugénio
dirigiu-se-lhe.
- Eugénio Ivanovitch! Eugénio Ivanovitch! Quero
pedir-lhe um favor - disse, por detrás dele, uma voz.
Era o velho Samokhine, encarregado de abrir um poço.
Parou, retrocedeu bruscamente e encaminhou-se para ele. Finda a conversa,
voltou a cabeça e viu que as duas mulheres se dirigiam para o poço ou, pelo
menos, tomavam esse caminho. Porém, não se demoraram e voltaram novamente para
a roda.
Barros Vital
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