05 agosto 2022

IX - A Tortura da Carne

 

IX

 

No fim do almoço, separaram-se. Eugénio foi, como de costume, para o escritório. Não lia nem escrevia; sentado, fumava cigarro atrás de cigarro. O que o surpreendia e entristecia penosamente eram os pensamentos que, de repente, lhe vieram à cabeça, tanto mais que, desde que casara, se supunha liberto deles. Com efeito, a partir dessa data, não voltara a ter relações com Stepanida, nem com outra mulher que não fosse a sua. Intimamente regozijava-se com essa libertação, mas eis que, de súbito, como por acaso, verificava não estar de todo liberto, posto que tais sentimentos viviam dentro de si, incisivos e indomáveis.

Precisava de escrever uma carta. Sentou-se à secretária para esse efeito. Escrita a carta, esquecido completamente dos pensamentos de há pouco, dirigiu-se para a estrebaria. E, de novo, como de propósito ou por um infeliz acaso, quando ia a descer a escada, viu na sua frente a saia vermelha, o lenço vermelho e, balançando os braços requebrando o corpo, ele passou à sua frente. Não só passou à sua frente, mas deu também uma pequena corrida, como se estivesse a brincar com ele. Neste momento, vieram-lhe à imaginação o meio dia brilhante, as urtigas, Danilo, a cabana e, à sombra dos plátanos, uma boca risonha que mordiscava folhas...

Não, é impossível deixar isso tudo, disse ele, e, esperando que as duas mulheres desaparecessem, tornou ao escritório. Era meio dia em ponto e contava lá encontrar o feitor que, com efeito, acabava de acordar. Espreguiçando-se e bocejando, olhava para o vaqueiro, que lhe dizia qualquer coisa.

- VassiliNicolaievitch!

- Queira dizer, senhor.

- Preciso de lhe falar.

- Estou às suas ordens!

- Acabe o que estava a dizer.

- Verás que não podes com ele... - disse VassiliNicolaievitch, voltando-se para o vaqueiro.

 

- É pesado, VassiliNicolaievitch.

- Que há? - perguntou Eugénio.

- Foi uma vaca que pariu no campo.

- Bem. Vou dar ordens para arrearem Nicolau que leve um carro dos grandes.

O vaqueiro saiu.

- Veja lá, VassiliNicolaievitch, o que me havia de acontecer... - começou Eugénio, corando e sentando-se. - Calcule que em solteiro tive uma ligação... Talvez tenha ouvido falar nisso.

VassiliNicolaievitch sorriu e, mostrando-se compadecido, perguntou:

- Trata-se da Stepanida?

- Sim. Peço-lhe, que não torne a contratá-la para trabalhar cá em casa. Compreenderá que isso é muito desagradável para mim...

- Foi o criado Ivan, quem possivelmente, deu essa ordem.

- Então, ficamos entendidos. Não acha que faço bem? - disse Eugénio para esconder a sua

confusão.

- Vou já tratar disso.

E Eugénio tranquilizou-se pensando que, se passara um ano sem a encontrar, não seria difícil esquecê-la definitivamente. De resto, VassiliNicolaievitch falará ao criado, este por sua vez falará a Stepanida, e ela compreenderá a razão por que não quero vê-la aqui, dizia consigo Eugénio, satisfeito por ter tido a coragem de se abrir com VassiliNicolaievitch, embora isso lhe tivesse custado. «Sim, tudo, menos esta vergonha». E estremecia, só com a lembrança desse crime.

O esforço moral que fez, para ter aquele desabafo com VassiliNicolaievitch e lhe dar aquela ordem, serenou Eugénio. Parecia-lhe que tudo estava arrumado e até Lisa notou que o marido voltava inteiramente calmo e mesmo mais alegre do que era costume. Se calhar estava aborrecido por causa das discussões entre minha mãe e a dele. Realmente, com a sua sensibilidade e o seu nobre carácter, é sempre desagradável ouvir alusões, hostis e de tão mau gosto, pensava Lisa.

O tempo estava lindo. As mulheres, segundo uma velha tradição, foram ao bosque apanhar flores, com as quais teceram coroas e, aproximando-se da escadaria da casa senhorial, puseram-se a dançar e a cantar. Maria Pavlovna e Bárbara Alexievna, com os seus elegantes vestidos, saíram para o terraço e acercaram-se da roda para ver as camponesas. O tio, um bêbedo muito devasso, que passava o verão com Eugénio, seguia-as, envergando rajo chinês.

Como de costume, havia uma grande roda gritante de cores vivas, de mulheres novas e de raparigas, roda que era como o centro de toda aquela animação. Em volta dela, de todos os lados, como planetas que giram em torno do astro principal, raparigas de mãos dadas faziam rodar as saias; os rapazes riam com satisfação e por tudo e por nada, corriam e agarravam-se uns aos outros; os mais velhos, de poddiovka azul e preta, com bonés e blusas encarnadas, quando passavam, faziam estalar entre os dedos sementes de girassol; os criados e os estranhos olhavam, de longe, a roda. As duas senhoras aproximaram-se mais; Lisa pôs-se atrás delas, vestida de azul, com uma

fita da mesma cor no cabelo, mostrando os braços bem torneados e brancos, e os cotovelos que saíam das largas mangas. Eugénio não desejava aparecer, mas seria ridículo esconderse.

Apareceu, pois, na escadaria, de cigarro na boca; saudou os rapazes e os camponeses e dirigiu-se a um deles. Nesse momento, as raparigas cantavam, batiam palmas e saltavam em animada roda.

- A senhora chama-o - disse-lhe um criado aproximando-se dele. Lisa chamava-o para que ele visse uma das mulheres que melhor dançava. Era Stepanida. Vestia saia amarela, corpete sem mangas e ostentava lenço de seda. Estava enérgica, corada e alegre. Era, não havia dúvida, certo que dançava muito bem, mas Eugénio nem sequer deu por isso.

- Sim, sim, - respondeu ele enquanto tirava e voltava a pôr os óculos.

Desta forma nunca mais me vejo livre dela!, pensou. E não a fitava porque receava o seu encontro; mas, assim mesmo, olhando de soslaio, achou-a extraordinariamente insinuante.

Além disso, lia-lhe nos olhos que ela também o via e se sabia admirada. Demorou-se apenas o bastante para não parecer grosseiro e, percebendo que Bárbara Alexievna o chamava, tratando-o com afectada hipocrisia por «querido», voltou as costas e foi-se embora.

Regressou a casa para não a ver, mas, quando subiu ao andar superior, sem saber como nem porquê, abeirou-se da janela e ali ficou a olhar para Stepanida, embevecido, enquanto as duas senhoras e Lisa se conservavam perto da escadaria. Depois, retirou-se para que o não vissem e voltou para o terraço. Acendeu um cigarro e desceu ao jardim ao encontro da camponesa. Mal tinha dado dois passos na alameda, quando, por entre as árvores, descortinou o seu colete sem mangas sobre a blusa cor-de-rosa e o lenço encarnado. Ia com outra mulher. Para onde? De repente apoderou-se dele um desejo irreprimível, ardente.

Como se obedecesse a uma força estranha, Eugénio dirigiu-se-lhe.

- Eugénio Ivanovitch! Eugénio Ivanovitch! Quero pedir-lhe um favor - disse, por detrás dele, uma voz.

Era o velho Samokhine, encarregado de abrir um poço. Parou, retrocedeu bruscamente e encaminhou-se para ele. Finda a conversa, voltou a cabeça e viu que as duas mulheres se dirigiam para o poço ou, pelo menos, tomavam esse caminho. Porém, não se demoraram e voltaram novamente para a roda.

 

Barros Vital

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