05 agosto 2022

IV - A Tortura da Carne

 

IV

 

Eugénio pensava também no casamento, mas não da mesma forma de sua mãe. A ideia de casar-se para pagar as dividas repugnava-lhe. Queria fazê-lo mas por amor. Olhava as raparigas que encontrava, examinava-as minuciosamente, comparava-as, mas não se decidia.

Entretanto, as suas relações com Stepanida continuavam e nada indicava que pensasse acabar com elas. Depois do primeiro encontro, Eugénio julgou que não a procuraria mais.

Todavia, passado algum tempo voltou a sentir-se inquieto, e na sua inquietação evocava aqueles mesmos olhos negros e brilhantes, aquela mesma voz grave, aquele mesmo aroma de mulher fresca e sádia, aquele mesmo peito vigoroso que tufava a blusa. Tudo isto lhe passava pela mente associado à ideia dum bosque de nogueiras e plátanos, inundado de luz.

Apesar de envergonhado, apelou outra vez para Danilo. E novamente a entrevista foi marcada para o meio-dia. Desta vez, Eugénio examinou-a demoradamente a rapariga e tudo

nela lhe pareceu atraente. Procurou conversar, falou-lhe do marido. Era, com efeito, o filho de Mikhail e trabalhava em Moscovo como cocheiro.

- Bem... e que é que faz ele para o enganares?

- Ah! - exclamou ela rindo. - Penso que ele, lá onde está, também se não priva de nada.

Então, porque não hei-de eu fazer outro tanto?

Via-se que se esforçava por mostrar arrogância e isto pareceu a Eugénio encantador. Apesar disso não lhe marcou nova entrevista. Quando ela propôs que voltassem a encontrar-se sem a intervenção de Danilo, com quem não parecia simpatizar, Eugénio recusou-se. Esperava que fosse aquela a última vez. Apesar disso Stepanida agradava-lhe; de resto, entendia que uma ligação destas lhe era necessária e que daí não lhe viria nenhum mal.

No entanto, no íntimo, um juiz mais severo repreendia-o, e por isso Eugénio contava que fosse aquele o último encontro. Porém passou-se o verão e durante esse tempo encontraram-se uma dezena de vezes mas sempre com a interferência de Danilo. Certa ocasião, ela não apareceu, porque o marido chegara. Depois, ele regressou a Moscovo e as entrevistas recomeçaram, a princípio com a cumplicidade de Danilo, mas, por fim, Eugénio marcava o dia e ela vinha acompanhada duma outra mulher.

Um dia, precisamente à hora em que se devia realizar o encontro, Maria Pavlovna recebeu a visita duma rapariga com quem muito desejava casar o filho, o que tornou impossível a saída de Eugénio. Logo que pôde escapar-se, fingiu ir à granja e, por uma vereda, correu para o bosque, para o lugar da entrevista. Ela não estava, e tudo quanto havia no sítio fora destruído: nogueiras, cerejeiras e até os plátanos pequenos. Stepanida, como Eugénio a fizesse esperar, enervou-se e devastou tudo o que encontrou pela frente.

Eugénio ainda ali se demorou uns momentos, mas em seguida correu à choupana de Danilo e pediu-lhe que a convencesse a voltar no dia seguinte.

Assim se passou todo o verão. Estes encontros deram-se sempre no bosque, à exceção duma vez, já perto do outono, em que se encontraram na granja. A Eugénio nem lhe passava pela cabeça que aquelas relações viessem a ter, para si, qualquer complicação futura. Quanto ao caso de Stepanida, nem pensava nisso: dava-lhe dinheiro e tudo ficaria arrumado. Não sabia nem podia imaginar que toda a aldeia estava ao corrente das suas ligações, que todos invejavam Stepanida, lhe extorquiam dinheiro, a encorajavam, e que, sob a influência e os conselhos dos parentes, desaparecia completamente, para a rapariga, a noção do seu irregular comportamento. Parecia-lhe até que, pelo facto de os outros a invejarem, ela só procedia bem.

Muitas vezes Eugénio punha-se a discorrer: Admitamos que não está certo... e, embora ninguém diga nada, toda a gente deve saber... A mulher que a acompanha com certeza dá à língua... Parece-me que ando por mau caminho, mas como deve ser por pouco tempo.

O que mais aborrecia Eugénio era saber que ela tinha marido. A princípio, até sem saber porquê, imaginava-o feio e, se assim fosse, estava justificado em parte o procedimento da mulher. Mas quando uma vez o viu, ficou espantado; era um rapaz elegante, em nada inferior a ele, tinha até mesmo melhor apresentação. No primeiro encontro que tiveram depois disso, ele pô-la ao facto da impressão com que ficou a respeito do marido.

- Não há melhor em toda a aldeia! - exclamou ela com orgulho.

Isto mais espantou Eugénio. Uma vez, em casa de Danilo, no decorrer de uma conversa, este disse-lhe:

- Mikhail perguntou-me há dias se era verdade o senhor andar a namorar-lhe a mulher.

Respondi-lhe que de nada sabia.

- Ora! - disse ele - afinal de contas, antes com um fidalgo, do que com um camponês.

- E que mais disse ele?

- Nada, nada mais do que isto: - Vou saber a verdade e depois lhe farei ver.

- Se ele voltar da cidade deixá-la-ei.

Mas o marido lá ia ficando e as suas relações mantinham-se inalteráveis. Chegado o momento próprio, acabarei com isto duma vez para sempre, pensava. A questão parecia-lhe

de fácil solução, tanto mais que nessa época andava muito ocupado com os seus trabalhos, a construção duma nova casa, a colheita, o pagamento de dívidas e a venda de uma parte das terras. Essas coisas absorviam-no inteiramente. E tudo isso era a vida, a verdadeira vida, enquanto as suas relações com Stepanida, que vendo bem não tomava muito a sério, não tinham o mínimo interesse. É certo que, quando lhe vinha o desejo de a ver, em nada mais pensava. Isto, porém, não durava muito: depois duma entrevista, a esquecia de novo durante semanas e, às vezes, até mais.

Entretanto, começou a frequentar a cidade onde vivia a família Annensky e onde conheceu uma menina que acabava de sair do colégio. Com grande tristeza de Maria Pavlovna, Eugénio enamorou-se de Lisa e pediu-a em casamento. Assim terminaram as suas relações com Stepanida.

 

Barros Vital

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