IX - Soroterapia
Os soros heterólogos antivenenos são concentrados de
imunoglobulinas obtidos por sensibilização de diversos animais, sendo mais
utilizados os de origem eqüina. No Brasil, os laboratórios que produzem esses
imunoderivados para rede pública são:
Instituto Butantan (São Paulo), Fundação
Ezequiel Dias (Minas Gerais) e Instituto Vital Brazil (Rio de Janeiro), exceto o soro antilatrodético
(SALatr) que tem sido importado da Argentina.
Para países tropicais, a OMS recomenda que os soros sejam
apresentados na forma liofilizada, mais estável e de maior facilidade de
armazenamento. No Brasil, entretanto, o soro é somente produzido em
apresentação líquida. As ampolas devem ser conservadas em geladeira, à
temperatura de 4 a 8 graus centígrados positivos, devendo-se evitar o congelamento, sendo sua validade, em geral,
de dois a três anos.
No quadro X consta a relação dos antivenenos para o
tratamento dos acidentes por ofídios e aracnídeos e o número de ampolas
indicado nos tratamentos específicos. Todavia, deve-se levar em conta que as
doses dos soros antivenenos capazes de neutralizar o veneno circulante têm sido
revistas nos últimos anos, havendo uma tendência progressiva para utilização de
doses menores nos acidentes botrópicos. Estas recomendações baseiam-se em
estudos clínicos da neutralização dos venenos pelos soros antivenenos na
circulação sistêmica e na reversão das alterações de coagulação.
Se o número disponível de ampolas for inferior ao recomendado, a
soroterapia deve ser iniciada enquanto se providencia o tratamento complementar
1. Indicações e doses
A soroterapia
antiveneno (SAV), quando indicada, é um passo
fundamental no tratamento adequado dos pacientes picados pela maioria dos
animais peçonhentos. A dose utilizada deve ser a mesma
para adultos e crianças, visto que o
objetivo do tratamento é neutralizar a maior quantidade possível de veneno
circulante, independentemente do peso do paciente.
A sua aplicação deve ser preferencialmente realizada
em postos de atendimento médico.
A via de administração recomendada é a intravenosa (IV) e
o soro diluído ou não deve ser infundido em 20 a 60 minutos, sob estrita
vigilância médica e da enfermagem. No caso de soro
antilatrodectus, a via de administração recomendada
é a via intramuscular (IM).
A freqüência de reações à soroterapia parece ser menor
quando o antiveneno é administrado diluído. A diluição pode ser feita, a
critério médico, na razão de 1:2 a 1:5, em soro fisiológico ou glicosado 5%,
infundindo-se na velocidade de 8 a 12 ml/min, observando, entretanto, a
possível sobrecarga de volume em crianças e em pacientes com insuficiência cardíaca.
2. Reações à soroterapia
Podem ser classificados em precoces e tardias.
2.1. Reações precoces (RP)
A freqüência relatada de RP é muito variável, de 4,6%
até 87,2%. A maioria das reações
precoces (RP) ocorre durante a infusão do
antiveneno e nas duas horas subseqüentes. Comumente são consideradas leves,
todavia, é conveniente que os pacientes
sejam mantidos em observação, no mínimo por 24 horas, para detecção de outras
reações que possam ser relacionadas à
soroterapia.
Os sinais e sintomas mais freqüentemente observados
são: urticária, tremores, tosse, náuseas, dor abdominal, prurido e rubor
facial. Mais raramente são observadas RP graves, semelhantes à reação
anafilática ou anafilactóide.
Nestes casos, os pacientes podem apresentar arritmias
cardíacas, hipotensão arterial, choque e/ou quadro obstrutivo das vias
respiratórias.
A fisiopatologia das RP ainda não se encontra
estabelecida. Admite-se que a grande quantidade de proteínas heterólogas
poderia determinar formação de agregados de proteínas ou de imunocomplexos,
ativando o Complemento.
A ativação deste sistema levaria à formação de
anafilotoxinas que, por sua vez, poderiam determinar a liberação direta de mediadores
químicos dos mastócitos e basófilos, principalmente a histamina.
Os seguintes fatores podem favorecer o aparecimento de
reações precoces:
a) Dose,
concentração de proteínas e imunoglobulinas e velocidade de infusão: as reações observadas parecem ser proporcionais à
quantidade de soro administrado, à concentração de proteínas e imunoglobulinas e
à velocidade de infusão;
b) Atopia;
c) Sensibilização
à proteína de soro de cavalo, por
utilização prévia de algum tipo de soro heterólogo, ou contato anterior com
produtos eqüinos;
d) Tipo de
antiveneno: as reações são mais freqüentes
quando são utilizados soros de baixa purificação. Há evidências de que a
administração da SAV crotálico em crianças pode determinar RP mais freqüentes e
mais graves quando comparada à SAV botrópico. Por outro lado, é baixa a
freqüência de RP à SAV nos acidentes graves por escorpiões em crianças.
Admite-se que a liberação maciça de catecolaminas poderia “proteger” estes
pacientes quanto ao aparecimento de RP;
e) Via de
administração: as RP aparecem mais precocemente
quando o soro é administrado em “bolus” por via IV.
2.1.1. Prevenção das RP
A SAV não é um procedimento isento de riscos, havendo
possibilidade do aparecimento de RP, semelhantes à reação “anafilática”.
O teste de sensibilidade, cutâneo ou ocular, tem sido
excluído da rotina do tratamento de acidentes por animais peçonhentos em vários serviços no Brasil e no exterior.
Além de apresentar baixa sensibilidade e baixos valores preditivos das RP, este
procedimento retarda o início do tratamento específico. Diante destas considerações, não está indicada a
realização do teste de sensibilidade.
Não existem estudos clínicos controlados atestando a
eficácia dos diferentes pré-tratamentos em prevenir e diminuir a freqüência das
RP à SAV. Em estudo clínico controlado recente, demonstrou-se que a
prometazina, injetada pela via intramuscular, 15 minutos antes da SAV, não
reduziu a freqüência de reações precoces à soroterapia antibotrópica.
Baseados em outras experiências, alguns autores indicam
o pré-tratamento com antagonistas, dos receptores H1 da histamina e
corticosteróides. Embora estas drogas não previnam a liberação de histamina e
ativação de Complemento, poderiam antagonizar o efeito da histamina nos
órgãos-alvo, bem como diminuir a freqüência de reações tardias à SAV.
Em razão das indicações de que a vasodilatação
periférica, o rubor facial e a hipotensão arterial observadas após a liberação
da histamina são dependentes, tanto da estimulação dos receptores H1, quanto
dos receptores H2, foi associado ao esquema anterior à droga Cimetidina,
antogonista dos receptores H2 da histamina.
Aconselha-se seguir a seguinte rotina antes da
administração dos soros antivenenos:
a) Garantir um
bom acesso venoso.
b) Dentro das
possibilidades, é conveniente deixar preparado:
. laringoscópio com lâminas e tubos
traqueais adequados para o peso e idade.
. frasco de soro fisiológico (SF)
e/ou solução de Ringer lactato.
. frasco de solução aquosa de
adrenalina (1:1000) e de aminofilina (10 ml = 240 mg).
Caso seja feita a opção da pré-medicação, deve-se
administrá-la 10 a 15 minutos antes de iniciar a soroterapia:
a) Drogas
anti-histamínicas (antagonistas H1 e H2) por via
parenteral:
. Antagonistas H1: maleato de
dextroclorofeniramina (disponível em farmácia de manipulação) na dose de 0,05
mg/kg por via intramuscular (IM) ou IV, aplicar no máximo 5,0 mg; ou
prometazina (Fenergan) na dose de 0,5 mg/kg IV ou IM, aplicar no máximo 25 mg.
. Antagonistas H2: cimetidina
(Tagamet ®) na dose de 10 mg/kg, máximo de 300 mg, ou ranitidina (Antak) na
dose de 3 mg/kg, máximo de 100 mg, IV lentamente.
b) Hidrocortisona
(Solu-Cortef ®) na dose de 10
mg/kg IV. Aplicar no máximo 1.000 mg.
2.1.2. Tratamento das
RP
Apesar de se desconhecer qual a patogênese das reações
precoces, o tratamento preconizado é semelhante àquele indicado para reações
alérgicas e de anafilaxia sistêmica. Caso o paciente apresente intensa reação
urticariforme, pode-se indicar um anti-histamínico e, se não houver boa
resposta, adrenalina milesimal pela via subcutânea, na dose de 0,01 ml/kg, não
excedendo 0,3 ml.
As RP mais graves são o choque “anafilático” e a
insuficiência respiratória obstrutiva, devendo, nestas situações, serem tomadas
as seguintes condutas:
. Suspender temporariamente a
infusão da SAV
. Tratar as reações
a) Tratamento do choque
. Adrenalina (1:1000) - diluída a 1:10 na dose de 0,1 ml/kg, até 3,0 ml por
via IV ou intratraqueal ou subcutânea, por ordem de eficácia. Repetir, se
necessário, até três vezes com intervalo de cinco minutos. É a droga de escolha para o tratamento inicial. Os antagonistas H1 e os corticosteróides devem ser usados
associados à adrenalina e nunca para substituí-la.
. Hidrocortisona - 30 mg/kg IV
com dose máxima de 1.000 a 2.000
mg.
. Prometazina - 0,5 mg/kg IV
ou IM com dose
máxima de 25 mg.
. Expansão da volemia - soro fisiológico ou solução de Ringer lactato.
Iniciar a infusão rapidamente na dose de 20 ml/kg peso.
b) Tratamento
da insuficiência respiratória
. Manter oxigenação adequada - Caso ocorra edema de glote, proceder a introdução de
uma sonda adequada pela via orotraqueal, que consiga ultrapassar o orifício da
fenda glótica ou, se não for possível, realizar a cricotomia ou traqueostomia
de emergência. Para uma crise asmatiforme, pode ser realizada inalação com uma
droga broncodilatadora tipo beta b2, como fenoterol, ou aminofilina, por via
intravenosa, na dose de 3 a 5 mg/kg por dose, em intervalos de seis horas numa
infusão entre 5 a 15 minutos.
. Reiniciar a SAV - Uma vez controlada a RP grave, a SAV deve ser
reiniciada. O soro pode ser diluído em SF ou soro glicosado a 5%, numa razão de
1:2 a 1:5 e infundido mais lentamente.
2.2. Reações tardias
Também conhecidas como “Doença do Soro”, ocorrem de
cinco a 24 dias após o uso da SAV. Os pacientes podem apresentar febre, artralgia,
linfoadenomegalia, urticária e proteinúria (fig. 74).
A incidência real destas manifestações é subestimada,
pois muitos pacientes não retornam ao serviço em que foram tratados ou não lhes
foi chamada a atenção para, em caso de aparecimento da sintomatologia citada,
procurar novamente o médico. Os mecanismos mais prováveis incluem a formação de
complexo imune entre antiveneno e veneno, com ativação e consumo de
Complemento.
Dependendo da intensidade das manifestações clínicas,
pode-se utilizar um corticosteróide, como a prednisona, na dose de 1 mg/kg dia
(máximo de 60 mg) por cinco a sete dias.
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