O alerta oficial é de que a dengue deve bater mais forte
neste verão, agravando os índices de 1,4 milhão de casos notificados e as 573
mortes verificadas entre janeiro e novembro últimos. Para complicar, o
sanitarista britânico Simon Hay, da Universidade de Oxford, declarou à revista
Natureque o País pode se tornar "foco global de transmissão" em 2014,
em função da Copa. Preocupa-se com o intenso tráfego humano em capitais onde
criadouros de mosquito já são ameaça (Salvador, Fortaleza e Natal) e pede ações
preventivas já. Entre elas, a fumigação no entorno dos estádios e campanhas de
informação aos turistas. Avisa que torcedores podem trazer novos tipos de
dengue ao Brasil.
Para o médico e cientista brasileiro Carlos Medicis Morel,
há muito "achismo" no comentário de Hay e certa tendência "de
explicar o certo aos colegas do Terceiro Mundo". Aponta erro
"crasso" quando Hay fala em novos tipos de dengue entrando no País:
"Aqui já circulam as quatro variedades responsáveis por infecções humanas".
Nesta entrevista exclusiva, o ex-presidente da Fiocruz e ex-diretor do Programa
de Doenças Tropicais da Organização Mundial de Saúde (OMS) desvenda a
complexidade do combate às chamadas "doenças negligenciadas" -
expressão criada nos anos 1980 por Ken Warren, da Fundação Rockefeller. A
expressão refere-se a moléstias historicamente carentes de recursos para a
pesquisa biomédica: além da dengue, hanseníase, tuberculose, esquistossomose,
leishmaniose e malária, entre outras.
Outra estação da dengue, com os alertas de sempre: filme
que se repete?
Carlos Medicis Morel - A dengue é uma doença que se
espalhou, ameaçando vários países. O Brasil tinha ficado fora disso até os anos
1940, mas com a urbanização, a proliferação de lixo nas cidades, a acumulação
de água, enfim, a dengue se instalou. E vai ser duro eliminá-la. Um colega meu
diz que "cada governo tem a dengue que merece", pois precisa lidar
com o problema, dispondo de poucas intervenções possíveis. O que temos na mira
é o desenvolvimento de uma vacina. Há grandes instituições no mundo trabalhando
nisso, entre elas, a Fiocruz. Mas não será fácil. A vacina da Sanofi trazia
esperança, mas quando fizeram o ensaio clínico, ela imunizou bem o dengue 1, 3
e 4, deixando de fora o dengue 2.
A meu ver, a vacina não sairá antes de 2020.
Por que tanto tempo pela frente?
Carlos Medicis Morel - Você pode identificar três
fracassos no combate de uma doença: a falha da ciência, por não se chegar às
intervenções eficazes; a falha do mercado, quando há intervenções, mas a um
custo elevado, caso dos retrovirais na África; e a falha da saúde pública,
quando existem as intervenções, elas têm baixo custo, porém o acesso é
limitado. Caso da vacina de poliomielite. Na dengue, o que existe é falha da
ciência, não chegamos à vacina perfeita. E não por falta de dinheiro, mas
porque não sabemos como fazer. A Fiocruz trabalha no desenvolvimento de uma
vacina inativada, ou seja, a partir de vírus que não estão vivos. Outros
institutos, como o Butantã, desenvolvem a vacina com vírus vivos, aquela que
provoca infecção para curar. Enquanto isso, o jeito é persistir na prevenção -
limpeza de ruas, acabar com poças d'água e fazer diagnóstico antes que o doente
entre na síndrome de febre hemorrágica.
O que se quer é chegar, com a dengue, ao patamar da febre
amarela?
Carlos Medicis Morel - Isso. Hoje ninguém mais fala em
febre amarela, doença para a qual existe vacina eficiente. Só falamos quando
surge uma pequena epidemia, logo controlada. Há outras falhas de ciência por
aí: recentemente, houve problemas com vacinas para malária. Feitos os testes
clínicos, viu-se que elas protegiam 20%, 30%, ou seja, não alcançavam patamar
desejável.
No caso da malária, houve mais recursos para pesquisa,
certo?
Carlos Medicis Morel - Sim, inclusive vindos da Fundação
Gates. Também houve sucesso, na África em particular, com a utilização de
estratégias além-vacina, caso dos mosquiteiros impregnados. O fato é que a
malária na África é um problema mais sério que no Brasil. Lá temos um parasito
bem agressivo, o Plasmodium falciparum, enquanto na Amazônia legal brasileira,
encontramos o Plasmodium vivax. O falciparum mata mais, ao passo que o vivax
mata menos, porém, pode ficar dormindo no organismo. Você pensa que está curada
e, lá na frente, tem um novo episódio. E já se comprovou a perda de rendimento
escolar entre crianças com malária na Amazônia. Isso consta de belo trabalho
científico.
Pode-se dizer que as doenças negligenciadas dão um baile
na ciência?
Carlos Medicis Morel - Gosto da expressão. Dão baile
porque sempre se investiu menos nelas. São doenças de pobre, e as companhias
farmacêuticas não esperam fazer dinheiro com elas. Essas empresas só entram em
campo quando estimuladas por fator externo ou quando alguém chega com o
dinheiro para a pesquisa. Aparece uma nova febre hemorrágica na África e
ninguém presta atenção. Mas, quando aparece uma doença como a SARS, em 2003, no
Canadá, daí o mundo fica em polvorosa. A dengue teve mais recursos quando
passou a afetar o turismo de certos países. Tailândia, por exemplo.
Como o senhor definiria a transição epidemiológica
brasileira?
Carlos Medicis Morel - O Brasil passou por ela de maneira
até rápida. Hoje em dia, as doenças prevalentes no País já não são as
associadas à pobreza. Passou a ser câncer, diabete, obesidade, doenças
coronarianas e certas moléstias crônicas. Diante disso, as moléstias
negligenciadas tendem a ficar mais negligenciadas porque já não provocam aquele
impacto todo no perfil epidemiológico. Só que, em saúde pública, é preciso
cuidar da doença do rico e do pobre. Tomemos a obesidade. O prefeito de Nova
York tentou regulamentar o tamanho daqueles copões para refrigerante. E não
conseguiu. O americano se revoltou, defendendo o direito de comprar a
quantidade que quiser de Coca-Cola. Eis um novo problema de saúde pública, que
começa a afetar o nosso perfil epidemiológico.
Uma doença pode ser negligenciada pelo baixo número de
afetados?
Carlos Medicis Morel - Muita gente diz "essas doenças
não contam mais" porque atingem 5% a 10% das pessoas. Não contam até você
pegar, certo? O Brasil tem um dos altos índices de hanseníase do mundo, doença
que afeta poucos. É preocupante? Sim, porque o paciente vive um drama para si
mesmo, para a família, para quem o cerca. Presido o comitê de avaliação de um
instituto suíço, onde encontrei um pesquisador com um trabalho sobre uma doença
que você nunca ouviu falar: a úlcera de buruli. Costuma aparecer na África
central. É rara, porém terrível: vem de uma bactéria cuja infecção come a carne
humana, destrói a pele... Poucos são os afetados. Mas, quem passa por isso,
conhece o horror.
Lembra leishmaniose
Carlos Medicis Morel - Mas não é. Vou contar uma história.
Quando fiz Medicina, em Pernambuco, os alunos mais antigos diziam aos mais
novos: "Ô, calouro, vou facilitar a sua vida: se chegar algum doente de
Jacobina, na Bahia, você já pode marcar na ficha que ele tem
leishmaniose". Tal era a prevalência da doença na região. Melhoramos
muito, mas ainda não há vacina, o diagnóstico e o tratamento são complicados,
as drogas dão reação adversa. É uma das doenças que têm tido alta prioridade no
Brasil, porém, não superamos a falha da ciência. No campo das vacinas, a busca
é constante e é preciso estar sempre preparado. Todo ano, a Fiocruz, que
exporta para mais de 80 países, produz vacina de febre amarela para o nosso
consumo e termina jogando fora. Você poderia dizer: 'Ah, isso é desperdício'.
Mas seria muito pior não ter estoque à mão.
E a tuberculose? Por que o combate ainda é tão difícil?
Carlos Medicis Morel - Eis uma ameaça milenar. Neste mês,
participo de uma reunião em Nova York para discutir novos regimes terapêuticos,
já que o regime clássico começou a ser ameaçado pela tuberculose
"resistente a drogas", a "multirresistente a drogas" e a
"totalmente resistente a drogas". São três níveis de problema. Se
alguém tiver a má sorte de pegar um tipo "totalmente resistente",
terá assinado um atestado de óbito prematuro. Não há como curar. Aqui, também,
a tentativa é de superar a falha da ciência. Depois virá a falha de mercado,
pois as drogas novas não serão baratas. O problema é que o tratamento atual é
demoradíssimo. Seis a nove meses, tempo em que o doente toma dezenas de pílulas
por dia. Depois dos primeiros meses, ele não quer saber mais, joga os remédios
fora. A tuberculose precisa de tratamento diretamente observado. Outro
problema: apesar de barato, o tratamento pode demandar uma infraestrutura
custosa.
Como assim?
Carlos Medicis Morel - Vi como fazem a prevenção e o
tratamento nos Estados Unidos. Chegamos cedo a um salão de beleza em Newark,
região rica, num carro com médica, enfermeira e auxiliar. Pelo telefone, uma
manicure com tuberculose foi chamada pela equipe. Saiu do salão para tomar as
drogas diante do médico. E por que fora do salão? Para não ser estigmatizada.
Daí recebeu dois vouchers da US$ 5 cada, para gastar no supermercado. Some
tudo: remédios, carro, médica, enfermeira, auxiliar, vouchers, para uma
paciente! É uma abordagem cara. Agora imagine a tuberculose que se espalha numa
prisão lotada, em país pobre...
O governo aposta no Mais Médicos para alcançar a população
que vive afastada dos centros. Isso beneficia o combate às doenças
negligenciadas?
Carlos Medicis Morel - O problema da saúde no Brasil é
imenso e exige ações em diferentes níveis, com muito dinheiro e muita gestão.
Ou a gente se conscientiza disso ou nada feito. Há bons hospitais por aqui,
bons serviços, mas são ilhas. Queremos continente! O Brasil precisa
urgentemente de um pacto na saúde. E a solução não virá deste ou daquele
presidente. Virá de um compromisso que deixe ideologia e partidos de lado.
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