14 julho 2024

O dispositivo - A Kiss antes do incêndio Publicado em 06/12/2021

  

O dispositivo

 

O projeto é fruto de uma pesquisa coordenada pela antropóloga argentina e professora na UFSM, Virgínia Vecchioli, a docente já esteve à frente de outros trabalhos de reconstrução virtual de ambientes destruídos, como é o caso do “El Campito”, de 2018, que retratou um campo de concentração na Argentina e também foi usado em júri.

 

A partir de 2016, ao assumir o cargo na UFSM, Virgínia entrou em contato com os familiares das vítimas e conheceu a luta pela justiça. A partir desse encontro, surgiu a ideia da criação de um dispositivo que auxiliasse no júri do caso Kiss, que acontece em Porto Alegre.

 

Com a mudança de cidade, inicialmente o julgamento estava previsto para ocorrer em Santa Maria, mas as dificuldades impostas pela pandemia da Covid-19 e as condições deterioradas da boate atualmente, que a tornam pouco segura, a visitação se tornaria inviável.

 

A partir do uso do dispositivo como ferramenta do júri, é possível conhecer as condições e o interior da boate antes do incêndio.

 

Fachada da Boate Kiss: imagem gerada pelo escaneamento do Instituto de Criminalística do Distrito Federal.


Fachada da Kiss: imagem gerada no Dispositivo Interativo Digital.


Fachada da Kiss: imagem real, após o incêndio.

 

 

O projeto foi elaborado em quatro meses e a equipe era composta por sete pessoas, o trabalho técnico de desenvolvimento foi feito por Lucas Kolton, arquiteto especializado em design gráfico. Ele usou duas ferramentas: Unreal Engine – plataforma de criação de jogos usada na arquitetura para geração de imagens em realidade virtual – e o SketchUp – software que possibilita aplicar volumetria 3D.

 

A construção da plataforma teve como base o escaneamento do local realizado pelo Instituto de Criminalística do Distrito Federal (DF) em fevereiro de 2013.

 

Depois, com a planta da boate obtida a partir do escaneamento, os ambientes foram categorizados por meio de códigos. Cada uma das peças tinha uma pasta em que eram reunidas as referências, formadas por cerca de 200 fotografias coletadas dos volumes do processo.

 

A pesquisa e a catalogação envolveram material fotográfico, audiovisual e escrito. Lucas explica que a simulação em realidade virtual foi um processo evolutivo, em que, a partir de reuniões semanais, havia discussão e acréscimo de elementos que faltavam. Virgínia conta que não foram necessárias visitas ao local, uma vez que os principais documentos utilizados já tinham detalhamento suficiente.

 

Hall: imagem gerada pelo escaneamento do Instituto de Criminalística do Distrito Federal.

 

Hall: imagem do Dispositivo Interativo Digital.

 

Hall: imagem real, após o incêndio.

 

A equipe se atentou aos detalhes da arquitetura da boate, inclusive para representar desníveis no chão.


No processo de construção do dispositivo virtual do projeto anterior, o El Campito, utilizaram-se relatos de testemunhas.

 

Na reconstrução da Kiss, no entanto, não foi possível. Como o dispositivo é ferramenta de júri, deve apresentar isenção.

 

Salão menor: imagem gerada pelo escaneamento do Instituto de Criminalística do Distrito Federal.

 

Salão menor: imagem gerada pelo Dispositivo Interativo Digital.

 

Salão menor: imagem real, após o incêndio.

 

Marcelo Mendes Arigony, hoje delegado na 2ª Delegacia de Polícia de Santa Maria, era delegado de Polícia Regional na época da tragédia, e aponta que o dispositivo é importante para auxiliar os jurados no entendimento do caso.

 

Arigony afirma que, por meio dele, é possível estabelecer rumos justos quanto à sentença que será proferida. 

 

“É um instrumento disponibilizado para que aquelas pessoas possam produzir um julgamento mais justo, que é o que se espera de justiça que possa vir nesse caso”, completa.

 

O delegado ainda salienta a validade jurídica do dispositivo virtual, uma vez que o juiz utiliza a prática de íntima convicção – em que tem o direito de apreciar o fato de maneira livre e de acordo com seu entendimento, por isso, pode usar de várias ferramentas a fim da maior compreensão possível.

 

Virgínia destaca a importância do dispositivo, que é pioneiro no Brasil. A distância entre o Foro Central de Porto Alegre (local da audiência) e a boate, em Santa Maria, torna mais difícil uma visita ao local do crime.

 

“[Os jurados] não têm que se deslocar para fora da sala de audiências.

 

A cena do crime entra na sala de audiências. E isso é uma grande inovação”, evidencia a pesquisadora.

 

Flávio Silva é presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), e perdeu sua filha, Andrieli Righi da Silva, no incêndio.

 

Para ele, o dispositivo é fundamental no júri, uma vez que mostra como era a casa noturna. “Com todos aqueles obstáculos pela frente, mostra-se claramente que eles não tiveram praticamente nenhuma chance de escapar com vida lá de dentro”, afirma.

 

Salão maior, com a visão do palco: imagem gerada pelo escaneamento do Instituto de Criminalística do Distrito Federal.

 

Salão maior, com a visão do palco: imagem gerada pelo Dispositivo Interativo Digital.

 

Salão maior, com visão do palco: imagem real, após o incêndio.

  

Depois do júri, o dispositivo será disponibilizado ao público e o intuito é que se torne um memorial virtual. O projeto também terá continuidade.

 

Com o encerramento do processo, o objetivo é ouvir as vítimas e testemunhas para aprimorar o dispositivo.

 

A ideia é que ele ultrapasse a plataforma virtual, o plano da AVTSM é que a boate física seja demolida após o júri, e que no local seja construído um memorial, que vai ao encontro da luta das organizações na busca por memória e justiça, para que tragédias como a da Kiss não se repitam.

 

No projeto do dispositivo, o próximo passo idealizado pela pesquisadora e sua equipe é trabalhar com a realidade aumentada, a fim de oportunizar aos futuros visitantes conhecer a Kiss antes da tragédia e, dessa forma, permitir maior compreensão sobre sua dimensão.

 

Lucas menciona que é possível inserir pessoas no dispositivo, de forma simulada e virtual, dentro dessa proposta, está a ideia de usar relatos e depoimentos autorizados das vítimas e testemunhas para reconstruir o percurso de saída da Kiss após o início do incêndio.

 

 

Nota:

*O vídeo mencionado foi fornecido à Revista Arco pela equipe responsável pelo trajeto e simula o percurso dentro da Boate Kiss, desde a entrada até a saída.

 

 

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