05 agosto 2022

X - A Tortura da Carne

 

X

 

Despedindo-se de Samokhine, Eugénio voltou a casa tão deprimido como se tivesse cometido um crime. Primeiro, Stepanida convenceu-se de que ele desejava vê-la; segundo, a outra, essa Ana Prokhorova, sabia de tudo, evidentemente. Sentiu-se abatido. Tinha a consciência de que perdera o domínio de si próprio, que era impelido por uma força estranha, que desta vez tinha escapado, por milagre, mas que, mais cedo ou mais tarde, sucumbiria.

Sim, estava perdido! Atraiçoar a sua jovem e terna esposa com uma camponesa! Aliás toda a gente o sabia! Era a derrocada da sua vida conjugal, fora da qual ele não poderia viver.

Não, não! É preciso arrepiar caminho. Mas que devo fazer? Tudo o que me for possível, para deixar de pensar nela.

Não pensar!... E era precisamente nela que continuava à pensar! Via-a diante de si, até na sombra dos plátanos! Lembrou-se de que tinha lido algures a história dum velho que, para fugir à sedução duma mulher sobre a qual devia colocar a mão direita, a fim de a curar, punha, no entanto, a esquerda por cima de uma fogueira. «Sim, estou disposto a queimar a mão, mas não quero sucumbir». Olhando à volta de si e vendo que se encontrava só no quarto, acendeu um fósforo e chegou-o aos dedos. Bem, agora pensa nela!, disse com ironia. Mas, sentindo queimar-se, retirou os dedos e atirou para o chão o fósforo, acabando por se rir de si mesmo.

«Que estupidez! Não é preciso fazer isto. O que é preciso é tomar providências para que não a torne a ver. Afastar-me ou afastá-la. Sim, é melhor afastá-la. Dar-lhe dinheiro para

que se instale com o marido noutra parte. Isto começará a constar. Depois será o tema das conversas de toda a gente. Tudo, menos isso. Sim, tem de ser, dizia ele sem a perder de vista. Aonde é que ela vai? perguntou a si próprio. Pareceu-lhe que Stepanida o vira perto da janela e, depois de o envolver num olhar significativo ia, de braço dado com a outra mulher, para os lados do jardim, requebrando-se.

Mesmo sem dar por isso, Eugénio dirigiu-se ao escritório. VassiliNicolaievitch, de blusão novo, tomava chá com a mulher e uma visita.

- Diga-me, VassiliNicolaievitch, pode dar-me atenção por um momento?

- Porque não? Aqui me tem.

- Não, vamos antes lá para fora.

- É para já. Passa-me o chapéu, Tamia, e tapa o samovar - disse VassiliNicolaievitch, acompanhando Eugénio, de bom humor.

A este, pareceu-lhe, que VassiliNicolaievitch tinha bebido uma pinga a mais; mas talvez fosse melhor assim, talvez encarasse com mais simpatia o caso que lhe ia expor.

- Ouça. VassiliNicolaievitch, queria falar-lhe novamente acerca daquela mulher...

- Que há? Eu já dei ordem para que não voltem a chamá-la.

- Não é isso! Pensando melhor, não seria possível mandá-la daqui para fora? A ela e toda a família? É um conselho que desejo pedir-lhe.

- Mandá-los, para onde? - perguntou VassiliNicolaievitch, com estranheza e Eugénio interpretou aquelas palavras com descontentamento e ironia.

- Pensei que lhes podia dar dinheiro ou até algum terreno em Kholtovskoié, mas com a condição de ela não permanecer aqui mais tempo.

- Mas como se há-de expulsar essa gente? Como poderemos nós arrancá-los da sua terra?

Que mal lhe causa a sua presença? Em que é que os incomodam, senhor?

- É que, VassiliNicolaievitch, você deve compreender, se uma coisa destas chegasse aos ouvidos de minha mulher, seria terrível...

- Mas quem terá o atrevimento de lho dizer?

- Depois, seria para mim uma tortura constante viver, dia a dia, hora a hora, com receio de que ela viesse a saber...

- Não se apoquente. «Quem se recorda de faltas passadas, não mostra muito tino, e quem não pecou diante de Deus não é culpado perante o czar».

- Em todo o caso, acho que seria preferível levá-los para fora daqui. Você não poderia tocar nisto ao marido?

- Mas para quê? Para que é que o senhor anda com esses escrúpulos? São coisas que acontecem. E agora, quem se atreveria a censurá-lo? Ora!

- Tenha paciência... fale com o homem...

- Bem, já que assim o quer, falarei, embora eu esteja convencido de que nada se arranjará.

Esta conversa fez serenar um pouco Eugénio. Chegou até a acreditar que, por causa do seu receio, exagerara o perigo em que estava. Afinal, voltara a ter qualquer entrevista com ela?

Não, muito simplesmente, ia dar uma volta pelo jardim quando, por acaso, ela surgira. No dia da Trindade, depois do jantar, Lisa, passando pelo jardim, quis saltar uma valeta para ver no prado um pé de trevo que o marido desejava mostrar-lhe, mas, ao fazê-lo, deu um trambolhão. Caiu suavemente, de lado, soltou um ai e Eugénio viu-lhe na cara uma expressão de sofrimento. Quis levantá-la mas ela afastou-o com a mão.

- Não, Eugénio, espera um bocadinho - disse com um sorriso forçado - parece que desloquei um pé.

- Vês? Há muito tempo que eu ando a dizer-te que, no estado em que estás não deves andar aos saltos - censurou Bárbara Alexievna.

- Não, não é nada, mamã. Eu levanto-me já.

Levantou-se com a ajuda do marido, mas no mesmo instante empalideceu e o terror estampou-se-lhe no rosto.

- Sim, parece que não me sinto bem - segredou-lhe, para que a mãe não ouvisse.

- Ah, meu Deus, o que fizeram? Eu bem lhe dizia que não andasse tanto - gritava Bárbara Alexievna. - Esperem, que eu vou chamar alguém. Ela não deve caminhar. É preciso leva-la.

- Não tens medo, Lisa? Eu levo-te - disse Eugénio, passando-lhe o braço esquerdo à volta da cinta.

- Segura-te no meu pescoço. Vamos, isso mesmo - e, inclinando-se, levantou-a com o braço direito. Nunca mais Eugénio esqueceu a expressão contristada e ao mesmo tempo feliz que se refletia no rosto de Lisa.

- Não achas que peso muito, meu amor? - perguntou-lhe ela sorrindo. - Olha a mamã a correr! - E, dobrando-se para ele, beijou-o.

Eugénio gritou a Bárbara Alexievna que não se afligisse porque ele podia bem com Lisa.

Mas a sogra, parando, começou a gritar ainda com mais força:

- Tu deixa-la cair, pela certa. Olha que a matas! Não tens a consciência...

- Posso bem com ela, esteja descansada...

- Não posso, não quero ver a morte da minha filha - e correu para o fundo da alameda.

- Isto não é nada, vais ver - afirmou Lisa a sorrir.

- Oxalá que não suceda como da outra vez!

Embora Lisa pesasse um pouco, Eugénio, orgulhoso e alegre, transportou-a até casa, não querendo entregá-la à criada de quarto nem ao cozinheiro, que Bárbara Alexievna

encontrara e mandara ao encontro deles. Levou Lisa até ao quarto e deitou-a na cama estendendo-a ao comprido.

- Bem, vai-te embora - disse ela e, puxando-lhe a mão, beijou-o. - Nós cá nos arranjaremos, eu e Annuchka.

Maria Pavlovna viera também, a correr. Enquanto despiam Lisa e a metiam no leito, Eugénio, sentado numa sala próxima, com um livro na mão, esperava. Bárbara Alexievna passou diante dele com um ar tão mal encarado e tão carregado de censuras que deixou o genro aterrado.

- Que aconteceu - inquiriu.

- Para que o perguntas? Aconteceu o que possivelmente desejavas ao obrigares tua mulher a saltar a valeta.

- Bárbara Alexievna! - exclamou ele indignado. - Eu não lhe admito tais insinuações! Se me

quer atormentar e envenenar a vida... ia continuar: «Vá-se embora», mas suspendeu a frase.

A senhora não tem vergonha de me atribuir essas ideias? Não percebo porquê?

- Agora já é tarde! - e retirou-se, sacudindo com violência a coifa, ao transpor a porta. E saiu.

A queda fora efectivamente desastrosa. O pé deslocara-se, mas o pior era que o abalo sofrido podia ocasionar um aborto. Toda a gente sabia que, naquela emergência, nada havia a fazer. O mais recomendável era deixá-la repousar. Apesar disso, resolveram chamar o médico quanto antes.

«Meu prezado Nicolau Semiwovitch - escreveu Eugénio - você tem sido sempre muito amável para connosco e, por isso, mais uma vez lhe peço que venha acudir a minha mulher; ela... etc.».

 

Depois de escrever a carta, dirigiu-se à cavalariça, a fim de indicar qual o carro e os cavalos que deviam seguir para trazer o médico. Depois, voltou para casa. Eram aproximadamente dez horas da noite. Lisa, na cama, dizia que já se sentia bem e que nada lhe doía. Bárbara Alexievna, sentada à cabeceira, oculta por detrás duma rima de papéis de música, trabalhava numa grande coberta vermelha e o seu rosto denunciava que, depois do que se passara, não voltaria a haver paz naquela casa.

- Os outros podem fazer o que quiserem; eu cá entendo que já cumpri o meu dever.

Eugénio compreendia bem os sentimentos que a animavam, mas fingia não dar por isso.

Contou, com ar satisfeito e desembaraçado, que já tinha enviado a carruagem e que a égua Kavuchka puxava muito bem, engatada à esquerda.

- Quando se trata de pedir socorros urgentes é realmente ocasião propícia a experiências com cavalos? Oxalá que se não atire também com o doutor para algum barranco - disse Bárbara Alexievna, olhando fixamente detrás dos óculos, para o trabalho, que chegara agora para junto da lâmpada e sobre o qual se inclinara.

- De qualquer modo, era preciso mandá-lo buscar... Fiz o que me pareceu melhor.

- Sim, lembro-me muito bem de que os seus cavalos quase me atiraram contra uma escada...

Era uma invenção sua, já antiga; mas, desta vez, Eugénio cometeu a imprudência de afirmar que as coisas não se tinham passado como ela pretendia mostrar.

- Razão tenho eu para dizer... e quantas vezes já o disse ao príncipe, que muito me custa viver com gente injusta e falsa. Suporto tudo, mas isso não. Nunca!

- Se a alguém isto custa, é principalmente a mim - afirmou Eugénio.

- Bem se vê! Claro!

- Mas que é que se vê?

- Nada. Estou a contar as malhas.

Nesse momento, Eugénio encontrava-se perto do leito. Lisa fitava-o. Com uma das mãos, que tinha fora das roupas, ela pegou-lhe na dele e apertou-a. «Tem paciência, por mim, ela não impedirá que nos amemos», dizia o seu olhar.

- Não farei nada - murmurou ele beijando-lhe a mão húmida e, depois, os belos olhos, que se fecharam languidamente.

- Será como da outra vez? - perguntou ele. - Como te sentes?

- É horrível pensar nisso, mas julgo que o menino vive e viverá - respondeu ela, olhando para o ventre.

- Ah! é terrível, é terrível mesmo só pensar nisso.

Apesar da insistência de Lisa para que se retirasse, Eugénio ficou até junto dela; dormitava,

mas pronto a dispensar-lhe os seus cuidados. A tarde correu bem; se não esperassem pelo médico, talvez ela se levantasse. O médico chegou à hora da ceia. Disse que, embora tais acidentes pudessem ser perigosos, não havia indícios concretos e portanto só poderiam formular-se hipóteses. Aconselhou a que ficasse de cama e tomasse determinados medicamentos, posto que fosse contrário a drogas. Além disso, dissertou largamente sobre a anatomia da mulher; Bárbara Alexievna escutava-o meneando a cabeça com ar de importância. Depois de receber os seus honorários, colocados na concha da mão como é da praxe, o médico retirou-se e Lisa ficou de cama durante uma semana.

 

Barros Vital

Nenhum comentário:

Postar um comentário