05 agosto 2022

Capítulo I - Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo I

 

Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch

 

Que bela sobrecasaca húngara tem Ivan Ivanovitch! Uma autêntica maravilha, meus amigos! E toda guarnecida de galões! Seria capaz de apostar por tudo em como não se encontra outra igual. Reparai um pouco naqueles galões; sobretudo quando ele conversa com alguém, olhai-os de soslaio: é de lamber os dedos. Tenho de renunciar a descrevê-los: são veludos, ouro, vermelhos de fogo! Oh! Senhor meu Deus, e vós, S. Nicolau dos Milagres, porque não possuo eu também uma sobrecasaca como aquela?! Ivan mandou-a fazer muito antes de Ágata Fedosseievna ter partido para Kiev sabem, a Ágata Fedosseievna, a que arrancou um pedaço de orelha ao nosso escrivão com uma só dentada?

 

Ivan Ivanovitch é um excelente homem! E que casa encantadora possui um Mirgorod!

 

Rodeada, toda ela, por um alpendre apoiado em colunas de carvalho, e com bancos ao longo de todo o alpendre. Quando o calor o apoquenta, Ivan Ivanovitch despe a sobrecasaca e as calças, e em trajes interiores goza o fresco sob o seu alpendre, donde pode ver o pátio da casa e a rua. Belas macieiras e pereiras crescem mesmo diante das janelas, e quando estas estão abertas as ramagens entram pelos quartos dentro! E tudo apenas na parte da frente da casa! Se espreitarmos para o jardim, que veremos?

 

Ameixas, cerejas, ginjas, legumes em barda, girassóis, pepinos, abóboras, e até uma eira e uma forja.

 

E que homem simpático este Ivan Ivanovitch! Adora os melões! São a sua paixão! Mal acaba de jantar, instala-se, em mangas de camisa, debaixo do alpendre e ordena a Gapka que lhe traga dois melões. Não confia a ninguém o trabalho de os talhar. Corta-os cuidadosamente, embrulha as sementes num pedaço de papel, e depois saboreia-os regalada e lentamente. No fim, Gapka traz-lhe, a seu pedido, o tinteiro, e no embrulho das sementes Ivan escreve com o seu próprio punho: "Este melão foi comido a tantos de tal." E se o partilhou com algum conviva, acrescenta: "com o concurso de fulano de tal".

 

O falecido juiz de Mirgorod não se podia furtar a admirar a casa de Ivan Ivanovitch. E, santo Deus, aquilo é de fato uma bela casa! O que mais encanta nela é a variedade de pavilhões e alpendres que a envolvem: de longe, não se distinguem senão telhados que se sobrepõem uns aos outros como uma pilha de bolos folhados num prato, ou um rosário de cogumelos envolvendo um tronco de árvore. Todos estes telhados são cobertos com juncos; um salgueiro, um carvalho e duas pereiras descansam sobre eles as suas ramagens frondosas, de entre as quais espreitam para a rua minúsculas janelas de portadas ornamentadas e caiadas de branco.

 

Que homem simpático é este Ivan Ivanovitch! Entre os seus conhecimentos conta-se inclusivamente o recebedor geral de Poltava! Sempre que chega de Khorol, DorocheTarassovitchPoukhivotchka não deixa de visitar Ivan. E o arcebispo de Koliberda costuma dizer aos seus amigos particulares que, em sua opinião, ninguém melhor do que Ivan Ivanovitch sabe viver e cumprir os seus deveres de bom cristão.

 

Ah! Deus meu, como o tempo voa! No tempo de que vos falo já Ivan Ivanovitch era viúvo há mais de dez anos. Ivan não tem filhos, mas os de Gapka enchem-lhe o pátio com as suas brincadeiras movimentadas e Ivan distribui-lhes bolachas de melão e quartos de pêra. Gapka tem à sua guarda as chaves das caves e dos celeiros. No entanto, as chaves duma certa salinha e dum cofre do seu quarto de dormir são guardadas ciosamente por Ivan Ivanovitch, que não gosta que ninguém meta o nariz nesses lugares. Gapka é uma moçoila de faces frescas que usa, como é moda entre nós, uma saia metade azul metade preta, deixando ver as pernas bem torneadas.

 

E que bom cristão é este Ivan Ivanovitch! Todos os domingos enfia a sua magnífica sobrecasaca e vai à igreja. Logo à entrada, inclina-se para a direita e para a esquerda e vai colocar-se junto do coro que ele acompanha com a sua bela voz de contrabaixo. Uma vez acabado o serviço religioso, Ivan nunca se dispensa de passar revista aos mendigos, ocupação sem dúvida pouco agradável a que ele renunciaria talvez se a sua bondade não fosse uma virtude natural, espontânea.

 

Ao descobrir a mais esfarrapada e mais débil de todas as mendigas:

-Bom dia, pobre velhinha - diz-lhe Ivan. - Donde és tu?

- Da aldeia, meu bom senhor, da aldeia. Há três dias que não como nem bebo, os meus filhos, os meus próprios filhos, me puseram fora de casa.

 

- Ah! pobre infeliz. E que vens tu aqui fazer?

- Estender a mão à caridade, meu bom senhor. Na esperança de que uma alma bondosa me dê um pouco de pão...

- Hum, gostarias de comer um bom naco de pão? - pergunta geralmente Ivan Ivanovitch.

- Com certeza, meu senhor! Estou esfomeada como um lobo no inverno!

- Hum! - replica geralmente Ivan Ivanovitch.

- E carne, também te agradaria, por acaso, um pedaço de carne?

-Se a vossa bondade assim o permitir...

- Achas, então, que a carne é melhor que o pão?

- Boca com fome tudo come; não escolho, senhor, aceitarei tudo o que a vossa bondade me quiser dar.

 

E, com estas palavras, a velha, em geral, estende a mão.

- Pois bem, que o bom Deus te abençoe! - conclui Ivan Ivanovitch. - Porque ficas aí especada a olhar para mim?

Depois de dois ou três interrogatórios deste gênero, Ivan Ivanovitch regressa a casa todo empertigado, a não ser quando vai beber um copo a casa do senhor juiz ou do senhor presidente da Câmara.

 

Quem quiser agradar a Ivan Ivanovitch não tem mais do que oferecer-lhe qualquer objeto ou presenteá-lo com qualquer coisa para comer: são atitudes que lhe sensibilizam o coração.

 

Ivan Nikiforovitch é também um homem muito simpático. A sua propriedade confina com a de Ivan Ivanovitch. Os dois formam um par de amigos como nunca se viu semelhante. AntoneProkofievitchPoupopouz, que ainda hoje ostenta manchas de azul-celeste na sua casaca desbotada, e que todos os domingos janta em casa do senhor juiz, este Poupopouz andava sempre a dizer que o próprio diabo em pessoa tinha unido à mesma trela Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch: onde um estiver está o outro.

 

Ivan Nikiforovitch nunca teve mulher. Embora tenham pretendido o contrário, nada é mais falso do que essa insinuação. Eu, que o conheço muito bem, posso afirmar que ele jamais revelou a menor veleidade matrimonial. Então quem espalha esses boatos maliciosos? Se até houve quem contasse que Ivan Ivanovitch tinha nascido com uma cauda no fundo das costas! O absurdo, a inconveniência e a ignomínia desta maledicência dispensam-me de a desmentir; os meus esclarecidos leitores sabem, sem dúvida alguma, que apenas certas bruxas - aliás em número muito restrito - têm as costas ornamentadas com uma cauda.

 

Além disso as bruxas são, na sua maior parte, do sexo feminino.

 

O grande afeto que ligava estes dois amigos não significa, de maneira alguma, que não houvesse diferenças entre eles. Algumas comparações permitem avaliar dos seus respectivos caracteres. Ivan Ivanovitch domina em profundidade a arte de bem-dizer. Meu Deus, como ele fala bem! Ao ouvi-lo, tem-se a sensação de que nos arranham suavemente a cabeça ou que nos acariciam a planta dos pés.

 

Abandonamo-nos e deixamo-nos arrastar pela sua eloqüência, delicada e deliciosa como o sono depois dum banho. Ivan Nikiforovitch, pelo contrário, prefere normalmente o silêncio. Mas se, por acaso, deixa tombar uma palavra - então, meus amigos, é certo e sabido que essa palavra será mais cortante que uma lâmina! Ivan Ivanovitch é um homem alto e seco; de estatura mais baixa, Ivan Nikiforovitch estende-se em largura. A cabeça de Ivan Ivanovitch recorda um nabo com a raiz em baixo; a de Ivan Nikiforovitch lembra também um nabo, mas com a raiz no ar. Ivan Ivanovitch só dorme a sesta debaixo do alpendre depois do jantar. Ao entardecer, veste a sobrecasaca e vai entregar a sua farinha ao armazém público ou armar ratoeiras às perdizes. Ivan Nikiforovitch fica todo o santo dia deitado sobre o patamar das escadas de entrada, oferecendo o dorso, beatificamente, ao sol, se o calor não é muito forte; nunca, por nunca ser, ele põe o pé na rua. Se, durante a tarde, lhe ocorre o capricho de dar uma vista de olhos pela casa, em breve regressa à posição horizontal. Antigamente, ainda ele dava um salto até casa do vizinho. Ivan Ivanovitch, dada a sua extrema delicadeza, nunca se permite perante pessoas de boa sociedade a menor expressão malsoante, e enfurece-se se alguém deixa escapar um termo menos apropriado. Ivan Nikiforovitch, por distração, comete às vezes essa falta. Nesses momentos, Ivan Ivanovitch levanta-se e diz-lhe "Basta! Basta! Ivan Nikiforovitch! Ide, ide deitar-vos ao sol, que sempre é melhor do que cometer semelhantes sacrilégios!" Quando encontra uma mosca na sopa, Ivan Ivanovitch irrita-se, perde as estribeiras, atira o prato ao chão e ralha em altos brados. Ivan Nikiforovitch adora os banhos: instala-se comodamente no rio, apenas com a cabeça fora de água, manda colocar a seu lado uma mesa com um samovar e saboreia assim, à fresca, o seu chá. Ivan Ivanovitch barbeia-se duas vezes por semana, Ivan Nikiforovitch apenas uma vez. Ivan Ivanovitch é extremamente curioso: que ninguém pense que lhe pode contar uma história apenas até ao meio! Se há qualquer coisa que lhe desagrada, dá-o a entender imediatamente. Quanto a Ivan Nikiforovitch, é preciso ser-se muito arguto para descobrir quando está zangado ou satisfeito, que ele nunca deixa transparecer as suas emoções e reações. Ivan

Ivanovitch é essencialmente tímido por natureza. Ivan Nikiforovitch usa umas calças tão largas que nelas cabiam bem à vontade a sua casa e o quintal. Ivan Ivanovitch tem olhos grandes e expressivos, da cor do tabaco, e a boca em forma de acento circunflexo; Ivan Nikiforovitch tem uns pequeninos olhos amarelos, escondidos entre sobrancelhas espessas, as faces arredondadas, e o nariz recorda uma ameixa bem madura. Ivan Ivanovitch nunca oferece tabaco sem primeiro passar a língua pela tampa da tabaqueira, perguntando depois, no caso de vos conhecer: "Posso permitir-me oferecer-vos do meu tabaco?", ou, no caso de não vos conhecer: "Embora não tenha a honra de conhecer nem o vosso nome nem a vossa posição social, posso permitir-me, senhor, oferecer-vos do meu tabaco?" Ivan Nikiforovitch, pelo contrário, mete-vos o tabaco logo nas mãos, dizendo: "Sirva-se." Tanto Ivan Ivanovitch como Ivan Nikiforovitch detestam igualmente as pulgas.

 

Nenhum deles deixaria passar à sua porta um bufarinheiro judeu sem lhe comprar elixires diversos contra semelhantes parasitas, mas, evidentemente, só depois de lhe terem exprobrado em termos virulentos a indignidade da religião judaica.

 

Ao fim e ao cabo, e apesar destas ligeiras diferenças, tanto Ivan Ivanovitch como Ivan Nikiforovitch são dois indivíduos muito simpáticos.

 

Nikolai Gogol

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