05 agosto 2022

II - Sermão dos Bons Anos - Antonio Vieira

 

II

 

Postquamconsummati sunt dies octo, ut circumcidereturpuer, vocatum est nomen ejus Jesus, quod vocatum est abungelo, priusquam in uteroconciperetur. Comecemos por estas últimas palavras.

 

Diz S. Lucas que, passados os oito dias, termo da circuncisão, lhe puseram a Cristo por nome Jesus; e nota, antes manda notar o Evangelista, que este nome foi anunciado pelo Anjo, antes que o Senhor fosse concebido: Quod vocatum est abangelo, priusquam in uteroconciperetur. Dá razão desta advertência a glossainterlineal, e diz que foi: Ne homo videreturmachinatorhujusnominis: «Para que não parecesse este glorioso nome maquinado por invento de homens», senão mandado, como era, pela verdade de Deus. Entrou Cristo no Mundo a reduzi-lo com nome de Salvador e Libertador, que isso quer dizer Jesus; pois para que esta apelidada liberdade não a possa julgar alguém por invenção e obra humana, seja profetizada e revelada primeiro por um ministro da Providência Divina: Quod vocatum est abangelo, priusquam in uteroconciperetur.

 

Não quero referir profecias do bem que gozamos, porque as suponho mui pregadas neste lugar e mui sabidas de todos; reparar sim, e ponderar o intento delas quisera. Digo que ordenou Deus que fosse a liberdade de Portugal, como os venturosos sucessos dela, tanto tempo antes e por tão repetidos oráculos profetizada, para que, quando víssemos estas maravilhas humanas, entendêssemos que eram disposições e obras divinas, e para que nos alumiasse e confirmasse a fé onde a mesma admiração nos embaraçasse. (Falo de fé menos rigorosa, quanta cabe em matérias não definidas, posto que de grande certeza.) Alega Cristo um texto do Salmo XL, em que descreve David o meio extraordinário por onde os procedimentos injustos de um mau homem dariam princípio à redenção de todos, como seria traído o Redentor, como o pretenderiam derrubar por engano do seu estado; e intimando o Senhor o caso aos discípulos, disse estas particulares palavras: – Dicovobisantequamfiat, ut cum factumfueritcredatisquia ego sum: «Eu sou este de quem aqui fala David (que assim explicam o lugar Santo Agostinho, Ruperto, Teofilato e outros); e digo-vos isto antes que aconteça, para que depois de acontecer o creiais.»

 

Notável teologia, por certo! Se o Senhor dissera Digo-vos estas cousas para que creiais, antes que aconteçam, facilmente dito estava; isso é fé – crer o que não se vê; mas dizer as causas antes que se façam, a fim de que se creiam depois de feitas: Ut cum factumfuericredatis?! O que está feito, o que se vê, o que se apalpa necessita de fé?! – Algumas vezes sim; porque sucedem casos no Mundo, como este de que Cristo falava, tão novos e inauditos; sucedem cousas tão raras, tão prodigiosas e por meios de proporção tão desigual e muitas vezes tão contrários ao mesmo fim, que, ainda depois de vistas com os olhos, ainda depois de experimentadas com as mãos, não basta a evidência dos sentidos para as não duvidar, é necessário recorrer aos motivos da fé para lhes dar crédito: Dicovobisantequam fiat, ut cum factumfuerit, credatis. Tais considero eu os sucessos nunca imaginados de nosso Portugal, que, como excessivamente nos acreditam, assim excedem todo o crédito. Quis Deus que fossem tantos anos antes e tão vulgarmente profetizados estes sucessos, não tanto para os esperarmos futuros, quanto para os crermos presentes; não para nos alentarem a esperança antes de sucederem, mas para nos confirmaram a fé depois de sucedidos. Haviam de suceder as cousas de Portugal, como sucederam, de tão prodigiosa maneira, que, ainda depois de vistas, parece que as duvidamos; ainda depois de experimentadas, quase as não acabamos de crer: pois profetize-se esta venturosa liberdade e ainda o nome felicíssimo do libertador, muito tempo antes – priusquam in

uteroconciperetur –, para que entre as dúvidas dos sentidos, entre os assombros da admiração, peçam os olhos socorro à fé e creiam o que vêem por profetizado, quando o não creiam por visto.

 

Por duas razões se persuadem mal os homens a crer algumas cousas: ou por muito dificultosas, ou por muito desejadas; o desejo e a dificuldade fazem as cousas pouco

críveis. Era Sara de idade de noventa anos, sobre estéril; promete-lhe um anjo que Deus lhe daria fruto de bênção; e diz a Escritura que se riu e zombou muito disso Sara; e ainda depois de ter um filho chamou-lhe Isac, que quer dizer riso: Risumfecitmihi Deus. Estava S. Pedro em poder de el-rei Herodes preso e com apertada guarda; apareceu-lhe outro anjo, que lhe quebrou as cadeias e o livrou; e diz o texto sagrado: Existimabat autem se visumvidere: que «cuidava Pedro que aquilo era sonho e ilusão».

 

Pois Pedro, pois Sara, que incredulidade é esta? Vê-se Sara com um filho nos braços, e chama-lhe riso?! Vê-se Pedro com as cadeias fora das mãos, e chama-lhe sonho?! – Assim havia de ser, porque ambas eram cousas muito dificultosas e ambas muito desejadas. Desejava Sara um filho, como a sucessão de sua casa; desejava Pedro a liberdade, como a mesma liberdade bem da Igreja. A sucessão de Sara estava em poder de noventa anos; a liberdade de Pedro estava em poder de Herodes e de seus soldados; e como a dificuldade era tão grande e o desejo igual à dificuldade, ainda que viam com seus alhos e tinham nas mãos o que desejavam, a Sara, parecia-lhe cousa de riso, a Pedro parecia-lhe cousa de sonho. Que Sara estéril haja de ter filho! Que a prosápia real portuguesa esterilizada e atenuada na décima sexta geração, haja de ter descendente que lhe suceda! Que Sara, depois de noventa anos, que a coroa de Portugal, depois de sessenta, o que não teve quando estava na flor de sua idade, o que não teve quando estava com todas as suas forças o viesse alcançar depois de tão envelhecida e quebrantada! Muito desejávamos, muito suspirávamos por este bem, .mas quanto maior era o desejo, tanto mais parecia. e quase parece ainda cousa de riso: Risumfecitmihi Deus. Que Pedro em poder de el-rei Herodes; que Portugal em poder não de um. senão de muitos reis que o dominavam, lhes houvesse de escapar das mãos tão facilmente! Que Pedro cercado de guardas – Quatorquaternionibusmilitum; que Portugal, presidiado de infantaria em tantos castelos, em tantas fortalezas, sem se arrancar uma espada, sem se disparar um arcabuz; conseguisse em uma hora sua liberdade! Era empresa esta tão dificultosa, representava-se tão impossível ao discurso humano, que ainda agora parece que é sonho e ilusão: Existimabat se visumvidere. Assim lhes aconteceu aos filhos de Israel, quando se viram livres do cativeiro de Babilónia: In convertendo Dominus captivitatemSionfactisumus (lê o hebreu) sicutsomniantes: que incrédulos, de admirados, «tinham a verdade por imaginação e cuidavam que estavam sonhando o que viam com os olhos abertos.» E como os sucessos de nossa restauração eram matérias de tão dificultoso crédito, que, ainda depois de vistos, parecem sonho e quase se não acabam de crer, ordenou Deus que fossem tanto tempo antes, como tão singulares circunstâncias e com o nome do mesmo libertador profetizadas, para que a certeza das profecias desfizesse os escrúpulos da experiência; para que, sendo objecto da fé, não parecesse ilusão dos sentidos; para que, revelando-as tantos ministros de Deus, se visse que não eram inventos dos homens: Ne homo videreturmachinatorhujusnominis, quod vocatum est abangelo, priusquum in uteroconciperetur.

 

Pe. Antonio Vieira

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