05 agosto 2022

V - Sermão dos Bons Anos - Antonio Vieira

 

V

 

Daqui fica tacitamente respondida uma não mal fundada admiração, com que parece podíamos reparar os Portugueses, em que os sereníssimos duques de Bragança vivessem retirados todos estes anos, sem acudirem à liberdade do Reino, como legítimos herdeiros que eram dele. Respondido está; declaro mais a resposta: Cristo, Redentor nosso, ainda em quanto homem, como provam muitos Doutores, era legítimo herdeiro da coroa de Israel: Dabitilli Dominus Deus sedem David Patrisejus: etregnabit. Tinha tiranizado este reino Herodes, homem estrangeiro, a quem por este e por muitos outros títulos não pertencia; e como, sobre ter usurpado o Reino, lhe quisesse tirar a vida a Cristo, diz o texto, que o Senhor se lhe não opôs, antes se retirou para o Egipto: Secessit in Aegyptum. Notável acção! Não sois vós, Senhor, o verdadeiro Rei de Israel, como legítimo herdeiro seu, que, ainda que não empunhais o ceptro, Rei sois e Rei nascestes, e assim o confessam as nações e reis estrangeiros: Ubi est quinatus est RexJudiorum? Pois como vos retirais agora, como vos não apondes à tirania de Herodes, como ides viver ao Egipto, e tantos anos? Não vedes o que padecem tantos inocentes? Não ouvis que já chegam ao Céu as vozes da lastimada Raquel, que chora seus filhos: Vox in Rama audita est, ploratus et ululatusmultus, Raquel ploransfiliossuos? Pois se a vós, como a Rei natural, incumbe a restauração do Reino, como vos retirais da empresa? Nem me aleguem em contrário os poucos dias que tinha o Senhor de vida ou de idade, depois dos oito da circuncisão, porque na mesma circuncisão e na mesma retirada do Egipto tinha e lhe sobejava tudo o que era necessário para livrar do cativeiro os que nele tinham a esperança da liberdade. Ou Cristo os havia de remir com o sangue próprio, ou com o alheio: se com o próprio, bastava uma só gota do sangue da circuncisão, para remir não só o reino de Israel, senão todo o Mundo. Se com o sangue alheio o mesmo anjo que disse a S. José: Fuge in Aegyptum, podia fazer a Herodes e a todos seus presídios e soldados, o que outro anjo fez aos exércitos de el-reiSenaquerib, matando em uma noite oitenta e cinco mil dos que sitiavam a mesma Jerusalém. Pois se isto era não só possível, mas fácil, ao legítimo e verdadeiro Rei de Israel, porque o não executou então? – Porque não era ainda chegado o tempo, diz excelentemente S. Pedro Crisólogo: Cedenstempori non Herodi. Tinha decretado e disposto, que o tempo da Redenção fosse dali a trinta e três anos' e se a Providência Divina, que tudo pode, espera pelas disposições e circunstâncias do tempo; quanto mais a providência humana, a qual o não seria, se com toda a atenção e vigilância as não observasse, aguardando pelas mais convenientes e oportunas que Deus e o mesmo tempo lhe oferecesse! Assim que, podiam responder aqueles príncipes, como legítimos e naturais senhorios e herdeiros da coroa de seus avós, o que em semelhante caso disseram os famosos Macabeus, assim antes como depois de restituídos ao seu próprio património: Neque alienam terram sumpsimus, negue aliena detinemus, sedhaereditatempatrumnostrorum, quaeinjusteabaliquo tempore abinimicisnostrispossessu est; nos vero tempus habentesvindicamushaereditatempatrumnostrorum.

 

E foi de tanta importância esperar pela oportunidade do tempo, que por esta dilação se veio a lograr aquela primeira máxima de toda a razão de estado, assim da Providência Divina, como da providência humana, que é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo. Já perguntámos que razão teve Cristo para receber a circuncisão ao oitavo dia conforme a Lei. Agora pergunto: que razão teve a Lei para mandar que a circuncisão se fizesse ao oitavo dia? A circuncisão naquele tempo era o remédio do pecado original, como hoje o é o baptismo, bem que com diferente perfeição. Pois se na circuncisão consistia o remédio do pecado original, e a liberdade das almas cativas pelo pecado; porque não mandava Deus que se circuncidassem os meninos logo quando nasciam, ou ao terceiro ou ao quarto dia, senão ao oitavo? – A razão literal foi, diz o Abulense, porque quis Deus aplicar o remédio de tal maneira, que se evitasse o perigo: Quia ante octo dies potest esse vitae periculum.

 

Quando os meninos nascem, cm todos aqueles primeiros sete dias correm grande perigo de vida, porque são dias críticos e arriscados, como dizem Aristóteles e Galeno; pois

ainda que o remédio dos recém-nascidos e sua espiritual liberdade consistia na circuncisão, não se circuncidem, diz a Lei, senão ao oitavo dia, passados os sete que essa é a excelente razão de estado da providência de Deus saber dilatar o remédio, para escusar o perigo: dilate-se o remédio da circuncisão até o oitavo dia, para que se evite o

perigo da vida, que há do primeiro ao sétimo: Quia ante octo dies potest esse vitae periculum.

 

Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada. eram os dias críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse

mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo. Quando os Filisteus se quiseram levantar contra Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso. então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente.

 

Mas vejo que me dizem os lidos na Escritura, que é verdade que os Filisteus se levantaram contra Sansão, mas que ele soltou as ataduras. voltou sobre eles e desbaratou-os a todos. Primeiramente muito vai de Sansão a Sansão e de Filisteus a Filisteus. Mas dado que em tudo fora a semelhança igual, esta mesma réplica confirma mais o meu intento. Não tiveram bom sucesso os Filisteus, porque ainda que nós os imitámos em parte, eles não nos deram exemplo em tudo. Intentaram, mas não conseguiram; porque as diligências que fizeram não as aplicaram a tempo. As diligências que fizeram os Filisteus contra Sansão, foi atarem-lhe as mãos e cortarem-lhe os cabelos; mas não aproveitaram estes efeitos, ainda que se obraram: porque, devendo-se fazer ao mesmo tempo, fizeram-se em diversos. Quando lhe ataram as mãos, deixaram-lhe ficar os cabelos. com que teve força para se desatar; quando lhe

cortaram os cabelos deixaram-lhos crescer outra vez com que teve mãos para se vingar.

 

Pois que remédio tinham os Filisteus para se livrarem de todo e acabarem de uma vez com Sansão? – O remédio era fazerem como nós fizemos e como nós fazemos e como nós havemos de fazer: enquanto Sansão está com as mãos atadas, cortar-lhe os cabelos no mesmo tempo, e acabou-se Sansão. Assim o podiam vencer os Filisteus com muita facilidade, que doutra maneira não seria tão fácil. Porque se lhe não cortassem os cabelos, teria forças para desatar as mãos, e se desatassem as mãos, seria necessária muita força para lhe cortar os cabelos. Tanto como isto importa executar os remédios a tempo, como nós, por mercê de Deus, o temos feito até agora tão felizmente, conseguindo a maior empresa e evitando o menor perigo; porque soubemos esperar pelos dias oportunos, como mandava a Lei esperar pelos da circuncisão: Dies octo, ut circumcidereturpuer.

 

Pe. Antonio Vieira

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