V
Daqui fica tacitamente respondida uma não mal fundada
admiração, com que parece podíamos reparar os Portugueses, em que os sereníssimos
duques de Bragança vivessem retirados todos estes anos, sem acudirem à
liberdade do Reino, como legítimos herdeiros que eram dele. Respondido está;
declaro mais a resposta: Cristo, Redentor nosso, ainda em quanto homem, como
provam muitos Doutores, era legítimo herdeiro da coroa de Israel: Dabitilli
Dominus Deus sedem David Patrisejus: etregnabit. Tinha tiranizado este reino
Herodes, homem estrangeiro, a quem por este e por muitos outros títulos não
pertencia; e como, sobre ter usurpado o Reino, lhe quisesse tirar a vida a
Cristo, diz o texto, que o Senhor se lhe não opôs, antes se retirou para o
Egipto: Secessit in Aegyptum. Notável acção! Não sois vós, Senhor, o verdadeiro
Rei de Israel, como legítimo herdeiro seu, que, ainda que não empunhais o
ceptro, Rei sois e Rei nascestes, e assim o confessam as nações e reis
estrangeiros: Ubi est quinatus est RexJudiorum? Pois como vos retirais agora,
como vos não apondes à tirania de Herodes, como ides viver ao Egipto, e tantos
anos? Não vedes o que padecem tantos inocentes? Não ouvis que já chegam ao Céu
as vozes da lastimada Raquel, que chora seus filhos: Vox in Rama audita est,
ploratus et ululatusmultus, Raquel ploransfiliossuos? Pois se a vós, como a Rei
natural, incumbe a restauração do Reino, como vos retirais da empresa? Nem me
aleguem em contrário os poucos dias que tinha o Senhor de vida ou de idade,
depois dos oito da circuncisão, porque na mesma circuncisão e na mesma retirada
do Egipto tinha e lhe sobejava tudo o que era necessário para livrar do
cativeiro os que nele tinham a esperança da liberdade. Ou Cristo os havia de
remir com o sangue próprio, ou com o alheio: se com o próprio, bastava uma só
gota do sangue da circuncisão, para remir não só o reino de Israel, senão todo
o Mundo. Se com o sangue alheio o mesmo anjo que disse a S. José: Fuge in
Aegyptum, podia fazer a Herodes e a todos seus presídios e soldados, o que
outro anjo fez aos exércitos de el-reiSenaquerib, matando em uma noite oitenta
e cinco mil dos que sitiavam a mesma Jerusalém. Pois se isto era não só
possível, mas fácil, ao legítimo e verdadeiro Rei de Israel, porque o não
executou então? – Porque não era ainda chegado o tempo, diz excelentemente S.
Pedro Crisólogo: Cedenstempori non Herodi. Tinha decretado e disposto, que o tempo
da Redenção fosse dali a trinta e três anos' e se a Providência Divina, que
tudo pode, espera pelas disposições e circunstâncias do tempo; quanto mais a
providência humana, a qual o não seria, se com toda a atenção e vigilância as
não observasse, aguardando pelas mais convenientes e oportunas que Deus e o
mesmo tempo lhe oferecesse! Assim que, podiam responder aqueles príncipes, como
legítimos e naturais senhorios e herdeiros da coroa de seus avós, o que em
semelhante caso disseram os famosos Macabeus, assim antes como depois de
restituídos ao seu próprio património: Neque alienam terram sumpsimus, negue
aliena detinemus, sedhaereditatempatrumnostrorum, quaeinjusteabaliquo tempore
abinimicisnostrispossessu est; nos vero tempus habentesvindicamushaereditatempatrumnostrorum.
E foi de tanta importância esperar pela oportunidade
do tempo, que por esta dilação se veio a lograr aquela primeira máxima de toda
a razão de estado, assim da Providência Divina, como da providência humana, que
é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo.
Já perguntámos que razão teve Cristo para receber a circuncisão ao oitavo dia
conforme a Lei. Agora pergunto: que razão teve a Lei para mandar que a
circuncisão se fizesse ao oitavo dia? A circuncisão naquele tempo era o remédio
do pecado original, como hoje o é o baptismo, bem que com diferente perfeição.
Pois se na circuncisão consistia o remédio do pecado original, e a liberdade
das almas cativas pelo pecado; porque não mandava Deus que se circuncidassem os
meninos logo quando nasciam, ou ao terceiro ou ao quarto dia, senão ao oitavo?
– A razão literal foi, diz o Abulense, porque quis Deus aplicar o remédio de
tal maneira, que se evitasse o perigo: Quia ante octo dies potest esse vitae
periculum.
Quando os meninos nascem, cm todos aqueles primeiros
sete dias correm grande perigo de vida, porque são dias críticos e arriscados,
como dizem Aristóteles e Galeno; pois
ainda que o remédio dos recém-nascidos e sua
espiritual liberdade consistia na circuncisão, não se circuncidem, diz a Lei,
senão ao oitavo dia, passados os sete que essa é a excelente razão de estado da
providência de Deus saber dilatar o remédio, para escusar o perigo: dilate-se o
remédio da circuncisão até o oitavo dia, para que se evite o
perigo da vida, que há do primeiro ao sétimo: Quia
ante octo dies potest esse vitae periculum.
Se Portugal se levantara enquanto Castela estava
vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável
estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada. eram os dias
críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente
de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo,
e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava
tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para
que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse
mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio,
mas segurou-se o perigo. Quando os Filisteus se quiseram levantar contra
Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então
deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram a
que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim
embaraçado e preso. então se levantaram contra ele tão oportuna como
venturosamente.
Mas vejo que me dizem os lidos na Escritura, que é
verdade que os Filisteus se levantaram contra Sansão, mas que ele soltou as
ataduras. voltou sobre eles e desbaratou-os a todos. Primeiramente muito vai de
Sansão a Sansão e de Filisteus a Filisteus. Mas dado que em tudo fora a
semelhança igual, esta mesma réplica confirma mais o meu intento. Não tiveram
bom sucesso os Filisteus, porque ainda que nós os imitámos em parte, eles não
nos deram exemplo em tudo. Intentaram, mas não conseguiram; porque as
diligências que fizeram não as aplicaram a tempo. As diligências que fizeram os
Filisteus contra Sansão, foi atarem-lhe as mãos e cortarem-lhe os cabelos; mas
não aproveitaram estes efeitos, ainda que se obraram: porque, devendo-se fazer
ao mesmo tempo, fizeram-se em diversos. Quando lhe ataram as mãos, deixaram-lhe
ficar os cabelos. com que teve força para se desatar; quando lhe
cortaram os cabelos deixaram-lhos crescer outra vez
com que teve mãos para se vingar.
Pois que remédio tinham os Filisteus para se livrarem
de todo e acabarem de uma vez com Sansão? – O remédio era fazerem como nós
fizemos e como nós fazemos e como nós havemos de fazer: enquanto Sansão está
com as mãos atadas, cortar-lhe os cabelos no mesmo tempo, e acabou-se Sansão.
Assim o podiam vencer os Filisteus com muita facilidade, que doutra maneira não
seria tão fácil. Porque se lhe não cortassem os cabelos, teria forças para
desatar as mãos, e se desatassem as mãos, seria necessária muita força para lhe
cortar os cabelos. Tanto como isto importa executar os remédios a tempo, como
nós, por mercê de Deus, o temos feito até agora tão felizmente, conseguindo a
maior empresa e evitando o menor perigo; porque soubemos esperar pelos dias
oportunos, como mandava a Lei esperar pelos da circuncisão: Dies octo, ut
circumcidereturpuer.
Pe. Antonio Vieira
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