III
Temos considerado o priusquam, vamos agora ao
postquam: Postquamconsummati sunt dies octo, ut circumcidereturpuer. O que aqui
pondera e sente muito a piedade dos santos, principalmente S. Bernardo, é que,
nascido de oito dias, sujeitasse o Senhor aquele corpozinho tenro ao duro golpe
da circuncisão. Tão depressa?! Aos oito
dias já derramando sangue?! Desta pressa se espantam
os Doutores; mas eu não me espanto senão deste vagar. Que venha Cristo a remir
– e que espere dias?! E que espere horas?! E que espere instantes?! Quem cuida
que é pouco tempo oito dias, mal sabe o que é esperar pela Redenção.
Quando Cristo se encontrou com os discípulos de Emaús,
iam eles contando a história de seu Mestre e a causa que os levava peregrinos
por esse Mundo, e disseram estas notáveis palavras: Nos autem sperabamus, quia
ipse essetredempturus Israel; et nunc superhaecomniatertia dies est hodie: «Nós
esperávamos que este nosso Mestre havia de remir o povo de Israel; e no cabo de
tudo isto, vemos agora que já se vão passando três dias.» Três dias?! Pois que
muito é isso? Que espaço de tempo são três dias para uns homens desmaiarem?
Para uns homens se entristecerem? Para uns homens se desesperarem tanto? – Não
se desesperavam, porque eram três dias, senão porque eram três dias de esperar
pela Redenção. Esperavam aqueles discípulos que o Senhor havia de remir a
Israel: Nos autem sperabamusquia ipse essetredempturus Israel. E para quem está
cativo, para quem espera pela Redenção, três dias é muito tempo: Et nunc superhaecomnia:
como se foram passadas três eternidades: Tertia dies est hodie: Já se vão
passando três dias; é muito tempo para quem espera pela Redenção, quanto mais
tempo seriam os oito dias que se dilatou a circuncisão de Cristo, pois esperava
o Mundo neles, que começasse o Senhor a derramar o sangue e dar o preço com que
o remiu!
Não há dúvida que foi muito cedo para a dor, mas não
foi muito cedo para o remédio; foram poucos dias para quem vivia. mas muitos
para quem esperava. Bem o entendeu assim o Evangelista; porque, havendo de
contar estes oito dias, veja-se o aparato de palavras com que o faz:
Postquamconsummati sunt: «depois que foram consumados»; parece que armava a
dizer oito séculos, ou oito mil anos, segundo a grandeza vagarosa e a
ponderação das palavras; e no cabo disse: dies octo – oito dias, que, como eram
dias de esperar Redenção, ainda Que não foram mais que oito, pareciam uma
duração muito comprida, e que não acabavam de chegar, segundo tardavam:
Postquamconsummati sunt.
E se oito dias de esperar pela redenção, e ainda três
dias, é tanto tempo; quanto seria, ou quanto pareceria, não três dias, nem oito
dias, não três anos, nem oito anos, senão sessenta anos inteiros nos quais
Portugal esteve esperando sua redenção, debaixo de um cativeiro tão duro e tão
injusto! Não me paro a o ponderar; porque em dia tão de festa, não dizem bem
memórias de tristezas, ainda que os males passados, parte vêm a ser de alegria.
O que digo é que nos devemos alegrar com todo o coração e dar imortais
graças a Deus, pois vemos tão felizmente logradas
nossas esperanças. Nem nos pese de ter esperado tão longamente; porque se há-de
recompensar a dilação da esperança com a perpetuidade da posse.
Perguntam os Teólogos como São Tomás na terceira
parte, porque se dilatou tanto tempo o mistério da Encarnação, porque não
desceu o Verbo Eterno a remir o Mundo, senão depois de tantos anos? Várias
razões dão os Doutores: a de Santo Agostinho é muito própria do que queremos
dizer: Diufuitexpectandus, sempertenendus: Quis o Verbo Eterno que esperassem
os homens e suspirassem tantos séculos por sua vinda, porque era bem que fosse
muito tempo esperado um bem que havia de ser sempre possuído. Haviam os homens
de gozar para sempre a presença de Cristo, havia o Verbo de ser homem perpetuamente:
porque – Quod semelassumpsitnunquamdemisit – o que uma vez tomou, nunca mais o
largou; seja pois este bem por muito tempo esperado, pois há-de ser por todo o
tempo possuído, e mereça com as dilações da esperança a perpetuidade da posse:
Diufuitexpectandus, sempertenendus.
Não necessita de acomodação o lugar; de firmeza sim,
pelas dependências que tem no futuro; mas um espírito profético e português nos
fiará a conjectura desta tão
gostosa verdade. S. Frei Gil, religioso da sagrada
ordem de S. Domingos, naquelas suas tão celebradas profecias, diz desta
maneira: Lusitaniasanguineorbataregiodiuingemiscet: «A Lusitânia o reino de
Portugal, morrendo seu último rei sem filho herdeiro, gemerá e suspirará por
muito tempo.» Sedpropitiustibi Deus: «Mas lembrarse-á Deus de vós, ó Pátria
minha» – diz o Santo; Et insperateabinsperatoredimeris: «e sereis remida não
esperadamente por um rei não esperado». E depois de assim remido, depois de
assim libertado Portugal, que lhe sucederá? – Africadebellabitur: Será vencida
e conquistada África. Imperiumottomanumruet: O império otomano cairá sujeito e
rendido a seus pés. Domus Dei recuperabitur: A casa santa de Jerusalém será
finalmente recuperada. E por coroa de tão gloriosas vitórias,
Aetasaureareviviscet: «Ressuscitará a idade dourada.» Paxubiqueerit: «Haverá
paz universal no Mundo.» Felicesquividerint: «Ditosos e bem-aventurados os que
isto virem!»
Até aqui S. Frei Gil profetizando. De sorte que, assim
como antes da Redenção houve suspirar e gemer, assim depois da Redenção haverá
possuir e gozar; e assim como os suspiros e gemidos duraram por tantos anos,
assim as felicidades e bens permanecerão sem termo e sem limite. O muito, quer
Deus que não custe pouco, e era justo que a tanta glória precedesse tanta esperança,
e que quem havia de gozar sempre, suspirasse muito: Lusitaniadiuingemiscet.
Diufuitexpectandus, sempertenendus.
E já que vai de esperanças, não deixemos passar sem
ponderação aquelas palavras misteriosas da profecia:
Insperateabinsperatoredimeris. De propósito reparei nelas, para refutar com
suas próprias armas alguma relíquia, que dizem que ainda há daquela seita ou
desesperação dos que esperavam por el-rei D. Sebastião, de gloriosa e
lamentável memória. Diz a profecia: Insperateabinsperatoredimeris: «Que seria
remido Portugal não esperadamente por um rei não esperado.» Segue-se logo,
evidentemente, que não podia el-rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal,
porque o libertador prometido havia de ser um rei não esperado:
Insperateabinsperato; e el-rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como
sabemos todos. Assim que os mesmos sequazes desta Opinião, com seu esperar,
destruíram sua esperança; porque quanto o faziam mais esperado, tanto
confirmavam mais que não era ele o prometido; podendose-lhe aplicar
propriamente aquelas palavras que S. Paulo disse de Abraão: Contra spem in
spemcredidit; que «creram em uma esperança contrária à sua mesma esperança»;
porque pelo mesmo que esperavam, tinham obrigação de não esperar.
Pe. Antonio Vieira
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