05 agosto 2022

III - Sermão dos Bons Anos - Antonio Vieira

 

III

 

Temos considerado o priusquam, vamos agora ao postquam: Postquamconsummati sunt dies octo, ut circumcidereturpuer. O que aqui pondera e sente muito a piedade dos santos, principalmente S. Bernardo, é que, nascido de oito dias, sujeitasse o Senhor aquele corpozinho tenro ao duro golpe da circuncisão. Tão depressa?! Aos oito

dias já derramando sangue?! Desta pressa se espantam os Doutores; mas eu não me espanto senão deste vagar. Que venha Cristo a remir – e que espere dias?! E que espere horas?! E que espere instantes?! Quem cuida que é pouco tempo oito dias, mal sabe o que é esperar pela Redenção.

 

Quando Cristo se encontrou com os discípulos de Emaús, iam eles contando a história de seu Mestre e a causa que os levava peregrinos por esse Mundo, e disseram estas notáveis palavras: Nos autem sperabamus, quia ipse essetredempturus Israel; et nunc superhaecomniatertia dies est hodie: «Nós esperávamos que este nosso Mestre havia de remir o povo de Israel; e no cabo de tudo isto, vemos agora que já se vão passando três dias.» Três dias?! Pois que muito é isso? Que espaço de tempo são três dias para uns homens desmaiarem? Para uns homens se entristecerem? Para uns homens se desesperarem tanto? – Não se desesperavam, porque eram três dias, senão porque eram três dias de esperar pela Redenção. Esperavam aqueles discípulos que o Senhor havia de remir a Israel: Nos autem sperabamusquia ipse essetredempturus Israel. E para quem está cativo, para quem espera pela Redenção, três dias é muito tempo: Et nunc superhaecomnia: como se foram passadas três eternidades: Tertia dies est hodie: Já se vão passando três dias; é muito tempo para quem espera pela Redenção, quanto mais tempo seriam os oito dias que se dilatou a circuncisão de Cristo, pois esperava o Mundo neles, que começasse o Senhor a derramar o sangue e dar o preço com que o remiu!

 

Não há dúvida que foi muito cedo para a dor, mas não foi muito cedo para o remédio; foram poucos dias para quem vivia. mas muitos para quem esperava. Bem o entendeu assim o Evangelista; porque, havendo de contar estes oito dias, veja-se o aparato de palavras com que o faz: Postquamconsummati sunt: «depois que foram consumados»; parece que armava a dizer oito séculos, ou oito mil anos, segundo a grandeza vagarosa e a ponderação das palavras; e no cabo disse: dies octo – oito dias, que, como eram dias de esperar Redenção, ainda Que não foram mais que oito, pareciam uma duração muito comprida, e que não acabavam de chegar, segundo tardavam: Postquamconsummati sunt.

 

E se oito dias de esperar pela redenção, e ainda três dias, é tanto tempo; quanto seria, ou quanto pareceria, não três dias, nem oito dias, não três anos, nem oito anos, senão sessenta anos inteiros nos quais Portugal esteve esperando sua redenção, debaixo de um cativeiro tão duro e tão injusto! Não me paro a o ponderar; porque em dia tão de festa, não dizem bem memórias de tristezas, ainda que os males passados, parte vêm a ser de alegria. O que digo é que nos devemos alegrar com todo o coração e dar imortais

graças a Deus, pois vemos tão felizmente logradas nossas esperanças. Nem nos pese de ter esperado tão longamente; porque se há-de recompensar a dilação da esperança com a perpetuidade da posse.

 

Perguntam os Teólogos como São Tomás na terceira parte, porque se dilatou tanto tempo o mistério da Encarnação, porque não desceu o Verbo Eterno a remir o Mundo, senão depois de tantos anos? Várias razões dão os Doutores: a de Santo Agostinho é muito própria do que queremos dizer: Diufuitexpectandus, sempertenendus: Quis o Verbo Eterno que esperassem os homens e suspirassem tantos séculos por sua vinda, porque era bem que fosse muito tempo esperado um bem que havia de ser sempre possuído. Haviam os homens de gozar para sempre a presença de Cristo, havia o Verbo de ser homem perpetuamente: porque – Quod semelassumpsitnunquamdemisit – o que uma vez tomou, nunca mais o largou; seja pois este bem por muito tempo esperado, pois há-de ser por todo o tempo possuído, e mereça com as dilações da esperança a perpetuidade da posse: Diufuitexpectandus, sempertenendus.

 

Não necessita de acomodação o lugar; de firmeza sim, pelas dependências que tem no futuro; mas um espírito profético e português nos fiará a conjectura desta tão

gostosa verdade. S. Frei Gil, religioso da sagrada ordem de S. Domingos, naquelas suas tão celebradas profecias, diz desta maneira: Lusitaniasanguineorbataregiodiuingemiscet: «A Lusitânia o reino de Portugal, morrendo seu último rei sem filho herdeiro, gemerá e suspirará por muito tempo.» Sedpropitiustibi Deus: «Mas lembrarse-á Deus de vós, ó Pátria minha» – diz o Santo; Et insperateabinsperatoredimeris: «e sereis remida não esperadamente por um rei não esperado». E depois de assim remido, depois de assim libertado Portugal, que lhe sucederá? – Africadebellabitur: Será vencida e conquistada África. Imperiumottomanumruet: O império otomano cairá sujeito e rendido a seus pés. Domus Dei recuperabitur: A casa santa de Jerusalém será finalmente recuperada. E por coroa de tão gloriosas vitórias, Aetasaureareviviscet: «Ressuscitará a idade dourada.» Paxubiqueerit: «Haverá paz universal no Mundo.» Felicesquividerint: «Ditosos e bem-aventurados os que isto virem!»

 

Até aqui S. Frei Gil profetizando. De sorte que, assim como antes da Redenção houve suspirar e gemer, assim depois da Redenção haverá possuir e gozar; e assim como os suspiros e gemidos duraram por tantos anos, assim as felicidades e bens permanecerão sem termo e sem limite. O muito, quer Deus que não custe pouco, e era justo que a tanta glória precedesse tanta esperança, e que quem havia de gozar sempre, suspirasse muito: Lusitaniadiuingemiscet. Diufuitexpectandus, sempertenendus.

 

E já que vai de esperanças, não deixemos passar sem ponderação aquelas palavras misteriosas da profecia: Insperateabinsperatoredimeris. De propósito reparei nelas, para refutar com suas próprias armas alguma relíquia, que dizem que ainda há daquela seita ou desesperação dos que esperavam por el-rei D. Sebastião, de gloriosa e lamentável memória. Diz a profecia: Insperateabinsperatoredimeris: «Que seria remido Portugal não esperadamente por um rei não esperado.» Segue-se logo, evidentemente, que não podia el-rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o libertador prometido havia de ser um rei não esperado: Insperateabinsperato; e el-rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como sabemos todos. Assim que os mesmos sequazes desta Opinião, com seu esperar, destruíram sua esperança; porque quanto o faziam mais esperado, tanto confirmavam mais que não era ele o prometido; podendose-lhe aplicar propriamente aquelas palavras que S. Paulo disse de Abraão: Contra spem in spemcredidit; que «creram em uma esperança contrária à sua mesma esperança»; porque pelo mesmo que esperavam, tinham obrigação de não esperar.

 

Pe. Antonio Vieira

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