X
Despedindo-se de Samokhine, Eugénio voltou a casa tão
deprimido como se tivesse cometido um crime. Primeiro, Stepanida convenceu-se
de que ele desejava vê-la; segundo, a outra, essa Ana Prokhorova, sabia de
tudo, evidentemente. Sentiu-se abatido. Tinha a consciência de que perdera o
domínio de si próprio, que era impelido por uma força estranha, que desta vez
tinha escapado, por milagre, mas que, mais cedo ou mais tarde, sucumbiria.
Sim, estava perdido! Atraiçoar a sua jovem e terna
esposa com uma camponesa! Aliás toda a gente o sabia! Era a derrocada da sua
vida conjugal, fora da qual ele não poderia viver.
Não, não! É preciso arrepiar caminho. Mas que devo
fazer? Tudo o que me for possível, para deixar de pensar nela.
Não pensar!... E era precisamente nela que continuava
à pensar! Via-a diante de si, até na sombra dos plátanos! Lembrou-se de que
tinha lido algures a história dum velho que, para fugir à sedução duma mulher
sobre a qual devia colocar a mão direita, a fim de a curar, punha, no entanto,
a esquerda por cima de uma fogueira. «Sim, estou disposto a queimar a mão, mas
não quero sucumbir». Olhando à volta de si e vendo que se encontrava só no
quarto, acendeu um fósforo e chegou-o aos dedos. Bem, agora pensa nela!, disse
com ironia. Mas, sentindo queimar-se, retirou os dedos e atirou para o chão o
fósforo, acabando por se rir de si mesmo.
«Que estupidez! Não é preciso fazer isto. O que é
preciso é tomar providências para que não a torne a ver. Afastar-me ou afastá-la.
Sim, é melhor afastá-la. Dar-lhe dinheiro para
que se instale com o marido noutra parte. Isto
começará a constar. Depois será o tema das conversas de toda a gente. Tudo,
menos isso. Sim, tem de ser, dizia ele sem a perder de vista. Aonde é que ela
vai? perguntou a si próprio. Pareceu-lhe que Stepanida o vira perto da janela
e, depois de o envolver num olhar significativo ia, de braço dado com a outra
mulher, para os lados do jardim, requebrando-se.
Mesmo sem dar por isso, Eugénio dirigiu-se ao escritório.
VassiliNicolaievitch, de blusão novo, tomava chá com a mulher e uma visita.
- Diga-me, VassiliNicolaievitch, pode dar-me atenção
por um momento?
- Porque não? Aqui me tem.
- Não, vamos antes lá para fora.
- É para já. Passa-me o chapéu, Tamia, e tapa o
samovar - disse VassiliNicolaievitch, acompanhando Eugénio, de bom humor.
A este, pareceu-lhe, que VassiliNicolaievitch tinha
bebido uma pinga a mais; mas talvez fosse melhor assim, talvez encarasse com
mais simpatia o caso que lhe ia expor.
- Ouça. VassiliNicolaievitch, queria falar-lhe
novamente acerca daquela mulher...
- Que há? Eu já dei ordem para que não voltem a
chamá-la.
- Não é isso! Pensando melhor, não seria possível
mandá-la daqui para fora? A ela e toda a família? É um conselho que desejo
pedir-lhe.
- Mandá-los, para onde? - perguntou
VassiliNicolaievitch, com estranheza e Eugénio interpretou aquelas palavras com
descontentamento e ironia.
- Pensei que lhes podia dar dinheiro ou até algum
terreno em Kholtovskoié, mas com a condição de ela não permanecer aqui mais
tempo.
- Mas como se há-de expulsar essa gente? Como
poderemos nós arrancá-los da sua terra?
Que mal lhe causa a sua presença? Em que é que os
incomodam, senhor?
- É que, VassiliNicolaievitch, você deve compreender,
se uma coisa destas chegasse aos ouvidos de minha mulher, seria terrível...
- Mas quem terá o atrevimento de lho dizer?
- Depois, seria para mim uma tortura constante viver,
dia a dia, hora a hora, com receio de que ela viesse a saber...
- Não se apoquente. «Quem se recorda de faltas
passadas, não mostra muito tino, e quem não pecou diante de Deus não é culpado
perante o czar».
- Em todo o caso, acho que seria preferível levá-los
para fora daqui. Você não poderia tocar nisto ao marido?
- Mas para quê? Para que é que o senhor anda com esses
escrúpulos? São coisas que acontecem. E agora, quem se atreveria a censurá-lo?
Ora!
- Tenha paciência... fale com o homem...
- Bem, já que assim o quer, falarei, embora eu esteja
convencido de que nada se arranjará.
Esta conversa fez serenar um pouco Eugénio. Chegou até
a acreditar que, por causa do seu receio, exagerara o perigo em que estava.
Afinal, voltara a ter qualquer entrevista com ela?
Não, muito simplesmente, ia dar uma volta pelo jardim
quando, por acaso, ela surgira. No dia da Trindade, depois do jantar, Lisa,
passando pelo jardim, quis saltar uma valeta para ver no prado um pé de trevo
que o marido desejava mostrar-lhe, mas, ao fazê-lo, deu um trambolhão. Caiu
suavemente, de lado, soltou um ai e Eugénio viu-lhe na cara uma expressão de
sofrimento. Quis levantá-la mas ela afastou-o com a mão.
- Não, Eugénio, espera um bocadinho - disse com um
sorriso forçado - parece que desloquei um pé.
- Vês? Há muito tempo que eu ando a dizer-te que, no
estado em que estás não deves andar aos saltos - censurou Bárbara Alexievna.
- Não, não é nada, mamã. Eu levanto-me já.
Levantou-se com a ajuda do marido, mas no mesmo
instante empalideceu e o terror estampou-se-lhe no rosto.
- Sim, parece que não me sinto bem - segredou-lhe,
para que a mãe não ouvisse.
- Ah, meu Deus, o que fizeram? Eu bem lhe dizia que
não andasse tanto - gritava Bárbara Alexievna. - Esperem, que eu vou chamar
alguém. Ela não deve caminhar. É preciso leva-la.
- Não tens medo, Lisa? Eu levo-te - disse Eugénio,
passando-lhe o braço esquerdo à volta da cinta.
- Segura-te no meu pescoço. Vamos, isso mesmo - e,
inclinando-se, levantou-a com o braço direito. Nunca mais Eugénio esqueceu a
expressão contristada e ao mesmo tempo feliz que se refletia no rosto de Lisa.
- Não achas que peso muito, meu amor? - perguntou-lhe
ela sorrindo. - Olha a mamã a correr! - E, dobrando-se para ele, beijou-o.
Eugénio gritou a Bárbara Alexievna que não se
afligisse porque ele podia bem com Lisa.
Mas a sogra, parando, começou a gritar ainda com mais
força:
- Tu deixa-la cair, pela certa. Olha que a matas! Não
tens a consciência...
- Posso bem com ela, esteja descansada...
- Não posso, não quero ver a morte da minha filha - e
correu para o fundo da alameda.
- Isto não é nada, vais ver - afirmou Lisa a sorrir.
- Oxalá que não suceda como da outra vez!
Embora Lisa pesasse um pouco, Eugénio, orgulhoso e
alegre, transportou-a até casa, não querendo entregá-la à criada de quarto nem
ao cozinheiro, que Bárbara Alexievna
encontrara e mandara ao encontro deles. Levou Lisa até
ao quarto e deitou-a na cama estendendo-a ao comprido.
- Bem, vai-te embora - disse ela e, puxando-lhe a mão,
beijou-o. - Nós cá nos arranjaremos, eu e Annuchka.
Maria Pavlovna viera também, a correr. Enquanto
despiam Lisa e a metiam no leito, Eugénio, sentado numa sala próxima, com um
livro na mão, esperava. Bárbara Alexievna passou diante dele com um ar tão mal
encarado e tão carregado de censuras que deixou o genro aterrado.
- Que aconteceu - inquiriu.
- Para que o perguntas? Aconteceu o que possivelmente
desejavas ao obrigares tua mulher a saltar a valeta.
- Bárbara Alexievna! - exclamou ele indignado. - Eu
não lhe admito tais insinuações! Se me
quer atormentar e envenenar a vida... ia continuar:
«Vá-se embora», mas suspendeu a frase.
A senhora não tem vergonha de me atribuir essas
ideias? Não percebo porquê?
- Agora já é tarde! - e retirou-se, sacudindo com
violência a coifa, ao transpor a porta. E saiu.
A queda fora efectivamente desastrosa. O pé
deslocara-se, mas o pior era que o abalo sofrido podia ocasionar um aborto.
Toda a gente sabia que, naquela emergência, nada havia a fazer. O mais
recomendável era deixá-la repousar. Apesar disso, resolveram chamar o médico quanto
antes.
«Meu prezado Nicolau Semiwovitch - escreveu Eugénio -
você tem sido sempre muito amável para connosco e, por isso, mais uma vez lhe
peço que venha acudir a minha mulher; ela... etc.».
Depois de escrever a carta, dirigiu-se à cavalariça, a
fim de indicar qual o carro e os cavalos que deviam seguir para trazer o
médico. Depois, voltou para casa. Eram aproximadamente dez horas da noite.
Lisa, na cama, dizia que já se sentia bem e que nada lhe doía. Bárbara
Alexievna, sentada à cabeceira, oculta por detrás duma rima de papéis de
música, trabalhava numa grande coberta vermelha e o seu rosto denunciava que,
depois do que se passara, não voltaria a haver paz naquela casa.
- Os outros podem fazer o que quiserem; eu cá entendo
que já cumpri o meu dever.
Eugénio compreendia bem os sentimentos que a animavam,
mas fingia não dar por isso.
Contou, com ar satisfeito e desembaraçado, que já
tinha enviado a carruagem e que a égua Kavuchka puxava muito bem, engatada à
esquerda.
- Quando se trata de pedir socorros urgentes é
realmente ocasião propícia a experiências com cavalos? Oxalá que se não atire
também com o doutor para algum barranco - disse Bárbara Alexievna, olhando
fixamente detrás dos óculos, para o trabalho, que chegara agora para junto da
lâmpada e sobre o qual se inclinara.
- De qualquer modo, era preciso mandá-lo buscar... Fiz
o que me pareceu melhor.
- Sim, lembro-me muito bem de que os seus cavalos
quase me atiraram contra uma escada...
Era uma invenção sua, já antiga; mas, desta vez,
Eugénio cometeu a imprudência de afirmar que as coisas não se tinham passado
como ela pretendia mostrar.
- Razão tenho eu para dizer... e quantas vezes já o
disse ao príncipe, que muito me custa viver com gente injusta e falsa. Suporto
tudo, mas isso não. Nunca!
- Se a alguém isto custa, é principalmente a mim -
afirmou Eugénio.
- Bem se vê! Claro!
- Mas que é que se vê?
- Nada. Estou a contar as malhas.
Nesse momento, Eugénio encontrava-se perto do leito.
Lisa fitava-o. Com uma das mãos, que tinha fora das roupas, ela pegou-lhe na
dele e apertou-a. «Tem paciência, por mim, ela não impedirá que nos amemos»,
dizia o seu olhar.
- Não farei nada - murmurou ele beijando-lhe a mão
húmida e, depois, os belos olhos, que se fecharam languidamente.
- Será como da outra vez? - perguntou ele. - Como te
sentes?
- É horrível pensar nisso, mas julgo que o menino vive
e viverá - respondeu ela, olhando para o ventre.
- Ah! é terrível, é terrível mesmo só pensar nisso.
Apesar da insistência de Lisa para que se retirasse,
Eugénio ficou até junto dela; dormitava,
mas pronto a dispensar-lhe os seus cuidados. A tarde
correu bem; se não esperassem pelo médico, talvez ela se levantasse. O médico
chegou à hora da ceia. Disse que, embora tais acidentes pudessem ser perigosos,
não havia indícios concretos e portanto só poderiam formular-se hipóteses.
Aconselhou a que ficasse de cama e tomasse determinados medicamentos, posto que
fosse contrário a drogas. Além disso, dissertou largamente sobre a anatomia da
mulher; Bárbara Alexievna escutava-o meneando a cabeça com ar de importância.
Depois de receber os seus honorários, colocados na concha da mão como é da
praxe, o médico retirou-se e Lisa ficou de cama durante uma semana.
Barros Vital
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