A ENGUIA
Ao alvorecer, na pequenina aldeia, à beira-mar, padre
João, ainda estremunhado de sono, vai seguindo a praia branca, a caminho da
igrejinha, que parece ao longe, clara e alegre, levantando no nevoeiro a sua
torre esbelta. Lá vai o bom pároco dizer a sua missa e pregar o seu sermão de
quaresma... Velho e gordo, muito velho e muito gordo, padre João é muito amado
de toda a gente do lugar. E os pescadores que o vêm, vão deixando as redes e
vão também seguindo para a igreja. E o bom pároco abençoa as suas ovelhas, e
vai sorrindo, sorrindo, com aquele sorriso todo bondade e todo indulgência...
À porta da igreja, a Sra. Tomásia, velha devota que o
adora, vem ao encontro dele:
— Padre João! Aqui está um regalo que lhe quero oferecer
para o seu almocinho de hoje...
E tira do cabaz uma enguia, uma soberba enguia, grossa
e apetitosa, viva, remexendo-se.
— Deus te pague, filha! — diz o bom padre, — e os seus
olhos fulguram, cheios de júbilo e gula. E segura a enguia, e vai entrando com
ela na mão, seguido da velha devota. Que bela enguia! e padre João apalpa
voluptuosamente o peixe...
Mas já aí vem o sacristão. A igreja está cheia... A
missa vai começar... Que há de fazer o padre João da sua formosa enguia?
Deixá-la ali, expô-la ao apetite do padre Antônio, que também é guloso? Padre
João não hesita: levanta a batina e com um barbante amarra a enguia em roda da
cintura. A missa acaba. Padre João, comovido e grave, sobe ao púlpito rústico
da igreja. E a sua voz pausada começa a narrar a delícia da abstinência e das
privações: é preciso amar a Deus... é preciso evitar as torpezas do mundo...
é preciso fugir das tentações da carne... E o auditório ouve com recolhimento a
palavra suave do seu bom pároco.
Mas, de repente, que é aquilo? Os homens abrem os
olhos espantados; remexem-se as mulheres, levantando curiosamente os olhares
para o púlpito... É que, na barriga do padre João, debaixo da batina, alguma
coisa grossa está
bolindo... E já na multidão de fiéis correm uns
risinhos abafados... Padre João compreende. Pobre pároco! pobre pároco
atrapalhado! Cora até a raiz dos cabelos, balbucia, fica tonto e confuso.
Depois, cria coragem e, vencendo a vergonha, exclama:
— Não é nada do que pensais, filhas! não é carne! é
peixe! é peixe! não é carne!...
E sacode no ar, com a mão tremula, a enguia da senhora
Tomásia...
Olavo Bilac
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