Origem e evolução das
cobras
As
cobras surgiram no planeta há cerca de 140 milhões de anos, mas a sua origem
ainda é tema de debates entre os cientistas.
A
origem nos oceanos foi consenso geral durante muito tempo, mas recentemente
estudos genéticos (filogenia molecular) e novas evidências de fósseis,
indicaram que as cobras podem ter origem terrestre, e as primeiras espécies
teriam hábito fossorial (passavam a maior parte da vida enterradas em túneis
subterrâneos).
No
entanto, ambas as hipóteses podem ter acontecido se considerarmos que as patas
podem atrapalhar a locomoção, tanto na água quanto em galerias subterrâneas.
As
mesmas pressões evolutivas que atuaram para selecionar a forma do corpo de
minhocas no subsolo e de enguias na água, podem ter resultado na perda de patas
em grupos de lagartos ancestrais das cobras que viviam nestes ambientes.
As cobras pertencem à
classe Reptilia, que tradicionalmente contém quatro ordens:
- Crocodylia -
(jacarés, crocodilos
e
gaviais);
- Quelonia -(tartarugas, cágados e jabutis);
- Sphenodontida - (Tuatara);
- Squamata -(lagartos,
cobrase anfisbenas).
Sphenodontida e Squamata, formam
um grupo maior chamado Lepidosauria
(Figura 2).
Mas
alguns desses agrupamentos são artificiais, porque são classificados apenas
para facilitar o trabalho dos cientistas, e não por serem evolutivamente
próximos.
Uma
quinta ordem, Aves, é considerada como um grupo à parte, e foi elevada à
categoria de classe nas últimas décadas.
As
aves estão muito próximas dos crocodilianos, são répteis e não passam de
dinossauros emplumados, do ponto de vista evolutivo.
Neste
guia adotamos a classificação proposta por Pyron et al. (2013), mas outras
hipóteses filogenéticas (parentesco)
estão
disponíveis na literatura, como por exemplo, Townsend et al. (2004), Vidal
& Hedges (2004), Vidal e Hedges (2009) e Zaher et al. (2009).
A
Figura 2 mostra as relações filogenéticas ou de parentesco entre os grupos
taxonômicos de Lepidosauria, onde Squamata aparece como grupo irmão de
Sphenodontida.
Em
hipóteses filogenéticas (representadas por cladogramas) as linhas mais longas
significam separações mais antigas de grupos e as linhas mais curtas indicam
ancestrais em comum mais recentes.
A
primeira percepção sobre a Figura 2 é que as cobras (Serpentes) fazem parte de
um grupo maior, popularmente conhecido como lagartos.
A ordem Squamata contém
dois grandes grupos, reconhecidos por semelhanças moleculares, morfológicas e
comportamentais:
-
Dibamia;
-
Bifurcata.
O
primeiro grupo é formado pelos primeiros lagartos que perderam as patas,
atualmente restritos ao México e Indonésia.
Os
Dibamia são animais que vivem em túneis subterrâneos, quase totalmente cegos, e
aparentemente utilizam pequenas estruturas sensoriais localizadas na cabeça e
mandíbula para se orientarem e encontrarem comida.
O
grupo Bifurcata é constituído por animais que possuem a língua bifurcada e
órgão de Jacobson.
Esse
órgão é uma estrutura localizada na base do cérebro, com conexão para a região
superior e interna da boca, que tem uma função sensorial de interpretar
micro-partículas captadas no ar pela língua, para encontrar comida e se
proteger de predadores (ver o tópico “Como as cobras percebem o ambiente?”). No
entanto, em alguns grupos a visão é bem desenvolvida, e pode ser utilizada para
localizar presas.
Bifurcata é subdividido em
dois grupos:
-Gekkota;
-
Unidentata.
Gekkota é
um grupo constituído por lagartos que desenvolveram o olfato e a visão para
localizar presas, como resultado da perda da língua bífida (bifurcada) e do
órgão de Jacobson.
É representado na Amazônia por lagartixas e osgas (Figura 3), e algumas espécies são bastante comuns em Manaus (para maiores detalhes, convidamos o leitor a consultar o Guia de Lagartos da Reserva Ducke <http://ppbio.inpa.gov.br>).
Unidentata
abrange animais que possuem um pequeno dente na ponta do focinho, utilizado
apenas uma vez, para romper a casca do ovo no momento do nascimento, e em
seguida se desprende e cai.
Esse grupo é subdividido
em outros dois grupos:
-
Scincoidea;
-
Epsiquamata.
Scincoidea é
constituído por lagartos que possuem o corpo alongado, e as patas bastante
reduzidas e Epsiquamata abrange animais de língua bifurcada e órgão de Jacobson
bastante desenvolvido.
Epsiquamata é subdivido em
dois grupos:
-
Lacertoidea;
-
Toxicofera.
Lacertoidea abrange lagartos que possuem as escamas semelhantes a azulejos, como Jacurarus (Tupinambis) e Cobras-cegas (Amphisbaenidae), e Toxicofera abrange animais capazes de produzir veneno, como alguns lagartos (Monstro-de-Gila e Dragão de Komodo) e cobras.
Esse grupo é subdividido
em três grupos:
-
Anguimorpha;
-
Iguania;
-
Serpentes.
Anguimorpha compreende lagartos que aparentemente originaram separadamente no Velho (Ásia) e Novo Mundo (Américas), incluindo os Lagartos Monitores (Varanidae), que foram considerados como ancestrais das cobras por muito tempo.
Em
uma classificação mais atual, os Varanídeos têm um ancestral em comum com as
cobras e fazem parte do grupo Toxico-fera (Figura 4).
Iguania é
o grupo ao qual pertencem os Iguanas, Camaleões e Anoles (Calangos Papa-vento).
São
animais que desenvolveram a visão e a língua para localizar e capturar presas,
uma vez que perderam a língua bifurcada e a capacidade de produzir veneno.
Serpentes
constituem o grupo tratado nesse livro, cujo qual nós chamamos de cobras.
Figura
4 – A história evolutiva das cobras está sendo desvendada com o progresso da
ciência. Os lagartos Monitores eram considerados ancestrais das cobras, mas
cientistas descobriram que os dois grupos têm ancestrais em comum.
Os
répteis Squamata surgiram há
aproximadamente 250 milhões de anos, quando toda a porção terrestre do planeta
era concentrada em um continente gigante chamado Pangeia.
Há
cerca de 200 milhões de anos Pangeia sofreu uma fragmentação que resultou na
formação de dois continentes
menores,
Laurasia e Gondwana, nos hemisférios norte e sul, respectivamente.
Este
evento teve consequencias importantes sobre a radiação de Squamata, que há
cerca de 150 milhões de anos começou a colonizar a maioria dos ambientes da
Terra, com o surgimento de muitas espécies.
Entre
importantes eventos biogeográficos que influenciaram a radiação de Squamata
estão a separação entre as Américas e a África, há aproximadamente 100 milhões
de anos, e o impacto de um grande asteroide com a Terra, há cerca de 66 milhões
de anos.
O
último evento foi responsável por extinções e alterações ecológicas, que
aparentemente influenciaram profundamente a história evolutiva da biota
terrestre.
Na
Amazônia, o soerguimento da Cordilheira dos Andes, entre 23 e 2,5 milhões de
anos, foi responsável por profundas alterações na paisagem, que certamente
influenciaram a atual diversidade de espécies.
As
cobras certamente constituem o grupo de maior sucesso evolutivo dentre os
Squamata, pois representam aproximadamente 3070 das 4900 espécies conhecidas no
mundo (63%).
No
Brasil, existem pouco mais de 360 espécies, e na Amazônia brasileira cerca de
150.
Provavelmente
este número deve aumentar, pois existem ainda muitos lugares que nunca foram
cientificamente explorados, principalmente em áreas remotas na Amazônia.
Esses
locais possivelmente abrigam espécies desconhecidas pela ciência.
Os
lagartos vêm acumulando uma série de adaptações morfológicas e comportamentais
ao longo de sua história evolutiva.
Vários
grupos podem apresentar uma ou um conjunto de adaptações: corpo alongado,
dentes que injetam veneno, ossos mandibulares e maxilares que deslocam para
permitir a ingestão de presas grandes e a perda parcial ou total das patas.
Lagartos
com corpo alongado, redução ou perda total de patas podem atualmente ser
encontrados nas famílias Gekkonidae, Amphisbaenidae, Gymnophthalmidae,
Scincidae, Anguidae, entre outros (mais informações sobre estes grupos estão
disponíveis no Guia de Lagartos da Reserva Ducke <http://ppbio.inpa.gov.br>).
Somente
os membros de um grupo são consistentemente considerados cobras, a subordem
Serpentes, cujos parentes mais próximos possuem patas bem desenvolvidas.
Serpentes
pode não ser um grupo natural, uma vez que diferentes linhagens dentro dessa
subordem originaram de ancestrais diferentes. No entanto, neste livro, as
Serpentes serão consideradas como grupo natural (monofilético).
Todas
as cobras têm corpo alongado, as patas anteriores são ausentes e as posteriores
podem ser ausentes ou vestigiais, como em alguns representantes das famílias
Boidae (Jiboias) e Pythonidae (Pítons, não ocorrem naturalmente no Brasil), na
forma de esporões localizados próximos à cloaca (Figura 5).
Essas
estruturas são consideradas vestigiais, embora possam ter função reprodutiva em
rituais de corte ou em combates entre machos disputando uma fêmea. Por isso
patas vestigiais geralmente são mais evidentes em machos.
Lagartos
como o Monstro-de-Gila (Helodermatidae) da América do Norte e o Dragão de
Komodo (Varanidae) são peçonhentos (capazes de injetar veneno utilizando os
dentes), e a maioria das cobras não é considerada peçonhenta.
No
entanto, o aparelho mais adaptado para inoculação de veneno está presente nas
cobras.
A
maioria das cobras é capaz de deslocar os ossos associados à boca para poder
engolir presas grandes, uma adaptação também encontrada em espécies de
Pygopodidae, lagartos com pernas reduzidas parentes das osgas.
Figura 5 – Algumas espécies da família Boidae possuem vestígios de patas, na forma de esporões localizados próximos à cloaca, como nessa Periquitamboia Corallus batesii.
Esse
importante evento na história evolutiva das cobras ocorreu a partir de um grupo
mais antigo chamado Scolecophidia, hoje formado somente por pequenas cobras
fossoriais, que vivem enterradas em galerias subterrâneas.
Esses
animais conseguem abrir a boca em ângulos menores que 90° e por isso só
conseguem consumir presas pequenas.
um
grupo mais derivado, chamado Alethinophidia é formado pela grande maioria das
cobras e tem como característica principal a capacidade de deslocar o osso
quadrado, que conecta o maxilar à mandíbula, conferindo ao animal uma grande
abertura da boca.
Esse
evento teve grande importância para a conquista de novos ambientes pelas
cobras, uma vez que permitiu o consumo de presas relativamente maiores, e
melhorou a capacidade de defesa em espécies que produzem veneno.
Caso
você veja uma “cobra” na região de Manaus que não esteja neste livro, pode ser
que você tenha encontrado uma espécie que nós não registramos. Mas é preciso
consultar o Guia de Lagartos da Reserva Ducke (http:// ppbio.inpa.gov.br) para
verificar se não é um lagarto sem patas ou com patas reduzidas (Figura 6). Também
existem outros animais com corpo alongado e ausência de patas, como as Cecílias
(anfíbios), Mussuns e Poraquês (peixes), e minhocas (invertebrados).
Figura 6 - Alguns animais sem patas se assemelham muito a cobras, e por isso são frequentemente confundidos. Apesar da semelhança no formato do corpo, os anfisbenídeos pertencem a um grupo de lagartos sem patas evolutivamente distinto das cobras, como esta Amphisbaena fuliginosa.
Esses grupos se diferenciam das cobras principalmente por apresentarem pele úmida, mucosa, corpo sem escamas distintas, e nenhum deles é peçonhento.