I - Ofidismo
1. Introdução
Os acidentes ofídicos têm importância
médica em virtude de sua grande freqüência e gravidade. A padronização atualizada
de condutas de diagnóstico e tratamento dos acidentados é imprescindível, pois
as equipes de saúde, com freqüência considerável, não recebem informações desta
natureza durante os cursos de graduação ou no decorrer da atividade
profissional.
2. Epidemiologia
Foram notificados à FUNASA, no período de
janeiro de 1990 a dezembro de 1993, 81.611 acidentes, o que representa uma
média de 20.000 casos/ano para o país. A maioria das notificações procedeu das
regiões Sudeste e Sul, como mostra o gráfico 1, as mais populosas do país e que
contam com melhor organização de serviços de saúde e sistema de informação.
2.1. Coeficiente de incidência
Nos 81.611 casos notificados no período, o
coeficiente de incidência para o Brasil foi de aproximadamente 13,5 acidentes/100.000
habitantes. Nas diferentes regiões do país, o maior índice foi no Centro-Oeste,
como se observa na tabela 1. Ainda que apresente um alto coeficiente, é
possível que ocorra subnotificação na região Norte, tendo em vista as dificuldades
de acesso aos serviços de saúde, o mesmo ocorrendo para o Nordeste.
2.2. Distribuição mensal dos acidentes
A ocorrência do acidente ofídico está, em
geral, relacionada a fatores climáticos e aumento da atividade humana nos
trabalhos no campo (gráfico 2).
Com isso, nas regiões Sul, Sudeste e
Centro-Oeste, observa-se incremento do número de acidentes no período de setembro
a março. Na região Nordeste, os acidentes aumentam de janeiro a maio, enquanto
que, na região Norte, não se observa sazonalidade marcante, ocorrendo os
acidentes uniformemente durante todo o ano.
2.3. Gênero da serpente
Em 16,34% das 81.611 notificações
analisadas, o gênero da serpente envolvida não foi informado (tabela 2). Nos 65.911
casos de acidentes por serpente peçonhenta, quando esta variável foi referida,
a distribuição dos acidentes, de acordo com o gênero da serpente envolvida,
pode ser observada no gráfico 3.
2.4. Local da picada
O pé e a perna foram atingidos em 70,8% dos
acidentes notificados e em 13,4% a mão e o antebraço. A utilização de
equipamentos individuais de proteção como sapatos, botas, luvas de couro e
outros poderia reduzir em grande parte esses acidentes.
2.5. Faixa etária e sexo
Em 52,3% das notificações, a idade dos
acidentados variou de 15 a 49 anos, que corresponde ao grupo etário onde se
concentra a força de trabalho. O sexo masculino foi acometido em 70% dos
acidentes, o feminino em 20% e, em 10%, o sexo não foi informado.
2.6. Letalidade
Dos 81.611 casos notificados, houve
registro de 359 óbitos. Excluindo-se os 2.361 casos informados como “não peçonhentos”,
a letalidade geral para o Brasil foi de 0,45%.
O maior índice foi observado nos acidentes
por Crotalus, onde em 5.072 acidentes ocorreram 95 óbitos
(1,87%) (tabela 3).
A letalidade do acidente ofídico não se mostrou uniforme nas regiões fisiográficas, como se observa no gráfico 4.
O maior índice foi registrado no Nordeste, apesar desta região apresentar o menor coeficiente de incidência do país.
Dos 359 óbitos notificados, em 314 foi
informado o tempo decorrido entre a picada e o atendimento. Destes, em 124
(39,49%), o atendimento foi realizado nas primeiras seis horas após a picada,
enquanto que em 190 (60,51%) depois de seis horas da ocorrência do acidente. Os
dados aqui relatados demonstram a importância da precocidade do atendimento.
3. Serpentes de importância médica
3.1. Importância da identificação das serpentes
Identificar o animal causador do acidente é
procedimento importante na medida em que:
- possibilita
a dispensa imediata da maioria dos pacientes picados por serpentes não
peçonhentas;
- viabiliza
o reconhecimento das espécies de importância médica em âmbito regional;
- é
medida auxiliar na indicação mais precisa do anti-veneno a ser administrado.
Apesar da importância do diagnóstico clínico,
que orienta a conduta na grande maioria dos acidentes, o animal causador deve,
na medida do possível, ser encaminhado para identificação por técnico treinado.
A conservação dos
animais mortos pode ser feita, embora
precariamente, pela imersão dos mesmos em solução de formalina a 10% ou álcool
comum e acondicionados em frascos rotulados com os dados do acidente, inclusive
a procedência.
No Brasil, a fauna ofídica de interesse
médico está representada pelos gêneros:
- Bothrops (incluindo Bothriopsis e Porthidium)*
- Crotalus
- Lachesis
- Micrurus
- e
por alguns da Família Colubridae**
* Estes novos gêneros resultaram da revisão
do gênero Bothrops: As espécies Bothrops bilineatus, Bothrops castelnaudi e Bothrops
hyoprorus passaram a ser
denominadas Bothriopsis
bilineata, Bothriopsis taeniata e Porthidium hyoprora, respectivamente.
** As serpentes dos gêneros Philodryas e Clelia, da família Colubridae, podem ocasionar alguns acidentes com
manifestações clínicas locais.
3.2.2. Fosseta loreal
ausente
As serpentes do gênero Micrurus não apresentam fosseta loreal (fig. 4) e
possuem dentes inoculadores pouco desenvolvidos e fixos na região anterior da
boca (fig. 5).
A identificação entre os gêneros referidos
também pode ser feita pelo tipo de cauda (fig.3).
3.2. Características dos gêneros de serpentes
peçonhentas no Brasil
3.2.1.
Fosseta loreal presente
A fosseta loreal, órgão sensorial
termorreceptor, é um orifício situado entre o olho e a narina, daí a
denominação
popular de “serpente de quatro ventas”
(fig. 1). Indica com segurança que a serpente é peçonhenta e é encontrada nos
gêneros
Bothrops, Crotalus e Lachesis.
Todas as serpentes destes gêneros são
providas de dentes inoculadores bem desenvolvidos e móveis situados na porção
anterior do maxilar (fig. 2).
3.2.2. Fosseta loreal ausente
As serpentes do gênero Micrurus não
apresentam fosseta loreal (fig. 4) e possuem dentes inoculadores pouco desenvolvidos e fixos na região
anterior da boca (fig. 5).
3.3. Diferenciação básica entre serpentes peçonhentas
e não peçonhentas
O reconhecimento das cobras venenosas,
segundo o gênero, pode tornar-se mais simples utilizando-se o esquema abaixo:
* As falsas corais podem apresentar o mesmo
padrão de coloração das corais verdadeiras, sendo distinguíveis pela ausência
de dente inoculador.
** Na Amazônia, ocorrem corais verdadeiras
desprovidas de anéis vermelhos.
3.4. Características e distribuição geográfica
das serpentes brasileiras de importância médica
3.4.1.
Família Viperidae
a)
Gênero Bothrops (incluindo
Bothriopsis e Porthidium)
Compreende cerca de 30 espécies,
distribuídas por todo o território nacional (figs. 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12).
São conhecidas popularmente por: jararaca, ouricana, jararacuçu, urutu-cruzeira,
jararaca-do-rabo-branco, malhade-sapo,
patrona, surucucurana,
combóia, caiçara, e outras
denominações. Estas serpentes habitam principalmente zonas rurais e periferias
de grandes cidades, preferindo ambientes úmidos como matas e áreas cultivadas e
locais onde haja facilidade para proliferação de roedores (paióis, celeiros,
depósitos de lenha).
Têm hábitos predominantemente noturnos ou
crepusculares. Podem apresentar comportamento agressivo quando se sentem
ameaçadas, desferindo botes sem produzir ruídos.
b)
Gênero Crotalus
Agrupa várias subespécies, pertencentes à
espécie Crotalus
durissus (fig. 13).
Popularmente são conhecidas por cascavel, cascavel-quatro-ventas, boicininga, maracambóia, maracá e outras denominações populares. São encontradas
em campos abertos, áreas secas, arenosas e pedregosas e raramente na faixa
litorânea. Não ocorrem em florestas e no
Pantanal. Não têm por hábito atacar e, quando excitadas, denunciam sua presença
pelo ruído característico do guizo ou chocalho.
c)
Gênero Lachesis
Compreende a espécie Lachesis muta com duas subespécies (fig. 14). São
popularmente conhecidas por:
surucucu, surucucu-pico-de-jaca,
surucutinga, malha-de-fogo.
É a maior das serpentes peçonhentas das Américas, atingindo até 3,5m. Habitam
áreas florestais como Amazônia, Mata Atlântica e algumas enclaves de matas
úmidas do Nordeste.
3.4.2.
Família elapidae
a)
Gênero Micrurus
O gênero Micrurus compreende
18 espécies, distribuídas por todo o território nacional (figs. 15, 16 e 17).
São animais de pequeno e médio porte com tamanho em torno de 1,0 m, conhecidos
popularmente por coral, coral verdadeira ou boicorá. Apresentam anéis
vermelhos, pretos e brancos em qualquer tipo de combinação. Na Região Amazônica
e áreas limítrofes, são encontradas corais de cor marrom-escura (quase negra),
com manchas avermelhadas na região ventral.
Em todo o país, existem serpentes não
peçonhentas com o mesmo padrão de coloração das corais verdadeiras, porém
desprovidas de dentes inoculadores. Diferem ainda na configuração dos anéis
que, em alguns casos, não envolvem toda a circunferência do corpo. São
denominadas falsas-corais.
3.4.3.
Família Colubridae
Algumas espécies do gênero Philodryas (P. olfersii, P. viridissimus e P. patogoniensis) (fig. 18) e Clelia (C. clelia plumbea) (fig. 19) têm interesse médico, pois há relatos de quadro
clínico de envenenamento. São conhecidas popularmente por cobra-cipó ou cobra-verde (Philodryas) e muçurana ou
cobra-preta (Clelia).
Possuem dentes inoculadores na porção
posterior da boca e não apresentam fosseta loreal. Para injetar o veneno, mordem
e se prendem ao local.
Acidente Botrópico
1. Introdução
Corresponde ao acidente ofídico de maior
importância epidemiológica no país, pois é responsável por cerca de 90% dos
envenenamentos.
2. Ações do veneno
2.1. Ação .Proteolítica.
As lesões locais, como edema, bolhas e
necrose, atribuídas inicialmente à “ação proteolítica”, têm patogênese complexa.
Possivelmente, decorrem da atividade de proteases, hialuronidases e
fosfolipases, da liberação de mediadores da resposta inflamatória, da ação das
hemorraginas sobre o endotélio vascular e da ação pró-coagulante do veneno.
2.2. Ação coagulante
A maioria dos venenos botrópicos ativa, de
modo isolado ou simultâneo, o fator X e a protrombina. Possui também ação
semelhante à trombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina. Essas ações
produzem distúrbios da coagulação, caracterizados por consumo dos seus fatores,
geração de produtos de degradação de fibrina e fibrinogênio, podendo
ocasionar incoagulabilidade sangüínea. Este
quadro é semelhante ao da coagulação intravascular disseminada.
Os venenos botrópicos podem também levar a
alterações da função plaquetária bem como plaquetopenia.
2.3. Ação hemorrágica
As manifestações hemorrágicas são
decorrentes da ação das hemorraginas que provocam lesões na membrana basal dos
capilares, associadas à plaquetopenia e alterações da coagulação.
3. Quadro clínico
3.1. Manifestações locais
São caracterizadas pela dor e edema endurado no local da picada, de intensidade
variável e, em geral, de instalação precoce e caráter progressivo (fig. 20). Equimoses e sangramentos no ponto da picada são
freqüentes.
Infartamento ganglionar e bolhas podem
aparecer na evolução (fig. 21), acompanhados ou não de necrose.
3.2. Manifestações sistêmicas
Além de sangramentos em ferimentos cutâneos
preexistentes, podem ser observadas hemorragias à distância como
gengivorragias, epistaxes, hematêmese e hematúria. Em gestantes, há risco de
hemorragia uterina.
Podem ocorrer náuseas, vômitos, sudorese,
hipotensão arterial e, mais raramente, choque.
Com base nas manifestações clínicas e
visando orientar a terapêutica a ser empregada, os acidentes botrópicos são classificados em:
a) Leve: forma mais comum do
envenenamento, caracterizada por dor e edema local pouco intenso ou ausente, manifestações
hemorrágicas discretas ou ausentes, com ou sem alteração do Tempo de
Coagulação. Os acidentes causados por filhotes de Bothrops (< 40 cm de comprimento) podem
apresentar como único elemento de diagnóstico alteração do tempo de coagulação.
b) Moderado: caracterizado
por dor e edema evidente que ultrapassa o segmento anatômico picado, acompanhados
ou não de alterações hemorrágicas locais ou sistêmicas como gengivorragia,
epistaxe e hermatúria.
c) Grave: caracterizado por
edema local endurado intenso e extenso, podendo atingir todo o membro picado, geralmente
acompanhado de dor intensa e, eventualmente com presença de bolhas. Em
decorrência do edema, podem aparecer sinais de isquemia local devido à
compressão dos feixes vásculo-nervosos.
Manifestações sistêmicas como hipotensão
arterial, choque, oligoanúria ou hemorragias intensas definem o caso como
grave, independentemente do quadro local.
4. Complicações
4.1. Locais
a) Síndrome Compartimental: é rara, caracteriza casos graves, sendo de
difícil manejo. Decorre da compressão do feixe vásculo-nervoso conseqüente ao
grande edema que se desenvolve no membro atingido, produzindo isquemia de extremidades. As manifestações
mais importantes são a dor intensa, parestesia, diminuição da temperatura do
segmento distal, cianose e déficit motor.
b) Abscesso: sua ocorrência tem variado de 10 a 20%. A
ação “proteolítica” do veneno botrópico favorece o aparecimento de infecções
locais. Os germes patogênicos podem provir da boca do animal, da pele do
acidentado ou do uso de contaminantes sobre o ferimento. As bactérias isoladas
desses abscessos são bacilos Gramnegativos, anaeróbios e, mais raramente, cocos
Gram-positivos.
c) Necrose: é devida principalmente à ação
“proteolítica” do veneno, associada à isquemia local decorrente de lesão
vascular e de outros fatores como infecção, trombose arterial, síndrome de
compartimento ou uso indevido de torniquetes. O risco é maior nas picadas em
extremidades (dedos) podendo evoluir para gangrena (fig. 22).
4.2. Sistêmicas
a) Choque: é raro e aparece nos casos graves. Sua
patogênese é multifatorial, podendo decorrer da liberação de substâncias vasoativas, do sequestro de
líquido na área do edema e de perdas por hemorragias.
b) Insuficiência Renal Aguda (IRA): também de patogênese multifatorial, pode
decorrer da ação direta do veneno sobre os rins, isquemia renal secundária à
deposição de microtrombos nos capilares, desidratação ou hipotensão arterial e choque (vide capitulo
X).
5. Exames complementares
a) Tempo de Coagulação (TC): de fácil execução, sua determinação é
importante para elucidação diagnóstica e
para o acompanhamento dos casos (vide capítulo XI).
b) Hemograma: geralmente revela leucocitose com
neutrofilia e desvio à esquerda, hemossedimentação elevada nas primeiras horas
do acidente e plaquetopenia de intensidade variável.
c) Exame sumário de urina: pode haver proteinúria, hemafúria e
leucocitúria.
d) Outros exames laboratoriais: poderão ser solicitados, dependendo da
evolução clínica do paciente, com especial atenção aos eletrólitos, uréia e
creatinina, visando à possibilidade de detecção da insuficiência renal aguda.
e) Métodos de imunodiagnóstico: antígenos do veneno botrópico podem ser
detectados no sangue ou outros líquidos corporais por meio da técnica de ELISA
(vide capitulo XII).
6. Tratamento
6.1. Tratamento específico
Consiste na administração, o mais
precocemente possível, do soro antibotrópico (SAB) por via intravenosa e, na falta
deste, das associações antibotrópico-crotálica (SABC) ou antibotrópicolaquética
(SABL).
A posologia está indicada no quadro 1 e as
normas gerais para soroterapia estão referidas no Capitulo IX.
Se o TC permanecer alterado 24 horas após a
soroterapia, está indicada dose adicional de duas ampolas de antiveneno.
6.2. Tratamento geral
Medidas gerais devem ser tomadas como:
a) Manter elevado e estendido o segmento picado;
b) Emprego de analgésicos para alívio da dor;
c) Hidratação: manter o paciente hidratado, com diurese
entre 30 a 40 ml/hora no adulto, e 1 a 2 ml/kg/hora na criança;
d) Antibioticoterapia: o uso de antibióticos deverá ser indicado
quando houver evidência de infecção. As bactérias isoladas de material
proveniente de lesões são principalmente Morganella morganii, Escherichia coli, Providentia sp e Streptococo do
grupo D, geralmente sensíveis ao cloranfenicol. Dependendo da evolução clínica,
poderá ser indicada a associação de clindamicina com aminoglicosídeo.
6.3. Tratamento das complicações locais
Firmado o diagnóstico de síndrome de
compartimento, a fasciotomia não deve ser retardada, desde que as condições
de hemostasia do paciente o permitam. Se necessário, indicar transfusão de
sangue, plasma fresco congelado ou crioprecipitado.
O debridamento de áreas necrosadas
delimitadas e a drenagem de abscessos devem ser efetuados. A necessidade de
cirurgia reparadora deve ser considerada nas perdas extensas de tecidos e todos
os esforços devem ser feitos no sentido de se preservar o segmento acometido.
7. Prognóstico
Geralmente é bom. A letalidade nos casos
tratados é baixa (0,3%). Há possibilidade de ocorrer seqüelas locais anatômicas
ou funcionais.
Acidente Crotálico
1. Introdução
É responsável por cerca de 7,7% dos
acidentes ofídicos registrados no Brasil, podendo representar até 30% dos acidentes
em algumas regiões. Apresenta o maior coeficiente de letalidade devido à
freqüência com que evolui para insuficiência renal aguda (IRA).
Observação: As informações que se seguem referem-se
aos estudos realizados com as cascavéis das subespécies Crotalus durissus terrificus, C. d.
collilineatus e C. d. cascavella e as observações clínicas dos acidentes
ocasionados por estas serpentes nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e
Nordeste. Os dados sobre acidentes com cascavéis da região Norte são ainda
pouco conhecidos.
2. Ações do veneno
São três as ações principais do veneno
crotálico neurotóxica, miotóxica e coagulante.
2.1. Ação neurotóxica
Produzida principalmente pela fração
crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica que atua nas terminações nervosas
inibindo a liberação de acetilcolina. Esta inibição é o principal fator
responsável pelo bloqueio neuromuscular do qual decorrem as paralisias motoras
apresentadas pelos pacientes.
2.2. Ação miotóxica
Produz lesões de fibras musculares
esqueléticas (rabdomiólise) com liberação de enzimas e mioglobina para o soro e
que são posteriormente excretadas pela urina. Não está identificada a fração do
veneno que produz esse efeito
miotóxico sistêmico. Há referências
experimentais da ação miotóxica local da crotoxina e da crotamina. A
mioglobina, e o veneno como possuindo atividade hemolítica “in vivo”. Estudos mais recentes não demonstram a
ocorrência de hemólise nos acidentes humanos.
2.3. Ação coagulante
Decorre de atividade do tipo trombina que
converte o fibrinogênio diretamente em fibrina. O consumo do fibrinogênio pode
levar à incoagulabilidade sangüínea. Geralmente não há redução do número de
plaquetas. As manifestações hemorrágicas, quando presentes, são discretas.
3. Quadro clínico
3.1. Manifestações locais
São pouco importantes, diferindo dos
acidentes botrópico e laquético. Não há dor, ou esta pode ser de pequena intensidade.
Há parestesia local ou regional, que pode persistir por tempo variável, podendo
ser acompanhada de edema discreto ou eritema no ponto da picada.
3.2. Manifestações sistêmicas
a) Gerais: mal-estar, prostração, sudorese, náuseas,
vômitos, sonolência ou inquietação e secura da boca podem
aparecer precocemente e estar relacionadas
a estímulos de origem diversas, nos quais devem atuar o medo e a tensão
emocional desencadeados pelo acidente.
b) Neurológicas: decorrem da ação neurotóxica do veneno,
surgem nas primeiras horas após a picada, e caracterizam o fácies miastênica
(fácies neurotóxica de Rosenfeld) evidenciadas por ptose palpebral uni ou bilateral,
flacidez da musculatura da face (fig. 23), alteração do diâmetro pupilar,
incapacidade de movimentação do globo ocular (oftalmoplegia), podendo existir
dificuldade de acomodação (visão turva) e/ou visão dupla (diplopia). Como
manifestações menos freqüentes, pode-se encontrar paralisia velopalatina, com
dificuldade à deglutição, diminuição do
reflexo do vômito, alterações do paladar e olfato.
c) Musculares: a
ação miotóxica provoca dores musculares generalizadas (mialgias) que podem
aparecer precocemente. A fibra muscular esquelética lesada libera quantidades
variáveis de mioglobina que é excretada pela
urina (mioglobinúria), conferindo-lhe uma cor avermelhada ou de tonalidade mais
escura, até o marrom (fig. 24). A mioglobinúria constitui a manifestação
clínica mais evidente da necrose da musculatura esquelética (rabdomiólise).
d) Distúrbios da Coagulação: pode haver incoagulabilidade sangüínea ou aumento do Tempo de
Coagulação (TC), em aproximadamente 40% dos pacientes, observando-se raramente
sangramentos restritos às gengivas (gengivorragia).
3.3. Manifestações clínicas pouco freqüentes
Insuficiência respiratória aguda,
fasciculações e paralisia de grupos musculares têm sido relatadas. Tais
fenômenos são interpretados como decorrentes da atividade neurotóxica e/ou da
ação miotóxica do veneno.
Com base nas manifestações clínicas, o envenenamento crotálico pode ser classificado em:
a) Leve: caracteriza-se pela
presença de sinais e sintomas neurotóxicos discretos, de aparecimento tardio,
sem mialgia ou alteração da cor da urina ou mialgia discreta.
b) Moderado: caracteriza-se
pela presença de sinais e sintomas neurotóxicos discretos, de instalação
precoce, mialgia discreta e a urina pode apresentar coloração alterada.
c) Grave: os sinais e sintomas
neurotóxicos são evidentes e intensos (fácies miastênica, fraqueza muscular), a
mialgia é intensa e generalizada, a urina é escura, podendo haver oligúria ou
anúria.
4. Complicações
a) Locais: raros pacientes
evoluem com parestesias locais duradouras, porém reversíveis após algumas
semanas.
b) Sistêmicas: a
principal complicação do acidente crotálico, em nosso meio, é a insuficiência renal aguda (IRA), com necrose tubular geralmente de
instalação nas primeiras 48 horas (vide capítulo X).
5. Exames complementares
a) Sangue: como resultado da
miólise, há liberação de mioglobina e enzimas, podendo-se observar valores séricos
elevados de creatinoquinase (CK), desidrogenase lática (LDH),
aspartase-amino-transferase (AST), aspartase-alanino-transferase (ALT) e
aldolase. O aumento da CK é precoce, com pico de máxima elevação dentro das
primeiras 24 horas após o acidente, O aumento da LDH é mais lento e gradual,
constituindo-se, pois, em exame laboratorial complementar para diagnóstico
tardio do envenenamento crotálico.
Na fase oligúrica da IRA, são observadas elevação
dos níveis de uréia, creatinina, ácido úrico, fósforo, potássio e diminuição da
calcemia.
O Tempo de Coagulação (TC) freqüentemente
está prolongado.
O hemograma pode mostrar leucocitose, com
neutrofilia e desvio à esquerda, às vezes com presença de granulações tóxicas.
b) Urina: o sedimento urinário
geralmente é normal quando não há IRA. Pode haver proteinúria discreta, com ausência
de hematúria. Há presença de mioglobina, que pode ser detectável pelo teste de
benzidina ou pelas tiras reagentes para uroanálise ou por métodos específicos
imunoquímicos como imunoeletroforese, imunodifusão e o teste de aglutinação de
mioglobina em látex.
6. Tratamento
6.1. Específico
O soro anticrotálico (SAC) deve ser
administrado intravenosamente, segundo as especificações incluídas no capítulo Soroterapia.
A dose varia de acordo com a gravidade do caso, devendo-se ressaltar que a
quantidade a ser ministrada à criança é a mesma do adulto. Poderá ser utilizado
o soro antibotrópico-crotálico (SABC).
6.2. Geral
A hidratação adequada é de fundamental
importância na prevenção da IRA e será satisfatória se o paciente mantiver
o fluxo urinário de 1 ml a 2 ml/kg/hora na
criança e 30 a 40 ml/hora no adulto.
A diurese osmótica pode ser induzida com o
emprego de solução de manitol a 20% (5 ml/kg na criança e 100 ml no adulto).
Caso persista a oligúria, indica-se o uso de diuréticos de alça tipo furosemida
por via intravenosa (1 mg/kg/ dose na criança e 40mg/dose no adulto).
O pH urinário deve ser mantido acima de 6,5
pois a urina ácida potencia a precipitação intratubular de mioglobina.
Assim, a alcalinação da urina deve ser
feita pela administração parenteral de bicarbonato de sódio, monitorizada por controle
gasométrico.
7. Prognóstico
É bom nos acidentes leves e moderados e nos
pacientes atendidos nas primeiras seis horas após a picada, onde se observa a
regressão total de sintomas e sinais após alguns dias. Nos acidentes graves, o
prognóstico está vinculado à
existência de IRA. É mais reservado quando
há necrose tubular aguda de natureza hipercatabólica pois a evolução do quadro
está relacionada com a possibilidade de instalação de processo dialítico
eficiente, em tempo hábil.
Acidente Laquético
1. Introdução
Existem poucos casos relatados na
literatura. Por se tratar de serpentes encontradas em áreas florestais, onde a densidade
populacional é baixa e o sistema de notificação não é tão eficiente, as
informações disponíveis sobre esses
acidentes são escassas.
Estudos preliminares realizados com
imunodiagnóstico (ELISA) sugerem que os acidentes por Lachesis são raros,
mesmo na região Amazônica.
2. Ações do veneno
2.1. Ação proteolítica
Os mecanismos que produzem lesão tecidual
provavelmente são os mesmos do veneno botrópico, uma vez que a atividade
proteolítica pode ser comprovada in vitro pela
presença de proteases.
2.2. Ação coagulante
Foi obtida a caracterização parcial de uma
fração do veneno com atividade tipo trombina.
2.3. Ação hemorrágica
Trabalhos experimentais demonstraram
intensa atividade hemorrágica do veneno de Lachesis muta muta, relacionada à presença de hemorraginas.
2.4. Ação neurotóxica
É descrita uma ação do tipo estimulação
vagal, porém ainda não foi caracterizada a fração específica responsável
por essa atividade.
3. Quadro clínico
3.1. Manifestações locais
São semelhantes às descritas no acidente
botrópico, predominando a dor e edema, que podem progredir para todo o membro.
Podem surgir vesículas e bolhas de conteúdo seroso ou sero-hemorrágico nas
primeiras horas após o acidente (fig. 25). As manifestações hemorrágicas
limitam-se ao local da picada na maioria dos casos.
3.2. Manifestações sistêmicas
São relatados hipotensão arterial,
tonturas, escurecimento da visão, bradicardia, cólicas abdominais e diarréia (síndrome
vagal).
Os acidentes laquéticos são classificados como moderados e
graves. Por serem serpentes de grande porte, considera-se
que a quantidade de veneno por elas injetada é potencialmente muito grande. A
gravidade é avaliada segundo os sinais locais e pela intensidade das
manifestações sistêmicas.
4. Complicações
As complicações locais descritas no
acidente botrópico (síndrome compartimental, necrose, infecção secundária, abscesso,
déficit funcional) também podem estar presentes no acidente laquético.
5. Exames complementares
A determinação do Tempo de Coagulação (TC)
é importante medida auxiliar no diagnóstico do envenenamento e acompanhamento
dos casos. Dependendo da evolução, outros exames laboratoriais podem estar
indicados (hemograma, dosagens de uréia, creatinina e eletrólitos). O
imunodiagnóstico vem sendo utilizado em caráter experimental, não estando
disponível na rotina dos atendimentos.
6. Diagnóstico diferencial
Os acidentes botrópico e laquético são
muito semelhantes do ponto de vista clínico, sendo, na maioria das vezes, difícil
o diagnóstico diferencial. As manifestações da “síndrome vagal” poderiam
auxiliar na distinção entre o acidente laquético
e o botrópico.
Estudos preliminares, empregando
imunodiagnóstico (ELISA), têm demonstrado que a maioria dos acidentes referidos
pelos pacientes como causados por Lachesis é
do gênero botrópico.
7. Tratamento
7.1. Tratamento específico
O soro antilaquético (SAL), ou
antibotrópico-laquético (SABL) deve ser utilizado por via intravenosa (quadro
III).
Nos casos de acidente laquético comprovado
e na falta dos soros específicos, o tratamento deve ser realizado com soro
antibotrópico, apesar deste não neutralizar de maneira eficaz a ação coagulante
do veneno laquético.
7.2. Tratamento geral
Devem ser tomadas as mesmas medidas
indicadas para o acidente botrópico.
Acidente Elapídico
1. Introdução
Corresponde a 0,4% dos acidentes por
serpentes peçonhentas registrados no Brasil. Pode evoluir para insuficiência respiratória
aguda, causa de óbito neste tipo de envenenamento.
2. Ações do veneno
Os constituintes tóxicos do veneno são
denominados neurotoxinas (NTXs) e atuam da seguinte forma:
2.1. NTX de ação pós-sináptica
Existem em todos os venenos elapídicos até
agora estudados. Em razão do seu baixo peso molecular podem ser rapidamente
absorvidas para a circulação sistêmica, difundidas para os tecidos, explicando
a precocidade dos sintomas de envenenamento. As NTXs competem com a
acetilcolina (Ach) pelos receptores colinérgicos da junção neuromuscular, atuando
de modo semelhante ao curare. Nos envenenamentos onde predomina essa ação (M. frontalis), o uso de substâncias
anticolinesterásticas (edrofônio e neostigmina) pode prolongar a vida média do
neurotransmissor (Ach), levando a uma rápida melhora da sintomatologia.
2.2. NTX de ação pré-sináptica
Estão presentes em algumas corais (M. coralliunus) e também em alguns viperídeos, como a cascavel sulamericana.
Atuam na junção neuromuscular, bloqueando a
liberação de Ach pelos impulsos nervosos, impedindo a deflagração do potencial
de ação. Esse mecanismo não é antagonizado pelas substâncias anticolinesterásicas.
3. Quadro clínico
Os sintomas podem surgir precocemente, em
menos de uma hora após a picada. Recomenda-se a observação clínica do
acidentado por 24 horas, pois há relatos de aparecimento tardio dos sintomas e
sinais.
3.1. Manifestações locais
Há discreta dor local, geralmente
acompanhada de parestesia com tendência a progressão proximal.
3.2. Manifestações sistêmicas
Inicialmente, o paciente pode apresentar
vômitos. Posteriormente, pode surgir um quadro de fraqueza muscular progressiva, ocorrendo ptose palpebral, oftalmoplegia
e a presença de fácies miastênica ou “neurotóxica” (fig. 26).
Associadas a estas manifestações, podem
surgir dificuldades para manutenção da posição ereta, mialgia localizada ou generalizada
e dificuldade para deglutir em virtude da paralisia do véu palatino.
A paralisia flácida da musculatura
respiratória compromete a ventilação, podendo haver evolução para insuficiência respiratória aguda e apnéia.
4. Exames complementares
Não há exames específicos para o
diagnóstico.
5. Tratamento
5.1. Tratamento específico
O soro antielapídico (SAE) deve ser
administrado na dose de 10 ampolas, pela via intravenosa, segundo as especificações
incluídas no Capítulo Soroterapia. Todos os casos de acidente por coral com manifestações clínicas devem
ser considerados como potencialmente graves.
5.2. Tratamento geral
Nos casos com manifestações clínicas de
insuficiência respiratória, é fundamental manter o paciente adequadamente ventilado,
seja por máscara e AMBU, intubação traqueal e AMBU ou até mesmo por ventilação
mecânica.
Estudos clínicos controlados e comunicações
de casos isolados atestam a eficácia do uso de anticolinesterásicos (neostigmina)
em acidentes elapídicos humanos. A principal vantagem desse procedimento, desde
que realizado corretamente, é permitir uma rápida reversão da sintomatogia
respiratória enquanto o paciente é transferido para centros médicos que
disponham de recursos de assistência ventilatória mecânica. Os dados
disponíveis justificam esta indicação nos acidentes com veneno de ação
exclusivamente pós-sináptica (M. frontalis, M. lemniscatus). No entanto, este esquema pode ser utilizado quando houver
envenenamento intenso por corais de espécies não identificadas.
5.3. Tratamento medicamentoso da insuficiência
respiratória aguda
5.3.1 Neostigmina
Pode ser utilizado como teste na
verificação de resposta aos anticolinesterásicos e como terapêutica.
a) Teste da Neostigmina: aplicar 0,05 mg/kg em crianças ou uma
ampola no adulto, por via IV. A resposta é
rápida, com melhora evidente do quadro
neurotóxico nos primeiros 10 minutos;
b) Terapêutica de Manutenção: se houver melhora dos fenômenos
neuroparalíticos com o teste acima referido, a neostigmina pode ser utilizada
na dose de manutenção de 0,05 a 0,1 mg/kg, IV, a cada quatro horas ou em intervalos
menores, precedida da
administração de atropina.
5.3.2 Atropina
É um antagonista competitivo dos efeitos
muscarínicos da Ach, principalmente a bradicardia e a hipersecreção.
Deve ser administrada sempre antes da
neostigmina, nas doses
recomendadas.
6. Prognóstico
É favorável, mesmo nos casos graves, desde que haja atendimento adequado quanto à soroterapia e assistência ventilatória.
Acidentes por Colubrídeos
1. Introdução
A maioria dos acidentes por Colubrídeos são
destituídos de importância por causarem apenas ferimentos superficiais da pele,
não havendo inoculação de peçonha.
Os Colubrídeos de importância médica
pertencem aos gêneros Philodryas (cobra-verde, cobra-cipó) e Cleia (muçurana, cobra-preta), havendo referência de acidente com manifestações locais também por
Erythrolamprus aesculapii. A posição posterior das presas
inoculadoras desses animais pode explicar a raridade de acidentes com alterações
clínicas.
2. Ações do veneno
Muito pouco se conhece das ações dos
venenos dos Colubrídeos. Estudos com animais de experimentação mostraram que o
veneno de Philodryas
olfersii possui atividades
hemorrágica, proteolítica, fibrinogenolítica e fibrinolítica estando ausentes
as frações coagulantes.
3. Quadro clínico
Acidentes por Philodryas olfersii e Clelia clelia
plumbea podem ocasionar edema
local importante, equimose e dor,
semelhantes aos observados nos acidentes botrópicos, porém sem alteração da
coagulação (fig. 27).
4. Complicações
Não são observadas complicações nesses
casos.
5. Exames complementares
A determinação do TC pode ser útil no
diagnóstico diferencial com os envenenamentos botrópicos e laquéticos,
uma vez que este parâmetro não deve se
mostrar alterado nos acidentes por colubrídeos.
6. Tratamento
O tratamento nos casos de acidentes por P. olfersii é sintomático.
Fonte: FUNASA.
Bombeiroswaldo...