05 agosto 2022

VI - A Tortura da Carne

 

VI

 

Durante o primeiro ano de casado, Eugénio teve de vencer inúmeras dificuldades económicas. Primeiro, viu-se obrigado a vender uma parte da propriedade a fim de satisfazer alguns compromissos mais urgentes; e depois outros surgiram e ele ficou quase sem dinheiro. A propriedade ia dando bom rendimento, mas era preciso mandar uma parte ao irmão e isso impedia-o de continuar com a laboração da refinaria. O único meio de sair de tal embaraço era lançar mão dos bens de sua esposa. Lisa, compreendendo a situação do marido, exigiu que ele fizesse uso do seu dote; Eugénio concordou, desde que metade da herdade ficasse registada em seu nome. Assim se fez, não por vontade da mulher, mas para que fosse dada uma satisfação a sua mãe.

Depois, sete meses após o casamento, Lisa sofreu um desastre. Saíra de carro ao encontro do marido que regressava da cidade. O cavalo, apesar de ser manso, espantou-se. Lisa, cheia de medo, atirou-se do carro abaixo. A queda não foi grande mas, como estava grávida, abortou.

A perda do filho tão desejado, a doença da mulher e as dificuldades financeiras, tudo acrescido da presença da sogra, que acorreu a tratar da filha, contribuíram para que esse primeiro ano de casado fosse extremamente difícil para Eugénio.

Contudo essas dificuldades não o fizeram desanimar, pois verificava que o sistema do avô, por ele adoptado, ia dando resultado. Então, felizmente, já não existia o perigo de se ver obrigado a vender toda a propriedade para pagar as dívidas. A parte principal, agora em nome da mulher, estava salva e com uma excelente colheita de beterraba, vendida a bom preço, estaria assegurada a situação do ano seguinte.

Além disso encontrara na mulher aquilo que nunca esperara. Com efeito, Lisa ultrapassara toda a sua expectativa. Não se tratava da sua ternura, do seu entusiasmo amoroso. Mais do que tudo isso, Lisa convencera-se, logo a seguir ao casamento, de que, de todos os homens existentes no universo, o melhor era Eugénio Irtenieff. O melhor e o mais inteligente, o mais puro e o mais nobre.

Por conseguinte, o dever de todos era fazerem o possível para lhe serem agradáveis; como, todavia, não podia obrigar os estranhos a cumprir tal dever, a ela se impunha a necessidade de dirigir nesse sentido todas as suas forças. Assim foi. Aplicou toda a sua boa vontade em lhe adivinhar os gostos e os desejos, procurando satisfazê-los por mais dificuldades que para tal encontrasse. Graças ao seu amor pelo marido, sabia ler-lhe na alma. Compreendia, talvez, melhor do que ele o seu espírito e tratava de agir em conformidade com os sentimentos que ele traduzia, procurando adoçar-lhe desagradáveis impressões. Quase lhe adivinhava os próprios pensamentos. As coisas até então mais estranhas para ele, como os trabalhos agrícolas, a refinaria, a apreciação das pessoas, tornavam-se para ela, de repente, acessíveis e transformara-se numa companheira útil, insubstituível. Amava a mãe, mas, percebendo que a sua intromissão na vida do casal era desagradável a Eugénio, tomou logo o partido do marido, e tão resolutamente que ele se viu na necessidade de lhe recomendar moderação.

Possuía ainda, em grande dose, o bom gosto, o tacto administrativo e era dócil. A tudo imprimia um cunho de elegância, e de ordem. Lisa compreendera qual era o ideal do marido e esforçava-se por atingi-lo.

Só um desgosto escurecia a sua felicidade conjugal: não tinham filhos. No inverno, porém, foram a S. Petersburgo consultar um especialista, que lhes afirmou ter Lisa muito boa saúde e ser possível verem, dentro em pouco, os seus desejos realizados.

Com efeito, no fim do ano, Lisa estava grávida novamente.

 

 

Barros Vital

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