05 agosto 2022

V - A Tortura da Carne

 

V

 

Que teria levado Eugénio a escolher para sua noiva Lisa Annensky? Não se encontra uma explicação, pois ninguém sabe o motivo porque um homem escolhe esta ou aquela mulher.

Contudo nessa escolha havia uma série de prós e contras a considerar. Em primeiro lugar, Lisa não era o rico partido que a mãe sonhara para ele, nem embora fosse bonita, era uma dessas belezas que fascinam qualquer rapaz. Mas aconteceu conhece-la precisamente na ocasião em que principiava a amadurecer para o casamento. Lisa Annensky, de começo agradara-lhe e nada mais. Porém, ao resolver fazer dela sua mulher, experimentou um mais vivo sentimento e percebeu que estava apaixonado. Lisa era alta, delgada e esbelta. Tinha a pele do rosto fina e branca com um leve e permanente rubor; os cabelos loiros, sedosos, longos e encaracolados; os olhos eram azuis, suaves e confiantes. Quanto às suas qualidades morais, nada delas conhecia. Não via mais que os seus olhos, que pareciam-lhe dizer tudo quanto ele precisava saber.

Desde os quinze anos, ainda colegial, que Lisa se enamorava de quase todos os rapazes que conhecia. Só se sentia feliz quando tinha algum namoro. Depois de sair do colégio, continuou a gostar de todos os jovens que via e, muito naturalmente, apaixonou-se por Eugénio logo que o conheceu. Era esse temperamento amoroso que lhe dava aos olhos aquela expressão tão doce que seduziu Eugénio.

Naquele mesmo inverno andava ela enamorada por dois rapazes, a um tempo, e corava, e ficava perturbada se acontecia algum deles entrar onde ela já estivesse, ou até quando deles se falava. Mas, desde que a mãe lhe dera a entender que Irtenieff parecia ter ideias de casar, o seu amor por ele cresceu a tal ponto que, de súbito, se esqueceu dos outros dois. E quando Eugénio começou a frequentar a casa, quando nos bailes dançava mais com ela do que com as outras, quando procurava unicamente saber se ela correspondia ao seu amor, então Lisa apaixonou-se por ele dum modo quase doentio. Via-o em sonhos e acreditava vê-lo na realidade. Nenhum outro homem existia para ela.

Depois do pedido de casamento, quando se beijaram e ficaram noivos, um só pensamento, um só desejo se sobrepunha a todos os pensamentos, a todos os desejos, o de ficar com ele, o de ser amada. Orgulhava-se dele, enternecia-se pensando nele e a ternura que ele lhe demonstrava fazia-a enlouquecer. Do mesmo modo Eugénio, quanto mais a conhecia, mais a adorava. Jamais esperara encontrar semelhante amor na vida.

Antes da primavera, Eugénio regressou a Semionovskoié, a fim de ver a propriedade, dar ordens e preparar a casa onde devia instalar-se após o casamento. Maria Pavlovna estava descontente com a escolha do filho, não só por não fazer o casamento brilhante a que tinha direito, como por não lhe agradar a mãe da sua futura nora. Se era boa ou má, ignorava-o; aliás não se preocupava muito com isso. Verificara que não era uma mulher alta, uma

inglesa como dizia, e isto bastava para a impressionar desagradavelmente. Mas era preciso resignar-se a amá-la, para não desgostar Eugénio, e Maria Pavlovna estava sinceramente disposta a tal sacrifício.

Eugénio encontrou a mãe radiante de felicidade e alegria; arranjara tudo em casa e preparava-se para partir, logo que o filho trouxesse a sua jovem esposa. Ele, porém, pediulhe que se deixasse estar, e essa questão ficou ainda para ser resolvida.

À noite, depois do chá, como de costume, Maria Pavlovna, com um baralho de cartas pôsse a fazer uma paciência. Eugénio, sentado a seu lado, ajudava-a. No fim, Maria Pavlovna fitou o filho e, um pouco hesitante, disse-lhe:

- Ouve, Eugénio, quero dizer-te uma coisa. Apesar de eu nada saber a esse respeito, penso que é preciso acabar inteiramente com todas as tuas aventuras, para que nem tu nem tua futura mulher possam mais tarde ter aborrecimentos. Compreendes onde quero chegar?

Deste modo, Eugénio compreendeu logo que Maria Pavlovna se referia às suas relações com Stepanida, acabadas desde o outono, e lhes dava uma importância exagerada. Corou ao ver a bondosa Maria Pavlovna imiscuir-se num assunto que não poderia compreender.

Garantiu-lhe que nada havia a recear, pois sempre se conduzira de modo a que nenhum obstáculo viesse entravar o casamento.

- Está bem, meu filho, não te zangues - disse-lhe a mãe, um tanto confundida.

Mas Eugénio notou que ela não dissera tudo o que pretendia. Com efeito, dali a pouco a mãe pôs-se a contar-lhe que durante a sua ausência lhe pediram que fosse madrinha duma criança nascida em casa dos Petchnikoff. Eugénio corou de novo. Maria Pavlovna continuou a conversar e, embora sem intenções reservadas, a certa altura disse que naquele ano somente tinham nascido meninos, o que provavelmente, era sinal de guerra. Em casa dos Vassine e em casa dos Petchnikoff os primogénitos eram rapazes. Maria Pavlovna queria contar isto sem parecer que o fazia premeditadamente, mas ficou arrependida de ter abordado o assunto ao notar o rubor do filho, os seus movimentos nervosos, o modo precipitado de acender o cigarro. Calou-se então. Ele não sabia como reatar a conversa, mas ambos se compreenderam mutuamente.

- Sim, é preciso que haja justiça, para que não existam favoritos como na casa de teu tio.

- Mamã - respondeu Eugénio a seguir - eu sei porque fala assim. Afianço-lhe, porém, que a minha futura vida doméstica será para mim uma coisa sagrada. Tudo quanto a esse respeito se passou comigo, enquanto fui solteiro, está acabado e bem acabado, tanto mais que nunca tive ligações duradouras e ninguém tem portanto alguns direitos sobre mim.

- Está bem! Sinto-me muito feliz por me poderes falar assim - concluiu a mãe - isso, não vem senão confirmar os teus nobres sentimentos.

No dia seguinte pela manhã, Eugénio dirigiu-se à cidade. Pensava na noiva... e tinha esquecido Stepanida. Mas, dir-se-ia que propositadamente para relembrar-lha, ao aproximar-se da Igreja, encontrou um grupo de pessoas: era o velho Mateus, algumas crianças, raparigas, duas mulheres, uma delas já idosa, a outra, elegante, que lhe pareceu conhecer, de lenço vermelho-escarlate. Ao encarar com ele, a velha saudou-o à moda antiga, parando; a outra, que levava o recém-nascido, inclinou apenas a cabeça e cravou nele os seus dois olhos alegres, risonhos e muito conhecidos. «Sim, é Stepanida, mas, como tudo acabou, não vale a pena olhar mais para ela. A criança? Talvez seja seu pai. Não! Mas que pensamento tão estúpido! O pai é certamente o marido».

Estava perfeitamente convencido de que, para ele, não houvera em toda aquela aventura mais do que uma necessidade fisiológica e que como tinha dado dinheiro a Stepanida o caso estava arrumado, que entre ele e Stepanida não existia agora qualquer ligação. E, ao pensar assim, Eugénio não procurava sufocar a voz da consciência, tanto mais que, após a conversa que tivera com a mãe sobre o assunto, nunca mais pensou nela nem a encontrara.

Depois da Páscoa celebrou-se o casamento e Eugénio trouxe a noiva para o campo. A casa estava preparada para condignamente receber os recém-casados. Maria Pavlovna quis retirar-se. Contudo, Eugénio e principalmente Lisa, pediram-lhe que ficasse. Ela acedeu, mas passou a ocupar uma outra parte da casa.

E, assim, começava para Eugénio uma vida nova.

 

Barros Vital

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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