05 agosto 2022

XIII - A Tortura da Carne

 

XIII

 

Antes disso, Lisa foi ter com ele, dissimulando tanto quanto pôde a sua tristeza. Informou-o de que pretendiam levá-la para Moscovo, antes do parto; mas que ela, receando que esse projeto desagradasse a Eugénio, resolvera ficar e que, por nada sua alma, tinha Eugénio tanta lama, tanta fraqueza - um amedrontava por temer não dar à luz uma criança fisicamente bem constituída, e por isso enterneceu-o a facilidade com que ela se prestava a sacrificar tudo ao seu amor. Na sua casa achava que tudo era bom, alegre, puro e, no entanto, na coisa. «Mas é impossível!» dizia ele passeando no quarto, um horror! Durante o serão pensou que, apesar da sua sincera repugnância pela fraqueza que o subjugava e apesar da decidida intenção de lhe escapar, no dia seguinte aconteceria a mesma coisa. «Não, é impossível» dizia ele passeando no quarto, dum lado para o outro. «Deve existir qualquer solução para esta miséria. Meu Deus, que devo eu fazer?»

Alguém bateu à porta duma maneira especial. Percebeu que era o tio.

- Entre! - disse secamente.

O tio vinha como emissário, mas espontaneamente, falar-lhe de Lisa.

- Tenho ultimamente observado em ti uma certa mudança e compreendo que certamente isso há-de afligir a tua mulher. É certo que te será aborrecido teres de abandonar a empresa em que te meteste, mas hás-de ter paciência. Eu penso que deverias sair daqui com ela.

Ambos ficariam mais sossegados. Não achava mal que fossem até à Crimeia: o clima é esplêndido, há lá um afamado parteiro e vocês chegariam justamente na época das chuvas.

- Tio - disse emocionado Eugénio - posso confiar-lhe um segredo, um segredo horrível, vergonhoso mesmo?

- Então desconfias de teu tio?

- O tio pode auxiliar-me! E não apenas isso, mas salvar-me até - disse Eugénio. E a ideia de se abrir com o parente, que aliás não estimava, o pensamento de se lhe apresentar sob o aspecto mais miserável agradava-lhe. Reconhecia-se fraco, culpado, e queria, portanto, castigar-se, punir-se de todos os seus pecados.

- Podes falar, Eugénio: bem sabes como sou teu amigo - segredou-lhe visivelmente

lisonjeado por descobrir um segredo, um segredo escandaloso de que seria confidente, além de que poderia ser útil ao sobrinho.

- Antes de mais nada, quero dizer-lhe que sou um canalha.

- Que estás para aí a dizer?

- Que estás para aí a dizer?

- Como é que não hei-de considerar-me um criminoso, se eu, marido de Lisa, cuja pureza e cuja afeição por mim são indiscutíveis, se eu quero enganá-la com uma camponesa?

- Que dizes? Por enquanto, queres... Mas ainda não a atraiçoaste? Não é assim?

- Para o caso, é a mesma coisa. Se a não atraiçoei, não foi porque não fizesse esforços nesse sentido. As circunstâncias é que o proporcionaram.

- Mas, vamos lá a saber do que se trata.

- Oiça: quando solteiro, caí na asneira de manter relações com uma mulher cá da terra.

Encontravamo-nos no bosque...

- E que tal? Era bonita? - perguntou o tio.

A essa pergunta, Eugénio franziu as sobrancelhas, mas fingindo não ouvir, continuou nervosamente.

- Realmente, eu pensei que daí nenhum mal resultaria para mim; que, depois de a deixar, tudo estava terminado. E, assim, cortei relações com ela antes do meu casamento, e

durante, quase um ano não a vi, nem nela tornei a pensar. Mas, de súbito, não sei como nem por quê, voltei a vê-la e senti-me novamente preso dos seus encantos. Chego a revoltar-me contra mim próprio, compreendo todo o horror do meu procedimento, quero dizer, do ato que estou pronto a praticar na primeira ocasião, e, apesar de reconhecer tudo isso, continuo a procurar essa ocasião, e até ao presente só Deus me tem livrado de assim proceder. Ontem ia encontrar-me com ela quando Lisa me chamou.

- Com aquela chuva?

- Sim... Estou cansado, tio, e resolvi confessar-lhe tudo e pedir-lhe que me ajude. O tio pode ajudar-me.

- Efetivamente, aqui reparam muito nessas coisas. Mais dia menos dia saberão tudo, se o não, sabem já. Compreendo que Lisa, fraca como é, precisa de ser poupada...

Eugénio simulou mais uma vez não o ouvir, para chegar ao fi da sua narrativa.

 

- Peço-lhe que me ajude. Hoje foi o acaso que me impediu de cair, mas agora também ela sabe... Não me deixe só.

- Está bem, disse o tio. Mas estás assim tão apaixonado?

- Oh! Não é bem isso. É uma força qualquer que me prende, me domina. Não sei o que heide fazer. É possível que quando me sentir com mais coragem...

- Bem, a única ajuda que posso dar-te é esta: irmos todos para a Crimeia! Que te parece?

- É uma solução que me agrada - respondeu Eugénio, - mas não vamos já, por hora ficarei aqui com o tio a conversar um pouco.

 

 

Barros Vital

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