Segundo
Domingo: Brincando com Bonecas (1)
Raiou o belo dia, que seguiu a sete outros, passados
entre sonhos, saudades de esperanças. Augusto está viajando: já não é mais
aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana passada, é um amante que
acredita ser amado e que vai, radiante de esperanças, levar à sua bela mestra a
lição de marca que lhe foi passada. O prognóstico de D. Carolina, na gruta
encantada, se vai verificando: Augusto está completamente esquecido da aposta
que fez e do camafeu que outrora deu à sua mulher. Um bonito rosto moreninho
fez olvidar todos esses episódios da vida do estudante. D. Carolina triunfa e
seu orgulho de despotazinha de quantos corações conhece deveria estar
altaneiro, se ela não amasse também.
Como da primeira vez, Augusto vê o dia amanhecer-lhe
no mar; e, como na passada viagem, avista sobre o rochedo o objeto branco, que
vai crescendo mais e mais, à medida que seu batelão se aproxima, até que
distintamente conhece nele a elegante figura de uma mulher, bela por força; mas
desta vez, não como da outra, essa figura se demora sobre o rochedo, não
desaparece como um sonho, é uma bonita realidade, é D. Carolina que só desce
dele para ir receber o feliz estudante que acaba de desembarcar.
· Minha bela
mestra!...
- Meu aprendiz!... já sei que traz nome bem marcado.
- Oh! sempre precisarei que me queira puxar as
orelhas.
- Não, eu não farei tal na lição de hoje.
- E se eu merecer?
- Talvez.
- Então errarei toda a lição.
Eles se sorriram, mas Filipe acaba de chegar e todos
três vão pela avenida se dirigindo a casa.
Ter a ventura de receber o braço de uma moça bonita e
a quem se ama, apreciar sobre si o doce contato de uma bem torneada mão, que
tantas noites se tem sonhado beijar; roçar às vezes com o cotovelo um lugar
sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob sua face perfumado bafo que se
esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados, cujo sorrir se considera um
favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão que estremeceu, tudo isso...
mas para que divagações? que mancebo há aí, de dezesseis anos por diante, que
não tenha experimentado esses doces enleios, tão leves para a reflexão e tão
graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama? Pois bem, Augusto os está
gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de grande entidade, e convém
dizer apenas o que absolutamente se faz preciso, pode-se, sem inconveniente,
abreviar toda a história de duas horas, dizendo-se: almoçaram e chegou a hora
da lição.
- Vamos, disse D. Carolina a Augusto, que estava já
sentado a seus pés e em sua banquinha; vamos, meu aprendiz, o senhor
comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua mão; que nome marcou?
- Entendi que devia ser o nome da minha bela mestra.
Ela não esperava outra resposta.
- Vamos, pois, ver a sua obra, continuou, e creia que
estou pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz na lição passada. Venha a marca.
Augusto apresentou então um finíssimo lenço aos olhos
da sua bela mestra, que teve de ler em cada ângulo dele o nome Carolina e no
centro o dístico Minha bela mestra. Tudo estava primorosamente trabalhado;
preciso é confessar: o aprendiz havia marcado melhor do que nunca o tivera
feito D. Carolina.
Augusto esperava com ansiedade ver brilhar nos olhos
de sua bonita querida o prazer da gratidão; fruía já de antemão o terno
agradecimento com que contava, quando viu, com espanto, que sua bela mestra ia
gradualmente corando e por fim se fez vermelha de cólera e de despeito.
- Nunca a mão grosseira de um homem poderia marcar
assim!... disse ela a custo.
- Mas, minha bela mestra...
- Eu quero saber quem foi! exclamou com força.
- Eu não entendo...
- Foi uma mulher! isso não carece que me diga. Uma
moça que lhe marcou este lenço para o senhor vir zombar e rir-se de mim, de
minha credulidade, de tudo...
- Minha senhora...
- Vejam!... já nem me quer chamar sua mestra!... agora
só sabe dizer “minha senhora!”...
A interessante jovem acabava de ser inesperadamente
assaltada de um acesso de ciúme. Augusto estava espantado e a Sra. D. Ana,
levantando os olhos ao escutar a última exclamação de sua neta, viu-a correndo
para ela.
- Que é isto menina? perguntou.
- Veja, minha querida avó: aqui está a marca que ele
me traz! Eu queria um nome muito mal feito, uma barafunda que se não
entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo péssimo; eu me riria com ele.
Sabe, porém, o que fez? foi para a Corte tomar outra mestra, que não há de ter
a minha paciência, nem o meu prazer, mas que marca melhor que eu, que é mais
bonita!... veja, minha querida avó; ele tem outra mestra, outra bela mestra!...
E dizendo isto, ocultou o rosto no seio da extremosa
senhora e começou a soluçar. - Que loucura é essa, menina? que tem que ele
tomasse outra mestra? pois por isso choras assim?
- Mas nem me quer dizer o nome dela!... Que me importa
que seja moça ou bonita? nada tenho com isso, porém, quero saber-lhe o nome, só
o nome!...
Então ela ergueu-se e, com os olhos ainda molhados,
com a voz entrecortada, mas com toda a beleza da dor e delírio do ciúme,
voltou-se para Augusto e perguntou:
- Como se chama ela?
- Juro que não sei.
- Não sabe?...
- Quis trazer um lenço bem marcado para ostentar meus
progressos e motivar alguns gracejos e mandei-o encomendar a uma senhora muito
idosa, que vive destes trabalhos.
- Muito idosa?...
- É verdade.
- Não lhe deram este lenço?
- Paguei-o.
- Pois eu o rasgo...
- Pode o fazer.
- Ei-lo em tiras.
- Que fazes, Carolina? exclamou a Sra. D. Ana,
querendo, já tarde, impedir que sua neta rasgasse o lenço.
- Fez o que cumpria, minha senhora, acudiu Augusto:
exterminou o mau gênio que acabava de fazê-la chorar.
- E que importa que eu rasgasse um lenço? minha
querida avó, peço-lhe licença para dar um dos meus ao Sr. Augusto.
A Sra. D. Ana, que começava a desconfiar da natureza
dos sentimentos da mestra e do aprendiz, julgou a propósito não dar resposta
alguma, mas nem isso desnorteou a viva mocinha que, tirando de sua cesta de
costura um lenço recentemente por ela marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:
- Eu não admito uma só desculpa, não desejo ver a
menor hesitação; quero que aceite este lenço.
Augusto olhou para a Sra. D. Ana, como para ler-lhe
n’alma o que ela pensava daquilo.
- Pois rejeita um presente de minha neta? perguntou a
amante avó.
A resposta de Augusto foi um beijo na prenda de amor.
- Agora, que já estamos bem, disse ele, vamos à minha
lição.
- Não, não, respondeu a bela mestra, basta de marcar;
não me saí bem do magistério, chorei diante do meu aprendiz, não falemos mais
nisto.
- Então fui julgado incapaz de adiantamento?
- Ao contrário, pelo trabalho que me trouxe, vi que o
senhor estava adiantado demais; porém, sou eu quem tem outros cuidados.
- Já tem cuidados?...
- Quem é que deles não carece?... O pai de família tem
os filhos, o senhor os seus livros e eu, que sou criança, tenho as minhas
bonecas. Quer vê-las?
- Com o maior prazer.
Um momento depois a sala estava invadida por uma
enorme quantidade de bonecas, cada uma das quais tinha seus parentes, seus
vestidos, jóias e um número extraordinário de bugiarias, como qualquer moça da
moda as tem no seu toucador.
Ora, o tal bichinho chamado amor é capaz de amoldar
seus escolhidos a todas as circunstâncias e de obrigá-los a fazer quanta
parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança, o sábio doido, o rei
humilde cativo; faz mesmo, às vezes, com que o feio pareça bonito e o grão de
areia um gigante. O amor seria capaz de obrigar um coxo a brincar o
tempo-será, a um surdo o companheiro companhão e a um
cego o procura quem te deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos dentes
postiços que... mas, alto lá! que isto é bulir com muita gente; enfim, o amor
está fazendo um estudante do quinto ano de Medicina passar um dia inteiro
brincando com bonecas.
Com efeito, Augusto já sabe de cor e salteado todos os
nomes dos membros daquela família; conhece os diversos graus de parentesco que
existem entre eles, acalenta as bonecas pequenas, despe umas e veste outras,
conversa com todas, examina o guardaroupa, batiza, casa, em uma palavra,
dobra-se aos prazeres de sua bela mestra, como uma varinha ao vento. No entanto
a Sra. D. Ana os observa cuidadosa; tem simpatizado muito Augusto, mas nem por
isso quer entregar todo o futuro do objeto que mais ama no mundo ao só abrigo
do nobre caráter e sérias qualidades que tem reconhecido no mancebo. Como de
costume, a tarde deve de ser empregada em passeios à borda do mar e pelo
jardim. O maior inimigo do amor é a civilidade. Augusto o sentiu, tendo de
oferecer seu braço à Sra. D. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel,
rogando-lhe que o reservasse para a sua neta.
Filipe acompanhava sua avó e na viva conversação que
entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes pronunciado.
Uma vez Augusto e Carolina, que iam adiante, ficaram
muito distantes do par que os seguia.
A mão da bela Moreninha tremia convulsamente no braço
de Augusto e este apertava às vezes contra seu peito, como involuntariamente,
essa delicada mão; alguns suspiros vinham também perturbá-los mais e havia dez
minutos eles se não tinham dito uma palavra.
Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam;
mas, ao sentir passos, voaram e assentando-se não longe, em um arbusto,
começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se passava aos olhos de Augusto
e Carolina!...
Igual pensamento, talvez brilhou em ambas aquelas
almas, porque os olhares da menina e do moço se encontraram ao mesmo tempo e os
olhos da virgem modestamente se abaixaram e em suas faces se acendeu um fogo,
que era o do pejo. E o mancebo, apontando para as pombas, disse:
- Elas se amam!
E a menina murmurou apenas:
- São felizes!
- Pois acredita que em amor possa haver felicidade?
- Às vezes.
- Acaso, já tem a senhora amado?
- Eu?!... e o senhor?!
- Comecei a amar há poucos dias.
A virgem guardou silêncio e o mancebo, depois de
alguns instantes, perguntou tremendo:
- E a senhora já amou também?
Novo silêncio; ela pareceu não ouvir, mas suspirou.
Ele falou menos baixo:
- Já ama também?...
Ela abaixou ainda mais os olhos e com voz quase
extinta disse:
- Não sei... talvez...
- E a quem?
- Eu não perguntei a quem o senhor amava.
- Quer que lhe diga?...
- Eu não pergunto.
- Posso eu fazê-lo?
- Não... Não lho impeço.
- É a senhora.
D. Carolina fez-se cor-de-rosa e só depois de alguns
instantes pôde perguntar, forcejando um sorriso:
- Por quantos dias?
- Oh! para sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe
vivamente o braço.
Depois ainda continuou:
- E a senhora não me revela o nome feliz?...
- Eu não... não posso...
- Mas por que não pode?
- Porque não devo.
- E nunca o dirá?!
- Talvez um dia.
- E quando?...
- Quando estiver certa que ele não me ilude.
- Então... ele é volúvel?...
- Ostenta sê-lo...
- Oh!... pelo céu!... acabe de matar-me!... basta o
nome pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido, para que ninguém o possa
ouvir, nem a brisa o leve... Pelo céu!...
- Senhor!...
- Um só nome que peço!...
- É impossível... eu não posso!...
- Se eu perguntasse?...
- Oh!... não!...
- Serei eu?...
A vigem tremeu toda e não pôde responder. Augusto lhe
perguntou ainda, com fogo e ternura:
- Serei eu?...
A interessante Moreninha quis falar... Não pôde, mas,
sem o pensar, levou o braço do mancebo até ao peito e lhe fez sentir como o seu
coração palpitava.
- Serei eu?... perguntou uma terceira vez Augusto, com
requintada ternura.
A jovenzinha murmurou uma palavra que pareceu mais um
gemido que uma resposta, porém que fez transbordar a glória e entusiasmo na
alma do seu amante. Ela tinha dito somente:
- Talvez.
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