Mau Tempo
Tristes dias têm-se arrastado. Augusto está
desesperado. Voltando da ilha de..., depois daquele belo dia da declaração de
amor, achou na Corte seu pai e em poucos momentos teve de concluir, da
severidade com que era tratado, que já alguém o havia prevenido das suas
loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas aulas. A mais bem
merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e admoestações, vieram
por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava ciente de tudo.
Para coroar a obra, contra o costume do maior número
dos nossos agricultores, que, quando vêm à cidade, estão no caso do fogo viste
lingüiça? e ainda bem não puseram os pés no Largo do Paço já têm os pés na
Praia Grande (que por estes bons cinqüenta anos há de continuar a ser Praia
Grande, apesar de a terem crismado Niterói), o pai de Augusto não falava em
voltar para a roça; e, a julgar-se pelo sossego e vagar com que tratava os
menos importantes negócios, parecia haver esquecido a moagem e a safra. Chegou
o sábado. O nosso Augusto, depois de muitos rodeios e cerimônias, pediu
finalmente licença para ir passar o dia de domingo na ilha de... e obteve em
resposta um não redondo; jurou que tinha dado sua palavra de honra de lá se
achar nesse dia e o pai, para que o filho não cumprisse a palavra, nem faltasse
à honra, julgou muito conveniente trancá-lo no seu quarto.
Mania antiga é essa de querer triunfar das paixões com
fortes meios; erro palmar, principalmente no caso em que se acha o nosso
estudante; amor é um menino doidinho e malcriado, que, quando alguém intenta
refreá-lo, chora, escarapela, esperneia, escabuja, morde, belisca e incomoda
mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o que deseja, para que ele
disso se desgoste; soltá-lo no prado, para que não corra; limpar-lhe o caminho,
para que não passe: acabar com as dificuldades e oposições, para que ele durma
e muitas vezes morra. O amor é um anzol que, quando se engole, agadanha-se logo
no coração da gente, donde, se não é com jeito destravado, por mais força que
se faça mais o maldito rasga, esburaca e se profunda. Portanto, muita indústria
deve ter quem o quer pôr na rua, e para consegui-lo convém ir despedindo-o com
bons modos, parlamentares oferecimentos e nunca bater-lhe com a porta na cara.
Porém os homens, mal passam de certa idade, só se lembram do seu tempo para
gritar contra o atual e esquecem completamente os ardores da mocidade. O
resultado disso é o mesmo que tirará o pai de Augusto da energia e violência
com que procura apagar a paixão do filho. Já era tarde. Augusto ama deveras, e
pela primeira vez em sua vida; e o amor, mais forte que seu espírito, exercia
nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há idéias mais livres que as do
preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as velas da barquinha de
sua alma, que voou atrevida por esse mar imenso da imaginação: então, começou a
criar mil sublimes quadros e em todos eles lá aparecia a encantadora Moreninha,
toda cheia de encantos e graças; viu-a, com seu vestido branco, esperando-o em
cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que ele não chegava, e suas lágrimas
queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de inconstante e ingrato; daí a pouco
pareceu-lhe que ela soluçava, escutou um grito de dor semelhante a esse que
soltara no primeiro dia que ele tinha passado na ilha!
Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou
exasperado fora do leito em que se achava deitado, passeou a largos passos por
seu quarto, acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a
porta, fez mil planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe
valesse, atirou com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de
novo, jurando que não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou
voltar o almoço, o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e
sentindo que seu pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e
dar-lhe salutares conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar
como um endemoninhado.
- Já dormes, Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as
cortinas do leito. A única resposta que obteve foi um ronco que mais
assemelhou-se a um trovão. O experimentado velho fingiu ter-se deixado enganar
e, retirando-se, trancou a porta ao pobre estudante. Uma noite de amargor foi,
então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma do
homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se, mergulha-se
inteira em seu sofrimento, não concebe, não pensa, não vela e não se exalta se
não por ele. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na manhã
seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os olhos
em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.
Augusto quis dar dois passos e foi preciso que os
braços paternais o sustivessem para livrá-lo de cair.
- Que fizeste, louco? perguntou o pai, cuidadoso.
- Nada, meu pai; passei uma noite em claro, mas... eu
não sofro nada.
Oh! ele queria dizer que sofria muito!
Imediatamente foi-se chamar um médico que, contra o
costume da classe, fez-se esperar pouco.
Augusto sujeitou-se com brandura ao exame necessário e
quando o médico lhe perguntou:
- O que sente?
Ele respondeu, com toda fria segurança do homem
determinado:
- Eu amo.
- E mais nada?
- Oh! Sr. doutor, julga isso pouco?
E além destas palavras não quis pronunciar mais uma
única sobre o seu estado. E, contudo, ele estava em violenta exacerbação. O
médico deu por terminada a sua visita. Algumas aplicações se fizeram e um dos
colegas de Augusto, que o tinha vindo procurar, fez-lhe o que chamou uma bela
sangria de braço. A enfermidade de Augusto não cedeu, porém, com tanta
facilidade como a princípio supôs o médico; três dias se passaram sem
conseguir-se a mais insignificante melhora; uma mudança apenas se operou: a
exacerbação foi seguida de um abatimento e prostração de forças notável; sua
paixão, que também se desenhava no ardor dos olhares, na viveza das expressões
e na audácia dos pensamentos, tomou outro tipo: Augusto tornou-se pálido,
sombrio e melancólico; horas inteiras se passavam sem que uma só palavra fosse
apenas murmurada, por seus lábios, prolongadas insônias eram marcadas minuto a
minuto por dolorosos gemidos, e seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a
luz quando por acaso se entreabriam. Na visita do quarto dia o médico disse ao
pai de Augusto:
- Não vamos bem...
Uma idéia terrível apareceu então no pensamento do
sensível velho: a possibilidade de morrer seu filho, a flor de suas esperanças,
e tal idéia derramou em seu coração todo esse fel, cujo amargor só pode sentir
a alma de um pai; e entrou apressado e trêmulo no quarto do enfermo, e vendo-o
prostrado no leito, como insensível, como meio morto, exclamou, com lágrimas
nos olhos:
- O meu filho!... meu filho!... por que me queres
matar?
Um brando favônio de vida passeou pelo rosto de
Augusto; seus olhos se abriram, um leve sorriso de gratidão lhe alisou os
lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas pálpebras e ele,
tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e terna:
- Meu pai... tão bom!...
Doces frases que retumbaram com mais doçura ainda no
coração do velho.
- Querido louco!... disse ele: tu me obrigas a fazer
loucuras!
E saiu do quarto e logo depois de casa, mas, voltando
passadas algumas horas, entrou de novo na câmara do doente; fez retirar todas
as pessoas que aí se achavam e, ficando só com ele, deu-lhe, provavelmente,
algum elixir tão admirável, que as melhoras começaram a aparecer como por
encantamento, no mesmo instante. Que milagre não será capaz de fazer o amor dos
pais?
Novidades do mesmo gênero perturbavam a paz e os
prazeres da ilha de... D. Carolina também padecia. Os nossos amantes acabavam
de chegar ao sentimental e, com seu sentimentalismo, estavam azedando a vida
dos que lhes queriam bem. Os namorados são semelhantes às crianças: primeiro
divertem-nos com suas momices, depois incomodamnos choramingando.
A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do
domingo no rochedo da gruta, e, tendo debalde esperado o seu estudante até alto
dia, voltou para casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de
mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia
estava frio de enregelar, toda a gente de sua casa a olhava com maus olhos; seu
próprio irmão tinha um defeito imperdoável: era estudante... Pertencia a uma
classe, cujos membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma, (bradava ela
lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos e até... feios. À tarde
sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu.
Tudo neste mundo é mais ou menos compensado; o amor
não podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos
para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo
contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a sorte
grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de um
pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não
produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras amargores
de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas, etc., seria
tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser
competidora do céu.
Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina.
Coitadinha! vai passando uma semana de ciúmes e amarguras. Acordando-se ao
primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo, e, com os olhos embebidos no
mar, canta muitas vezes a balada de Aí, repetindo com fogo a estrofe que tanto
lhe condiz, por principiar assim:
“Eu tenho quinze anos,
E sou morena e linda.”
E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o
rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do gabinete, ou ao lado de sua boa
avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da
querida neta, teme vê-la fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura que
ignora o estado de seu coração. O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas
novidades à ilha de... A Sra. D. Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos
triste, mas sem dúvida muito pensativa. A presença da linda neta parecia alentar
mais essas reflexões, que se prolongaram até a tarde do dia seguinte, em que um
velho e particular amigo de sua família veio da Corte visitá-la e com a
respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a sós.
Esse homem despediu-se, enfim, da Sra. D. Ana,
deixando-a cheia de prazer; e, no momento em que saltava dentro do seu batel,
vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à borda do mar,
saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu:
- Esperança!
D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel
cortava as ondas, mas, como para corresponder a tão animador cumprimento, ela,
por sua vez, apontou também para o céu, e pondo a outra mão no lugar do coração
disse:
- Esperarei!
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