05 agosto 2022

Ouçam-me - A MORENINHA - Joaquim Manuel de Macedo

 

Ouçam-me

 

Uma mulher padecia este mesmo mal; já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitasnihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-la na rua... É certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com boas cores e até remoçou e ficou bonita... Outro fato.

- Basta! basta!...

- Pois bem, basta; e propondo a aplicação da nihilitasnihilitatis na dose da trimilionésima parte de um quarto de grão, dou por terminado o meu discurso.

- O Sr. Leopoldo tem a palavra.

- Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibuscurantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.

Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal que D. Carolina o escolheu para assistente de sua ama.

 

Augusto determinou as aplicações convenientes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo alevantada no quarto.

- Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!

- Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!

- Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também do escalda-pés!...

- Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!...

- Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!...

- Aquilo é pressentimento!

- Sr. Doutor, um escalda-pés!...

- Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!

E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, enfim, as senhoras mezinheiras.

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