Os Quatro em
Conferência
Ninguém se arreceie pela nossa travessa. O grito de
dor foi, na verdade, seu; mas, se alguém corre perigo, não é certamente ela. O
caso é simples. Morava com a Sra. D. Ana uma pobre mulher, por nome Paula,
muito estimada de
todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de
D. Carolina, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na
criação da menina lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça.
Ora, todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar, mas o nosso amigo
Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honras à meia dúzia de
lindas garrafas, das quais se achava ternamente enamorado; contudo, ele pensava
que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a reqüestar
aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a
lobrigou ao entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si,
mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de
seu pai, sua mãe e sua família.
Não havia remédio senão corresponder a brindes tão
obrigativos. Depois não houve ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse
dever com a sua meia língua dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco
impertinente, forçava Paula a virar copos cheios. Passado algum tempo, e muito
naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez desafiava Keblerc
a fazer novos brindes; em resultado as seis garrafas foram-se. Paula deixou-se
ficar sentada, risonha e imóvel, junto à mesa, enquanto o alemão, rubicundo e
reluzente, se dirigiu para a sala. Quando daí a pouco a ama de D. Carolina quis
levantar-se, pareceu-lhe que estava uma nuvem diante de seus olhos, que os
copos dançavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em dobro; ergueu-se e
sentiu que as paredes andavam-lhe à roda, que o assoalho abaixava e
levantava-se debaixo dos pés; depois... Não pôde dar mais que dois passos,
cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra uma
porta.
Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar que
Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar, e,
por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava de
ter um ataque. A primeira pessoa que entrou em casa foi D. Carolina que, vendo
a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:
- Oh! minha mãe!... - Foi este o seu grito de dor.
Momentos depois Paula se achava deitada numa boa cama
e rodeada por toda a família; porém, havia algazarra tal, que mal se entendia
uma palavra.
- Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza, gritou
uma avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para a Medicina; é
fraqueza complicada com o tempo frio... não vale nada... venha um copo de
vinho! E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre
Paula que, por mais que lépida e risonha o fosse engolindo a largos tragos, não
pôde livrar-se de que a interessante Esculápia lhe entornasse boa porção pelos
vestidos.
- São maleitas! exclamava D. Violante, com toda a
força de seus pulmões... são maleitas!... Quem lhe olha para o nariz diz logo
que são maleitas! Eu já vi curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda
de cobra moída, torrada e depois desfeita num copo d’água tirada do pote velho
com um coco novo e com a mão esquerda, pelo lado da parede. É fazer isso já.
- São lombrigas! gritava uma terceira.
- É ataque de estupor! bradava a quarta senhora.
- É espírito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida
que as primeiras... é espírito maligno que lhe entrou no corpo! venha quanto
antes um padre com água benta e seu breviário.
- Ora, para que estão com tal azáfama?... disse uma
senhora, que acabava de entrar no quarto; não se vê logo que isto não passa de
uma mona, que a boa da Paula tomou?
Olhem: até tem o vestido cheio de vinho.
- Mona, não senhora! acudiu D. Carolina; a minha Paula
nunca teve tão feio costume, e, se está molhada com vinho, a culpa é desta
senhora, que há pouco lhe despejou
meia garrafa por cima. Oh! é bem cruel que, mesmo
vendo-se a minha dor, digam semelhantes coisas!...
No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e
a solicitude da menina travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze
anos, que parecera somente capaz de
brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra
parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um
serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as
lágrimas.
Junto do leito apareceram os quatro estudantes.
Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram
para denunciar-lhes com evidência a natureza da moléstia.
- Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a
seus colegas; é uma mona de primeira ordem.
- Está claro, vamos sossegar estas senhoras.
- Não, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas
pelo caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher, nenhuma delas
quer ver o que está diante de seus olhos, nem sentir o cheiro que lhes está
entrando pelo nariz; minha irmã ficaria inconsolável, brigaria conosco e não
nos acreditaria, se lhe disséssemos que sua ama se embebedou; e, portanto,
podemos aproveitar as circunstâncias, zombar de todas elas e divertir-nos
fazendo uma conferência.
- Oh diabo!... isso é do catecismo dos charlatães!
- Ora, não sejas tolo... não pareces estudante;
devemos lançar mão de tudo o que nos possa dar prazer e não ofenda os outros.
- Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que
ela está espirituosa demais?
perguntou Augusto.
- Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando
entendido que as honras pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o
caso é que nos não entendam, ainda que também nós não entendamos.
- Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta
gente que, por força, conhecerá esta patacoada.
- Qual conhecer?... aqui ninguém nos entende, tornou
Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz teatralmente
solene: - Meus senhores, rogamos breves
momentos de atenção; queremos conferenciar. Movimento
de curiosidade.
Seguiu-se novo exame da enferma, no qual os quatro
estudantes fingiram observar o pulso, a língua, o rosto e os olhos da enferma
auscultaram e percutiram-lhe o peito e fizeram todas as outras pesquisas do
costume. Depois eles se colocaram em um dos ângulos do quarto. Filipe teve a
palavra.
Profundo silêncio.
- Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma
enfermidade que não nos deixa de pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou
respeitosamente submeter o meu juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que
nos vamos ocupar não é nova para nós; creio, mesmo, senhores, que qualquer de
vós já a tem padecido muitas vezes...
- Está enganado.
- Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma
baquites. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela
decomposição dos éteres espasmódicos e engendrados no alambique intestinal, uma
vez que a compresão do diafragma lhes cause vibrações simpáticas que os façam
caminhar pelo canal colédoco até o periósteo dos pulmões...
- C’esttropfort!...
- Daí, passando à garganta, perturbam a quimificação
da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de um jacto
causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma protorragia nas
glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas, no esfíneter do
cerebelo, cause um retrocesso prostático, como pensam os modernos autores, e
promovam uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por conseqüência isto é
nervoso.
- Muito bem concluído.
- O tratamento que proponho é concludente: algumas
gotas de éter sulfúrico numa taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento
dos frutos do coffeaarabica torrados, ou mesmo o theasinensis; e quando isto
não baste, o que julgo impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas
libras de sangue de menos não farão falta à doente. Disse:
- Como ele fala bem! murmurou uma das moças.
Fabrício tomou a palavra.
- Sangue! sempre sangue! eis a Medicina romântica do
insignificante Broussais!
mas eu detesto tanto a Medicina sanguinária, como a
estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária. Desde
Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem
triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria...
Hahnemann... ah!... quebrai vossas lancetas, senhores!
para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática, com o Amazonas ao
pé!... queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só,
exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! se
depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por se não ter ainda
descoberto o meio de dividir em um milhão de partes cada simples átomo da
matéria!
Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega,
mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo
açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha
opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China!
O mesmo direi do cozimento do coffeaarabica...
- Mas por que não têm morrido envenenados os que por
vezes o têm já tomado?...
- Eis aí a consideração que os leva ao erro!... Senhor
meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir
logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos... eis a grande
verdade!... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupa
e que vão mostrar a superioridade do meu sistema.
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