05 agosto 2022

I - A Tortura da Carne


I

 

Eugénio Irtenieff tinha razões para aspirar a uma carreira brilhante. Para tal nada lhe faltava, a sua educação fora muito cuidada; terminara com brilho os estudos na Faculdade de Direito de S. Petersburgo e, por intermédio do pai, falecido havia pouco, conseguira as melhores relações na alta sociedade. Basta dizer-se que entrara para o Ministério pela mão do próprio Ministro. Possuía também uma avultada fortuna, embora esta já estivesse comprometida. O pai vivera no estrangeiro e em S. Petersburgo e dava a cada um dos seus filhos, Eugénio e André, uma pensão anual de seis mil rublos, e ele e a mulher de nada se privavam, gastavam à larga. No verão, passava dois meses no campo, mas não administrava diretamente as suas propriedades, confiando tal encargo a um encarregado que por sua vez, embora este fosse pessoa da sua inteira confiança, deixava andar tudo ao Deus dará.

Por morte do pai, quando os dois irmãos resolveram liquidar a herança, apareceram tantas dívidas que o advogado aconselhou-os a ficarem apenas com uma propriedade da avó, que fora avaliada em cem mil rublos, e desistirem do restante. Mas um vizinho da herdade, igualmente proprietário, que tivera negócios com o velho Irtenieff, veio a S. Petersburgo propositadamente para apresentar uma letra aceite por este - e fez-lhes saber que, apesar das grandes dívidas, poderiam chegar a acordo com ele e ainda refariam grande parte da fortuna. Para tal, bastava que vendessem a madeira, alguns bocados de terreno bravio e conservassem o melhor, isto é, a propriedade de Semionovskoié, uma verdadeira mina de oiro, com as suas quatro mil geiras de terra, duzentas das quais de belos pastos, e a refinaria. Afirmou ainda que, para tal se arranjar, era indispensável que uma pessoa enérgica se entregasse de corpo e alma a essa tarefa instalando-se no campo para administrar a herdade inteligente e economizante.

O pai morrera na altura da quaresma e na primavera, Eugénio, foi à propriedade; depois duma inspecção minuciosa, resolveu pedir a sua demissão de oficial do exército e fixar lá residência com a mãe, a fim de dar execução às sugestões do vizinho. Mas antes disso, contratou o seguinte com o irmão: pagar-lhe anualmente quatro mil rublos, ou entregar-lhe duma vez só oitenta mil, com o que ficariam saldadas as suas contas.

Eugénio, logo que se instalou com a mãe na velha casa, atirou-se com coragem e prudência à revalorização das terras. Pensa-se, em geral, que os velhos são conservadores impenitentes e que, pelo contrário, os novos tendem mais para as modificações. Mas não é bem assim! Às vezes, mais conservadores são os novos que desejam viver e não têm tempo de pensar na maneira como devem fazê-lo, por isso se entregam à vida tal como ela é.

Contudo não era este o caso de Eugénio. Agora, que vivia no campo, o seu sonho, o seu ideal máximo, era restabelecer, não o modo de vida do pai, que fora um mau administrador, mas sim as medidas adoptadas pelo avô. Em casa, no jardim, em toda a parte, procurava ressuscitar o método de então, para sentir em redor a alegria de todos, o bem-estar e a ordem. Em casa, no jardim, em toda a parte. Era preciso ir de encontro às exigências dos credores e dos bancos e, para tal, procurava vender terras e adiar pagamentos... Depois, era forçoso arranjar dinheiro para as culturas, por administração direta servindo-se dos próprios criados no amanho da imensa propriedade de Semionovskoié, com as suas quatrocentas geiras de terreno de cultivo e a sua refinaria. Impunha-se que a casa e o parque não tivessem o aspecto de abandono e ruína. A tarefa parecia exaustiva mas a Eugénio não faltava força de vontade. Tinha vinte e seis anos, era de estatura mediana, robusto e sanguíneo, tinha os músculos desenvolvidos pelo exercício, as faces rosadas, os dentes fortes, os cabelos anelados apesar de pouco espessos. O seu único defeito era a miopia, agravada pelo uso dos óculos, que não podia deixar.

Era uma destas pessoas que, quanto mais as conhecemos, mais delas gostamos. A mãe sempre manifestara por ele uma exagerada preferência e, depois da morte do marido, sentiu que aumentava a sua ternura pelo filho, como se nele encontrasse toda a sua vida. E não era só a mãe que o amava. Também os companheiros do liceu e da universidade lhe dedicavam uma grande estima. O mesmo acontecia com os estranhos. Ninguém tinha coragem de pôr

em dúvida uma afirmação sua, ninguém o supunha capaz de mentir, tão sincera era a sua expressão, tão francos eram os seus olhos.

A sua figura em muito o ajudava nos negócios. Os credores tinham confiança nele e concediam-lhe, muitas vezes, aquilo que negavam a outros. Um camponês ou um staroste, capazes de cometer a maior vilania, não ousavam enganá-lo, porque lhes era agradável entabular relações com um homem tão bondoso e, sobretudo, tão franco, tão leal.

Era nos fins de Maio. Bem ou mal, Eugénio conseguira resgatar as hipotecas das suas terras incultas, que foram vendidas a um negociante, que ainda por cima, lhe emprestou dinheiro para comprar o gado e as alfaias agrícolas de que necessitava. Havia já trabalhadores nas dependências da quinta e comprara oitenta carros de adubo. No entanto, reconhecia que, apesar de toda a prudência e boa vontade, qualquer descuido poderia desmoronar-lhe o pouco sólido castelo da vida

 

Barros Vital

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