05 agosto 2022

Capítulo VII - O triste epílogo da desavença entre Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch - A briga dos dois Ivans

Capítulo VII

 

O triste epílogo da desavença entre Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch

 

-Ah! é o senhor! Bom dia. Já acabou de sarrazinar os cães? -disse Ivan Nikiforovitch, mal distinguiu

Anton Prokofievitch, a quem toda a gente se dirigia em ar de troça.

-Sarraziná-los, eu?! Nem isso me passa pela cabeça - replicou Anton Prokofievitch. - Que a peste os leve!

-O senhor está a brincar.

-Dou-lhe a minha palavra de honra que não!... A propósito, PiotrFiodorovitch convida-o para jantar.

-Hum!

-Palavra de honra! Solicita-o com uma insistência que eu sou incapaz de reproduzir. "Por que diabo - disse-me ele - é que Ivan Nikiforovitch me evita como se eu fosse seu inimigo?! Porque teria deixado de vir a minha casa para dar dois dedos de conversa ou simplesmente para dormir a sesta? Se Ivan Nikiforovitch se recusa hoje a vir a minha casa, não sei francamente o que pensar: sem dúvida alimenta contra mim qualquer desígnio malévolo. Suplico-lhe, Anton Prokofievitch, convença-o a vir!" Vamos, decida-se, Ivan Nikiforovitch; vai encontrar lá a nossa melhor sociedade.

 

Ivan Nikiforovitch deteve-se a observar um galo que, empoleirado no corrimão, soltava um vibrante cocorocó.

-Se soubesse - recomeçou o zeloso mensageiro - que magnífico peixe e que delicioso caviar ofereceram a PiotrFiodorovitch!...

Ivan Nikiforovitch virou-se, e começou imediatamente a prestar mais atenção às palavras do emissário.

Este ganhou coragem.

-Apressemo-nos, apressemo-nos. Até vai lá encontrar FomaGrigorievitch!... Então - acrescentou, vendo que Ivan Nikiforovitch não se mexia - o senhor vem ou não vem?

-Não, não vou.

Este "não vou" deixou Anton Prokofievitch perfeitamente estupefato. No momento em que ele já dava a causa como ganha, apresentavam-lhe uma recusa categórica!

-Mas porquê? - perguntou ele, deixando transparecer uma certa impaciência, o que quase nunca acontecia, nem mesmo quando lhe enfiavam na cabeça um canudo de papel a arder, passatempo muito do gosto tanto do senhor juiz como do senhor presidente da Câmara.

 

Ivan Nikiforovitch tomou uma pitada.

 

-Agradecia-lhe que me explicasse as razões da sua recusa, Ivan Nikiforovitch, porque eu não consigo descobrir um único motivo que o impeça de aceitar o convite.

-E que é que eu lá ia fazer? - disse finalmente Ivan Nikiforovitch. - Aquele bandido também lá está, com certeza.

Era assim que ele se referia agora a Ivan Ivanovitch. Misericórdia divina! E pensar que ainda há tão pouco tempo...

-Dou-lhe a minha palavra de honra que ele não está lá. É tão verdade como Deus existir. Eu seja ceguinho se estou a mentir - respondeu Anton Prokofievitch, que estava sempre pronto a jurar dez vezes por hora. - Vamos, vamos embora, Ivan Nikiforovitch!

-Não me queira enganar, Anton Prokofievitch. Tenho a certeza que ele está lá.

-Se eu lhe dei a minha palavra que não está! Que eu não saia vivo desta casa se não falo verdade! Porque é que o senhor pensa que eu o quero enganar? Que eu fique aleijado!... Ainda não me acredita? Que eu caia morto neste instante se estou a mentir! Que nem eu, nem o meu pai nem a minha mãe entremos jamais no paraíso! Ainda não me acredita?

 

Dissipadas as suas dúvidas com estas afirmações veementes, Ivan Nikiforovitch ordenou ao criado de quarto, o homenzinho da interminável sobrecasaca, que lhe trouxesse as calças e a japona de algodão amarelo-esverdeado. Parece-me inútil descrever a forma como enfiou as calças, como deu o nó na gravata e como vestiu a japona, que estalou do lado direito. Basta anotar que durante todas estas operações manteve uma calma profundamente digna e que respondeu sem azedume a uma proposta de Anton Prokofievitch para trocar a sua tabaqueira turca.

 

Entrementes, as pessoas reunidas na festa esperavam impacientemente a chegada de Ivan Nikiforovitch, e o minuto decisivo da reconciliação. No entanto, poucas pessoas acreditavam nessa possibilidade, e o próprio presidente da Câmara se propôs fazer uma aposta com Ivan Ivanovitch, o zarolho, em como Ivan Nikiforovitch não se daria ao incômodo de aparecer; o presidente, porém, teve de retirar a proposta perante a pretensão de Ivan Ivanovitch de apostar o seu olho ausente contra a perna coxa do presidente, o que enfureceu este e fez rir toda a assistência à socapa. Embora fosse mais de uma hora, e em Mirgorod nunca se sirvam refeições a horas tardias, ainda ninguém se tinha sentado à mesa.

 

Mal entrou na sala, Anton Prokofievitch foi assaltado por perguntas de todos os lados, a que respondeu com um enérgico: "não vem! " Um instante mais e este seu fracasso ia-lhe valer uma saraivada de recriminações, de injúrias e até de encontrões, quando de repente a porta se abriu dando passagem a Ivan Nikiforovitch. A aparição de um fantasma, ou mesmo do próprio diabo em pessoa, não teria produzido tanto espanto. Encantado com a sua mistificação, Anton Prokofievitch estalou em gargalhadas.

 

Entretanto ninguém conseguia compreender como em tão pouco tempo Ivan Nikiforovitch tinha conseguido dar-se ares decentes de homem de sociedade. No momento da sua entrada, Ivan Ivanovitch tinha-se ausentado da sala por alguns instantes. Acalmado o espanto geral, toda a gente deu provas de grande interesse pela saúde de Ivan Nikiforovitch, felicitando-o por ter aumentado de volume. Ivan Nikiforovitch a todos estendia a mão, repetindo: "Muito prazer, muito prazer!"

 

O cheiro da sopa de beterraba veio entretanto aguçar o olfato dos convidados, que, espicaçados pela fome, se precipitaram para a sala de jantar. Um enxame de damas - palradoras e silenciosas, gordas e franzinas - tomaram a dianteira, e em pouco tempo a mesa enorme matizou-se de mil cores. Não vou descrever-vos as iguarias; não falarei das tortas de creme, do prato de miudezas que acompanhou a sopa, do peru com ameixas e passas, e daquele prato que fazia lembrar sola com molho de kvass, ou ainda um outro, verdadeiro canto de cisne de cozinheiro antigo, que foi servido envolto em chamas, com grande pavor ridículo das senhoras. Nada direi destes acepipes porque prefiro de longe saboreá-los a servir-me deles como tema para grandes discursos.

 

Um peixe com molho de rabanetes ofereceu a Ivan Ivanovitch uma agradável ocasião para exercer as suas faculdades nutritivas. Entretinha-se ele a enfeitar o bordo do prato com as espinhas, quando maquinalmente o seu olhar se fixou no lado oposto da mesa... Senhor, Deus meu, seria possível? Tinha diante de si Ivan Nikiforovitch!

 

No mesmo instante Ivan Nikiforovitch levantou os olhos do prato. Não; necessito doutra pena. Para descrever semelhante quadro a minha é demasiado hesitante, demasiado frágil! ... Estavam petrificados de espanto. Cada um deles tinha diante de si um rosto bem conhecido, rosto dum amigo que se espera há muito tempo e a quem a todo o momento se vai oferecer a tabaqueira, dizendo: "Sirva-se...", ou então: "Queria-lhe pedir um favor...". E contudo, este rosto metia medo como se fosse um sinal de mau agouro! Os dois homens suavam em bica.

Com os olhos fixos nos velhos amigos, todos os circunstantes perderam durante um tempo o uso da fala.

 

Até as senhoras interromperam um colóquio apaixonante sobre a arte de capar galos. Fez-se um silêncio total. Quadro bem digno de inspirar o pincel de um mestre. Ivan Ivanovitch acabou por recorrer ao lenço, enquanto Ivan Nikiforovitch, passeando o olhar à volta da sala, fixou-o na grande porta principal, que estava aberta. O presidente, que surpreendeu esse olhar, apressou-se a mandá-la fechar hermeticamente. Depois disto cada um deles se enterrou novamente na cadeira, e não levantou mais os olhos do prato.

 

Mal terminou o jantar, ambos pegaram resolutamente nos respectivos gorros, na ânsia de se retirarem imediatamente. Então, a um sinal do presidente, Ivan Ivanovitch - não o nosso herói, o outro, o zarolho - colocou-se por detrás de Ivan Nikiforovitch enquanto o presidente cortava a retirada a Ivan Ivanovitch; começaram a empurrá-los um para o outro, na firme intenção de os obrigar a apertar a mão. A verdade é que Ivan Ivanovitch, o zarolho, empurrou Ivan Nikiforovitch um bocado de esguelha, mas mais ou menos na direção de Ivan Ivanovitch. Mas o presidente, impotente para impor a sua vontade à perna coxa, que, precisamente nesse dia, estava muito indisciplinada e tomava as iniciativas mais surpreendentes (conseqüência provável de libações freqüentes e variadas), o presidente empurrou Ivan Ivanovitch tão desajeitadamente que este se despenhou sobre uma senhora vestida de vermelho, a quem a curiosidade tinha atraído para o meio da sala. Este incidente não agourava nada de bom. Para reparar a falta do presidente, o juiz tomou o seu lugar e, sorvendo com uma inspiração forte todo o tabaco em depósito sobre o lábio, empurrou Ivan Ivanovitch do lado oposto. Esta forma de reconciliação, característica de Mirgorod, tem muitas semelhanças com o jogo da bola. Quando o juiz pôs Ivan Ivanovitch em posição, Ivan Ivanovitch - o outro, o zarolho - empurrou na sua direção Ivan Nikiforovitch, que suava em bica. Apesar duma resistência encarniçada, e graças ao apoio prestado às forças propulsoras por alguns dos convidados, os nossos dois amigos encontraram-se finalmente face a face. À volta deles formou-se um círculo apertado, disposto a não se abrir até eles apertarem as mãos.

-Ora vamos lá ver, Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch, qual é no fundo o motivo da vossa desavença?

Nada, uma ninharia, com certeza. Não têm vergonha, perante Deus e perante os homens, de tomarem uma atitude dessas?

-Eu não sei bem - balbuciou Ivan Nikiforovitch arquejante, com todo o ar de quem estava pronto a ceder -, eu não sei bem que mal posso eu ter feito a Ivan Ivanovitch. Porque é que ele destruiu a minha capoeira e ainda por cima quis atentar contra a minha existência?

-Eu não sou culpado de qualquer má intenção - retorquiu Ivan Ivanovitch sem levantar os olhos para Ivan Nikiforovitch. - Juro, perante Deus e perante os responsáveis cavalheiros aqui presentes, que nunca fiz mal nenhum ao meu inimigo. Porque é que ele há-de difamar e insultar o meu nome e a minha posição?

-Em que é que eu o insultei, Ivan Ivanovitch?

Mais um minuto, e extinguir-se-ia para sempre aquela longa inimizade. Ivan Nikiforovitch já tinha a mão no bolso para tirar a tabaqueira, e pronunciar o sacramental: "Sirva-se!"

-Então o senhor - recomeçou Ivan Ivanovitch - não considera que é um insulto o ter sujado o meu nome e o da minha família com um termo que o respeito a este lugar me impede de repetir?

-Ora vamos lá ver aqui, entre amigos - ripostou Ivan Nikiforovitch, que deu uma prova evidente da sua boa vontade tocando com um dedo num dos botões da sobrecasaca de Ivan Ivanovitch - Por que diabo lhe subiu a mostarda ao nariz? Porque eu lhe chamei pato bravo...

Mal acabou de soltar esta palavra, Ivan Nikiforovitch lamentou - mas já era tarde! - a sua imprudência.

 

Era o fim de tudo! Se quando tinha sido pronunciada sem testemunhas Ivan Ivanovitch se tinha enfurecido de tal modo que perdera completamente a noção das realidades, podeis imaginar, caros leitores, o terrível efeito que lhe causou a menção da palavra fatal perante uma reunião onde estavam presentes tantos indivíduos dum sexo que ele respeitava tão profundamente! Se ao menos Ivan Nikiforovitch tivesse dito "ave" em vez de "pato bravo", as coisas ainda se teriam podido compor. Mas "pato bravo"! Não, estava tudo acabado.

 

Ivan Ivanovitch lançou um olhar ao adversário - e que olhar! Um olhar que, se fosse dotado de poder executivo, teria reduzido Ivan Nikiforovitch a pó. Os convidados, que interpretaram o significado daquele olhar, apressaram-se a separá-los. E este bom homem, que nunca deixa passar um mendigo à sua porta sem se informar da sua saúde e das suas dificuldades, este modelo de virtude pôs-se em fuga, presa dum ataque de cólera. São assim as tempestades que a paixão desencadeia!

 

Durante um longo mês ninguém ouviu falar de Ivan Ivanovitch. Não saía de casa. O cofre secreto foi aberto, e desse cofre saíram - imaginem o quê! - nada menos que os ducados, os antigos ducados dos seus antepassados. E estes ducados passaram para as mãos sujas dos homens de leis. O caso foi entregue ao Supremo Tribunal. E só quando Ivan Ivanovitch recebeu a grata notícia de que a sentença seria dada no dia seguinte, só então ele se resolveu a sair de casa. Já lá vão dez anos, e desde essa data todos os dias o Tribunal o informa que a sentença será dada no dia seguinte!

 

Certo dia, há cinco anos, atravessava eu Mirgorod numa época bem má. A estação ia avançada: um outono triste oferecia generosamente a sua umidade, os seus lamaçais e os seus nevoeiros. Uma vegetação definhada e quase artificial, engendrada por uma chuva lúgubre e incessante, revestia os campos e os prados, e ficava-lhes tão mal como uma brejeirice na boca dum velho ou uma rosa no peito duma mulher de idade. Nessa época, o estado do tempo influenciava muito o meu estado de alma: quando ele estava triste, também eu entristecia. E contudo, quando me aproximei de Mirgorod o meu coração batia mais depressa. Meu Deus! Quantas recordações! Havia doze anos que eu não via esta bela cidade! Nessa época havia dois amigos que dedicavam um ao outro uma comovedora amizade. E desde essa época, quantos homens célebres não tinham desaparecido! O juiz Demianovitch morrera, assim como Ivan Ivanovitch, o zarolho. Quando a minha carruagem entrou na rua principal, surgiam de todos os lados postes coroados com um feixe de palha: tinham começado os trabalhos. Entretanto deitaram-se abaixo alguns casebres, e os destroços amontoavam-se tristemente aqui e além.

 

Era dia de festa. Parei a carruagem diante da igreja, e entrei tão silenciosamente que ninguém deu por mim. De resto, quem é que se havia de voltar? Até os paroquianos mais devotos tinham ficado em casa para fugir à chuva e à lama. Na igreja vazia filtrava-se uma luz débil, doentia, e a claridade fraca dos círios acentuava a sensação de mal-estar. A tristeza subia das capelas escuras, e a chuva chorava nos vidros redondos das janelas altas.

 

Quando entrava numa das capelas, avistei um velho de aspecto respeitável, com a cabeça branca.

 

-Desculpe-me a pergunta: Ivan Nikiforovitch ainda é vivo?

Neste momento a lamparina que ardia diante duma imagem sagrada lançou uma luz mais viva que inundou o rosto do meu vizinho. Com grande surpresa, reconheci Ivan Nikiforovitch em pessoa - mas que mudado!

-Como tem passado, Ivan Nikiforovitch? O senhor mudou muito!

-Sim, envelheci - respondeu-me ele. - Acabo de chegar de Poltava.

-De Poltava! Com um tempo destes?

- É preciso! Tratar do meu processo...

Ao ouvir-me suspirar, Ivan Nikiforovitch acrescentou:

- Não se apoquente: tenho informação de fonte segura que a decisão será dada na próxima semana, e que será a meu favor.

 

Encolhi os ombros e parti em busca de Ivan Ivanovitch.

-Olhe, lá está ele - disse-me alguém. - Ali ao pé da igreja.

Olhei e vi um homem magro, com os cabelos completamente brancos e a testa sulcada de rugas profundas. Seria de fato Ivan Ivanovitch? Sim, era de fato Ivan Ivanovitch, enfiado na sua eterna sobrecasaca. Após os primeiros cumprimentos, perguntou-me com aquele sorriso que tão bem se coadunava com a forma oval do seu rosto:

-Quer saber uma novidade agradável?

-O que é?

-Amanhã é o dia do meu triunfo: o tribunal dá amanhã a sentença a meu favor, segundo uma informação segura que acabo de receber.

 

Escapou-se-me do peito um suspiro ainda mais fundo. Apressei-me a despedir-me, alegando que tinha algo de urgente a tratar, e subi para a minha britchka.

 

As pobres pilecas, que em Mirgorod são batizadas com o nome de cavalos de posta, puseram-se em marcha penosamente; o ruído das patas na lama parda feria-me os tímpanos. A chuva que caía torrencialmente encharcava o judeu pendurado no cimo do assento, abrigado apenas por uma velha esteira de junco. A umidade penetrava-me de alto a baixo. Deslizaram-me lentamente perante os olhos as portas sombrias da cidade, onde, metido na guarita, um aleijado remendava a roupa esfarrapada. Depois, repetiram-se as mesmas campinas pardacentas, as mesmas pradarias lustrosas, a mesma chuva monótona, o mesmo céu a rebentar de lágrimas e desespero. Ah, meus amigos, como é triste o mundo em que somos forçados a viver!

 

Nikolai Gogol


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