05 agosto 2022

Capítulo VI - Gorada a singular tentativa de reconciliação - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo VI

 

Gorada a singular tentativa de reconciliação

 

Se bem que o tribunal não tencionasse dar publicidade ao fato, o caso é que no dia seguinte não havia ninguém em Mirgorod que não soubesse que uma marrã de Ivan Ivanovitch tinha roubado o requerimento de Ivan Nikiforovitch. O próprio presidente da Câmara foi o primeiro a falar no assunto, por distração. Quando a coisa chegou aos ouvidos de Ivan Nikiforovitch, este limitou-se a perguntar:

- Não foi uma marrã castanha?

Mas Ágata Fedosseievna, que por acaso estava ao pé dele, não perdeu a oportunidade de o repreender:

- O quê, Ivan Nikiforovitch? Tu vais deixar que te metam a ridículo? Queres que toda a gente te aponte com o dedo? Depois disso, vê lá se tens coragem de te dizeres fidalgo.

E a megera levou a sua avante. Desencantou não sei onde um homenzinho de meia idade, trigueiro e bexigoso, enfiado numa sobrecasaca muito ridícula e remendada nos cotovelos; engraxava as botas com alcatrão, conseguia meter três canetas duma vez atrás da orelha, e tinha um frasquinho de vidro pendurado num dos botões do fato à laia de tinteiro; era capaz de engolir nove chouriços de enfiada, e guardava sempre o décimo na algibeira; conseguia acumular, numa simples folha de papel, tanta matéria-prima, que nenhum escrivão conseguia ler tudo sem se engasgar freqüentemente e ter violentos ataques de tosse. Esta amostra de gente, este lindo exemplar trabalhou com todo o afã, esmerou-se o mais que pôde, e finalmente deu à luz o seguinte documento:

"Ao tribunal de primeira instância de Mirgorod, o fidalgo Ivan, Filho de Nikifor, Dovgotchkoun.

 

"Em aditamento ao requerimento apresentado por mim, Ivan, filho de Nikifor, Dovgotchkoun, perante o tribunal de primeira instância de Mirgorod, venho pelo presente documento afirmar que a atitude do dito tribunal revela a existência de um entendimento privado com o fidalgo Ivan, filho de Ivan, Pererepenko.

 

A prova evidente deste fato é que o tribunal pretendeu esconder do público o desacato cometido pela marrã castanha, que só me chegou aos ouvidos por informação de pessoas estranhas ao assunto. Ora esta cumplicidade criminosa deve ser apresentada em juízo sem demora visto que uma marrã, sendo um animal desprovido de razão, não pode ser, por si só, responsável pelo roubo de documentos. Donde naturalmente se deduz que a mencionada marrã obedeceu às instigações da parte contrária, o pretenso fidalgo Ivan, filho de Ivan, Pererepenko, cujos crimes de banditismo, sacrilégio e tentativa de assassínio já foram devidamente provados. Não obstante, o dito tribunal de Mirgorod, com a parcialidade que o caracteriza, prestou-se a colaborar na defesa dos interesses do meu adversário, visto que sem essa colaboração a mencionada marrã não teria podido, de modo algum, subtrair o dito documento, devido ao fato de o tribunal de Mirgorod estar habitualmente guardado por vários porteiros e outros funcionários, entre os quais basta mencionar um soldado que está sempre presente na sala de audiências, o qual, se

bem que privado de um olho e mutilado dum braço, tem certamente a força necessária para expulsar uma marrã à paulada. Conseqüentemente, não resta dúvida de que o mencionado tribunal participa em intrigas e se vende com suntuosos presentes, ilicitamente distribuídos entre os seus membros. Quero ainda fazer notar que o mencionado fidalgo Ivan, filho de Ivan, Pererepenko, já foi preso por desacato.

 

"Pelo que foi dito, eu, abaixo assinado, Ivan, filho de Nikifor, Dovgotchkoun, venho requerer ao mencionado tribunal de Mirgorod que o requerimento acima mencionado seja retirado à dita marrã castanha ou ao seu cúmplice, o fidalgo Pererepenko, e que uma vez levado o caso a tribunal seja pronunciada sentença a meu favor, conforme é de justiça. Caso contrário, eu, abaixo assinado, Ivan, filho

de Nikifor, Dovgotchkoun, reservo-me o direito de apelar para o Supremo Tribunal, denunciando as atitudes ilegais e sub-reptícias assumidas pelo dito tribunal de primeira instância, entregando a solução do caso ao mencionado Supremo Tribunal.

 

"Assinado por mim, fidalgo de Mirgorod, Ivan, filho de Nikifor, Dovgotchkoun." Este requerimento produziu o seu devido efeito. Como todas as pessoas de bem, o simplório do juiz era ligeiramente covarde por natureza. Entregou o assunto ao escrivão. Com a sua magnífica voz cheia de tonalidade, o escrivão deixou filtrar um "hum" por entre os lábios, e assumiu a expressão diabolicamente indiferente que caracteriza Satanás quando vê que uma das suas vítimas está prestes a cair no laço. Não havia senão uma solução: reconciliar os dois amigos. Mas que mais se podia fazer? Tinham falhado todas as tentativas. Contudo, tentou-se mais uma vez: Ivan Ivanovitch declarou peremptoriamente que não queria ouvir falar mais no assunto, e chegou mesmo a zangar-se; Ivan Nikiforovitch limitou-se a voltar as costas. Portanto o processo seguiu o seu curso com aquele ritmo vivo que é a glória dos nossos tribunais. Nesse mesmo dia o requerimento foi rubricado, numerado, registrado e homologado, e foi depositado num armário onde ficou a dormir, a dormir, a dormir durante um, dois, três anos. Muita rapariga nova se casou; fez-se uma nova rua; não se sabe muito bem porquê, os garotos que brincavam no pátio de Ivan Ivanovitch aumentaram de número; em sinal de desprezo pelo vizinho, Ivan Nikiforovitch construiu um novo pátio para a criação um pouco mais afastado que o anterior, e ocultou tão perfeitamente a sua casa que estes dois respeitáveis personagens deixaram praticamente de se ver - e durante todo este tempo, nas profundezas de um armário todo enfeitado de nódoas de tinta, o processo continuava a dormir o sono dos justos.

 

Entretanto, deu-se um acontecimento de extraordinária importância: o presidente da Câmara deu uma recepção! Onde poderia eu conseguir os pincéis, as cores para pintar a grandeza desta reunião e a magnificência do festim? Abram o vosso relógio e reparem no mecanismo: que terrível quebra-cabeças, não é verdade? Pois bem, imaginem que no largo da Câmara Municipal havia quase tantas rodas como no mecanismo dum relógio. Estavam representadas todas as espécies de carruagens. Uma tinha o fundo largo e a almofada estreita; outra, o fundo estreito e a almofada larga. Uma era ao mesmo tempo britchka e caleche; outra, não era nem britchka nem caleche. Havia uma que parecia uma enorme meda de feno, uma solteirona gorda; outra dir-se-ia um judeu mal vestido ou então um esqueleto com uns farrapos de carne pendurados. Outra, ainda, vista de perfil, dava a impressão dum enorme cachimbo; enquanto uma outra, que estava ao pé desta última, não se parecia a nenhuma e constituía uma massa estranha, informe e absolutamente fantástica. No meio deste caos de rodas destacava-se uma espécie de carroça, fechada, cujas janelas eram seguras por pesadas trancas. De gibão ou de sobrecasaca cinzenta, de gorro de astracã ou com os chapéus mais exóticos, os cocheiros passeavam, com o cachimbo entre os dentes, os cavalos desengatados. Ah! que festa magnífica! Permitam-me que vos diga quem eram os convidados: TarassTarassovitch, EvplAkinfovitch, EvtikhiEvtikhievitch, Ivan Ivanovitch - mas não o nosso herói, um outro -, SavvaGovrilovitch, o nosso Ivan Ivanovitch, EleuthereEleutherievitch, MakarNazarievitch, FomaGrigorievitch... É impossível continuar, a minha mão recusa-se a fazê-lo! E as damas, meus amigos! Havia-as grandes, pequenas, de tez de jasmim e de tez de bronze, e se algumas eram anafadas como Ivan Nikiforovitch, outras cabiam facilmente na bainha da espada do anfitrião. Que variedade de chapéus e de vestidos - vermelhos, amarelos, verdes, azuis, novos, virados, transformados.

 

Que abundância de golas, fitas, saquinhos! Adeus, adeus, meus pobres olhos, semelhante espetáculo será o vosso fim! E que imensa mesa posta com todo o requinte! Quando toda a gente desatou a dar à língua, podem crer que faziam um burburinho, uma zoada, uma bulha tal que abafaria o ruído dum moinho com as suas mós, rodas, engrenagens e taramelas. Seria incapaz de vos reproduzir com precisão os temas das conversas: mas com certeza juntava-se o útil ao agradável, falando da chuva e do bom tempo, dos cães e das sementeiras, dos vestuários e dos cavalos de raça. A certa altura, Ivan Ivanovitch - não o nosso herói, o outro, o zarolho - começou a dizer:

 

-É curioso, o meu olho direito (Ivan Ivanovitch, o zarolho, referia-se sempre ao seu defeito num tom de ironia), o meu olho direito não distingue nesta sala Ivan Nikiforovitch, Dovgotchkoun.

-Recusou-se a vir - respondeu-lhe o presidente da Câmara.

-E porquê?

-Imagine que já lá vão dois anos que eles se zangaram - Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch -, e desde então, onde um vai não vai o outro.

-Que me diz? - exclamou Ivan Ivanovitch, o zarolho, levantando os olhos ao céu e de mãos postas. - Ora diga-me: se as pessoas que têm dois olhos se zangam, que faria eu que tenho um só!

Toda a gente desatou a rir. Ivan Ivanovitch, o zarolho, era pródigo em gracejos deste gênero, que lhe valiam a estima geral. Um cavalheiro enorme, seco, de casaca de baeta e com um emplastro sobre o nariz, e que até então tinha ficado muito quietinho no seu canto, com o rosto impassível, mesmo quando as moscas lhe pousavam no nariz - este cavalheiro veio juntar-se ao numeroso grupo que rodeava o Ivan Ivanovitch zarolho.

 

-Ouçam - disse este, quando descobriu que se tornara o ponto central da reunião. - Escutem, em vez de ficarem a contemplar o olho que me falta, será melhor que me ajudem a reconciliar os nossos dois amigos. Descortino além Ivan Ivanovitch em animada conversa com o belo sexo. Sem que ele desconfie de nada, mandemos buscar Ivan Nikiforovitch e lancemo-los nos braços um do outro.

 

A proposta de Ivan Ivanovitch, o zarolho, foi aceite com entusiasmo, e decidiu-se enviar imediatamente um estafeta a casa de Ivan Nikiforovitch, convocando-o, da parte do presidente, para jantar. Mas levantava-se séria dúvida: a quem confiar esta importante e delicada missão? Este espinhoso problema lançou a perplexidade nos espíritos. Depois de bem pesados os talentos diplomáticos de cada um, a escolha caiu unanimemente em Anton ProkofievitchGolopuz.

 

Apresentemos ao leitor este notável personagem. Anton Prokofievitch era a virtude em pessoa. Se algum notável de Mirgorod lhe oferecia um lenço de seda ou uns calções, ele agradecia; mas se lhe davam um piparote, ele agradecia da mesma maneira. Se lhe perguntavam: "Anton Prokofievitch, porque usa mangas azul-celeste na sua casaca castanha?", ele geralmente respondia: "Se o senhor tem uma igual, espere que as mangas estejam usadas e verá que já não nota a diferença." E de fato, o sol tinha comido tão regularmente o azul do tecido, que as mangas se harmonizavam com o resto da casaca. Mas o mais curioso é que Anton Prokofievitch se vestia de lã no verão e de algodão no inverno. Anton Prokofievitch não tem casa. Outrora possuiu uma mesmo à saída da cidade, mas vendeu-a para comprar uma pequena britchka puxada por três cavalos baios, de que se servia para visitar os fidalgos dos arredores. Porém, como os cavalos exigiam cuidados e a aveia era cara, Anton Prokofievitch trocou-os por uma serva, um violão e uma nota de cinqüenta rublos. Mais tarde, Anton Prokofievitch vendeu o violão e trocou a rapariga por uma bolsa de tabaco em marroquim dourado. Se é certo que ele possui hoje a mais bela bolsa de tabaco do mundo, em contrapartida já não pode dar-se com os proprietários dos arredores, e vê-se forçado a passar as noites aqui e ali, principalmente em casa das pessoas de categoria que se divertem à sua custa. Além de acumular tantas virtudes, joga muito razoavelmente a bisca e outros jogos igualmente complicados.

Habituado a obedecer, Anton Prokofievitch pegou na bengala e no chapéu e pôs-se a caminho sem levantar objeções. Durante o trajeto foi refletindo nos meios a utilizar para convencer Ivan Nikiforovitch.

 

O humor um tanto brusco deste cavalheiro, aliás bastante respeitável, tornava o empreendimento assaz temerário. Como convencê-lo a aceitar o convite, se para ele representava tanto esforço pôr-se na posição vertical? Admitindo que ele se punha de pé, como conduzi-lo a um local onde ele sabia, sem sombra de dúvida, que iria encontrar o seu implacável inimigo? Quanto mais Anton Prokofievitch refletia sobre o problema, mais obstáculos descobria. O dia estava quente; o sol ardente fazia-o suar em bica. O nosso homem deixava-se engrolar com facilidade, e nem sempre se saía bem dos seus empreendimentos; contudo, conhecia vários ardis, sabia fazer de parvo no momento oportuno, e saía-se com honra de aventuras em que homens de espírito teriam fracassado.

No momento em que o seu espírito inventivo tinha já descoberto a armadilha em que devia cair Ivan Nikiforovitch, e estava já preparado para enfrentar heroicamente o pior, uma circunstância imprevista por pouco lhe não fez perder a serenidade. A propósito, devo prevenir os meus leitores que um dos pares de calças de Anton Prokofievitch tinha a estranha mas infalível virtude de atrair os dentes dos cães para a barriga das pernas do nosso homem. exatamente nesse dia, ele trazia essas calças. Mal se tinha entregue à corrente das suas reflexões, foi despertado pelo ladrar apavorante dos cães. Anton Prokofievitch soltou um grito agudo (não havia ninguém que gritasse melhor do que ele). Atraídos por este grito, acorreram não somente a nossa velha conhecida, a mostrenga, e o locatário da incomensurável sobrecasaca, mas até a garotada de Ivan Ivanovitch. Os cães, aliás, mal tiveram tempo de lhe morder uma canela. Este episódio, no entanto, fez-lhe perder um pouco da sua confiança, e foi com certa timidez que começou a subir as escadas de entrada.

 

Nikolai Gogol

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