05 agosto 2022

Capítulo III - Conseqüências da desavença entre Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo III

 

Conseqüências da desavença entre Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch

 

Aí temos, pois, desavindos estes dois respeitáveis indivíduos, honra e glória de Mirgorod. E porquê?

Pergunto-vos eu.

Por uma ninharia, por uma estupidez, por uma palavra. Por causa desta ninharia os nossos dois inseparáveis amigos não querem mais voltar a ver-se; por esta ninharia cortaram todas as relações! Até ontem, não havia dia nenhum que Ivan Ivanovitch e Ivan Nikiforovitch não mandassem saber notícias um do outro; várias vezes por dia, do patamar das suas casas, eles trocavam frases tão amenas que aqueciam a alma a quem as escutava... Todos os domingos Ivan Ivanovitch, de sobrecasaca de lã, e Ivan

Nikiforovitch, de japona amarelo-esverdeada, iam à igreja quase de braço dado. Logo que o olhar penetrante e observador de Ivan Ivanovitch descobria qualquer charco ou qualquer imundície no meio da rua - o que é bastante freqüente em Mirgorod - prevenia imediatamente Ivan Nikiforovitch: "Cuidado não ponha o pé ali porque é muito desagradável." Por seu lado Ivan Nikiforovitch dava provas a Ivan Ivanovitch de uma amizade enternecedora, e mesmo a grandes distâncias oferecia-lhe a tabaqueira dizendo: "Sirva-se!" E que bem se entendiam os dois amigos... Quando me deram a novidade, foi como se tivesse sido atingido por um raio, embora duvidando do que ouvia. Oh, misericórdia divina! Ivan Ivanovitch desavindo com Ivan Nikiforovitch! Duas pessoas tão sensatas! Depois desta derrocada, nada de sólido restava neste mundo mesquinho.

Ivan Ivanovitch entrou em casa perturbadíssimo. Geralmente, o seu primeiro cuidado era ir à cavalariça ver se a jumenta tinha comido bem o feno. (Ivan Ivanovitch possui uma jumenta cinzenta, um belo animal, podem crer.) Depois era ele próprio que dava de comer aos gansos e à garotada. Só depois de cumprir estas missões é que voltava à casa para se entregar ou a tornear objetos em madeira (trabalho que ele realizava com a perfeição de um artista), ou a percorrer um velho alfarrábio, impresso por Lubbi, Gorii e Popov livro de que ele já não lembra o título, porque Gapka, um belo dia, lhe arrancou um pedaço da capa para distrair um dos garotos), ou ainda para fazer uma sesta debaixo do alpendre. Mas naquele dia, em vez de se entregar às suas ocupações favoritas, começou por ralhar a Gapka, a primeira pessoa que encontrou, por andar a bocejar pelos cantos, se bem que ela arrastasse nesse momento para a cozinha um saco cheio de farinha; atirou com a bengala a um galo que tinha vindo ao patamar em busca da sua refeição habitual; e quando um garoto, sujo e maltrapilho, correu ao seu encontro, gritando: "Paizinho, paizinho, dê-me um bocado de pão doce", Ivan Ivanovitch repeliu-o com um gesto tão ameaçador e com um bater de pés tão enérgico, que o garoto achou prudente afastar-se sem insistir no pedido.

 

Com o passar das horas, no entanto, sentiu necessidade de se acalmar e de regressar ao ramerrão quotidiano. Jantou tarde, e quando se estendeu debaixo do alpendre a noite começava já a cair. Uma canja de borrachos e de beterraba, muito bem cozinhada por Gapka, tinha-lhe feito esquecer os acontecimentos da tarde. Com um prazer evidente, Ivan Ivanovitch passeou o olhar pela sua propriedade; depois, fixando a do vizinho, pensou: "Olha, hoje ainda não fui visitar Ivan Nikiforovitch; vou lá agora."

E pegando na bengala e no gorro, saiu imediatamente de casa. Mas mal pôs os pés na rua recordou-se da discussão com o amigo, cuspiu de desprezo e arrepiou caminho. Com Ivan Nikiforovitch passou-se quase o mesmo. Ivan Ivanovitch descobriu a velha já com um pé na vedação, no intuito de a transpor, quando a voz do patrão a obrigou a estacar: "p'ra trás, p'ra trás! nada disso!" Ivan Ivanovitch sentiu-se em breve invadido pelo tédio, e não há dúvida que estes dignos personagens se teriam reconciliado no dia seguinte se, por infelicidade, um certo acontecimento não se tivesse verificado em casa de Ivan Nikiforovitch, e que veio atiçar a chama, quase já extinta, da inimizade.

 

Nessa mesma tarde Ágata Fedosseievna foi visitar Ivan Nikiforovitch. Esta senhora não era nem parente nem comadre de Ivan Nikiforovitch, e não se percebia muito bem porque o visitava tão assiduamente, tanto mais que ele não tinha grande prazer nessas visitas. Apesar disso, ela instalava-se em casa dele durante dias e dias, às vezes por uma semana ou mais... Tomava conta das chaves, e reinava na casa como dona absoluta. Se bem que tudo isto desagradasse profundamente a Ivan Nikiforovitch, era surpreendente ver como ele lhe obedecia como uma criança; e mesmo que ele tentasse impor-se, era sempre Ágata Fedosseievna que tinha a última palavra.

 

Nunca consegui compreender por que artes as mulheres conseguem levar sempre os homens pelo beiço; será porque este não tem qualquer outra utilidade? A verdade é que Ágata Fedosseievna conseguia transformar Ivan Nikiforovitch num cordeirinho dócil. E, de boa ou má vontade, o fato é que ele moderava alguns dos seus hábitos na presença dela: passava a tomar banhos de sol menos demorados, e tomava-os em camisa e calção em vez de o fazer tal e qual como a Natureza-mãe o deitara ao mundo.

 

Mas nestes aspectos, Ágata Fedosseievna mostrava-se muito mais acomodatícia. Se ele tinha febre, esta digna senhora, inimiga das cerimônias, friccionava-o dos pés à cabeça com vinagre e terebentina. Ágata Fedosseievna arvorava uma touca na cabeça, três verrugas no nariz, e no corpo uma capa cujo fundo cor de café era suavizado por flores amareladas. Como se esse mesmo corpo se assemelhava a um barril, ser-vos-ia tão difícil desvendar a sua cintura como ver o vosso próprio nariz sem o auxílio de um espelho. Tinha os pés curtos, em forma de almofadinhas. Era intriguista, comia beterrabas cozidas ao pequeno almoço e praguejava na perfeição; e tudo isto sem que a sua expressão se alterasse, privilégio quase sempre negado às pessoas do seu sexo.

 

Desde a sua chegada, as coisas envenenaram-se mais. "E principalmente, Ivan Nikiforovitch", repetia ela, "não faças as pazes com ele: aquele homem só quer a tua perdição; ele é assim mesmo, tu é que não o conheces!" Tantas coisas disse esta maldita intriguista que ele nunca mais quis ouvir falar de Ivan Ivanovitch.

 

E tudo se transformou. Mal o cão do vizinho se esgueirava para o pátio desancavam-no sem piedade; os garotos que se atreviam a escalar a vedação batiam em retirada aos berros, com a camisa levantada e as costas cheias dos vergões das chicotadas; e um dia, a criada de Ivan Nikiforovitch deu uma resposta tão inconveniente a uma pergunta de Ivan Ivanovitch que este, ofendido na sua sensibilidade, até cuspiu de raiva.

 

"Ah!", murmurou ele, "velha desavergonhada! Ainda é pior que o patrão!" Para cúmulo das ofensas, o execrável vizinho, como que para acentuar a afronta recente, construiu mesmo em frente da casa de Ivan Ivanovitch, junto à vedação que separava as duas propriedades, uma capoeira para criação de patos. E o recinto odioso cresceu com uma rapidez diabólica; num dia ficou pronto. Este crime desencadeou a raiva de Ivan Ivanovitch, que ardia em desejos de vingança. A princípio dissimulou a sua raiva, apesar do pátio lhe invadir o seu terreno; mas o coração batia-lhe tanto que só com um enorme esforço conseguia manter aquela calma aparente.

 

Desta maneira se passou o dia. Chegou a noite. Ah! se eu fosse pintor, como eu saberia exprimir o encanto desta noite! Representaria Mirgorod adormecida sob o olhar fixo de inumeráveis estrelas; no silêncio, que eu saberia tornar palpável, soava o ladrar dos cães próximos e distantes; com espírito intrépido e heróico, um Romeu apaixonado escalava o muro da casa da sua amada; sob o luar, as casas brancas tornavam-se ainda mais brancas, mais escuras as árvores que as abrigam, mais densa a sombra que essas árvores projetam; as flores, a erva entorpecida, exalavam um perfume mais capitoso, enquanto o coro dos grilos, esses turbulentos cavaleiros da noite, lançava aos ares a sua canção crepitante.

 

Surpreenderia numa destas casinhas baixas qualquer beleza da terra, de sobrancelha negra, deitada, com o seio palpitante, numa cama solitária, sonhando com bigodes, esporas e hussardos, enquanto um raio de lua brincalhão se demora nas suas faces... Faria aparecer na rua branca a sombra negra de um morcego que acaba de pousar sobre as chaminés caiadas. Mas era impossível fazer aparecer Ivan Ivanovitch neste quadro, por tal forma o seu rosto exprimia sentimentos e emoções tão diversas no momento em que nessa noite ele saía a passos furtivos, cautelosamente, para se introduzir sorrateiramente no reduto dos patos.

 

Ignorantes ainda da zanga, os cães de Ivan Nikiforovitch permitiram que este velho amigo da casa se aproximasse da capoeira, que se apoiava completamente em quatro pés de carvalho. Ivan Ivanovitch entrega-se imediatamente à tarefa de cortar o pé mais próximo. O ruído da serra obriga-o a olhar em volta a cada instante, mas a sede de vingança dá-lhe coragem para prosseguir. Uma vez cortado o primeiro pé, lança-se sobre o segundo. Tem os olhos injetados e o medo cega-o. Inesperadamente, solta um grito e fica estarrecido, julgando ter visto um fantasma. Mas não, era apenas um pato que simpaticamente esticava para ele o pescoço. Enraivecido, Ivan Ivanovitch cospe, recobra coragem e recomeça a tarefa. O segundo pé começa a ceder, e a capoeira a vacilar.

 

Quando Ivan Ivanovitch acabou o terceiro pé, o coração batia-lhe no peito com tal violência que teve de interromper o trabalho várias vezes. Mal chegara a meio da tarefa, o frágil casebre cambaleou e ruiu com estrondo, quase não lhe dando tempo para dar um salto para trás. Completamente apavorado, saltou por cima da serra, correu para casa, trancou a porta e deitou-se sobre a cama, incapaz de espreitar pela janela o que se passava. Parecia-lhe que toda a gente da casa de Ivan Nikiforovitch lhe vinha no encalço: a bruxa da velha, o seu patrão, o bonifrate com a sobrecasaca interminável - todos armados de mocas e comandados por Ágata Fedosseievna, prontos a demolir-lhe a casa. Ivan Ivanovitch passou todo o dia seguinte roído pela febre. Sonhou que o seu execrável vizinho, por vingança, deitava fogo à casa; e por isso, ordenou a Gapka que não deixasse que ninguém se aproximasse da palha seca. Por fim, desconfiando das intenções de Ivan Nikiforovitch, resolveu antecipar-se e apresentar contra ele no tribunal da primeira instância de Mirgorod uma queixa, cujo conteúdo se encontra no capítulo seguinte.

 

Nikolai Gogol

Nenhum comentário:

Postar um comentário