05 agosto 2022

Capítulo II - O desejo avassalador de Ivan Ivanovitch - A briga dos dois Ivans

 

Capítulo II

 

O desejo avassalador de Ivan Ivanovitch

 

Certa manhã de Julho, Ivan Ivanovitch repousava à sombra do alpendre de sua casa. Era um dia de calor intenso e a atmosfera parecia envolta em toalhas de fogo. Ivan Ivanovitch já tinha dado uma volta pelos campos a animar os ceifeiros, a interrogar os aldeões sobre as suas idas e vindas, os seus gestos e atitudes; depois, esgotado de fadiga, sentiu muito naturalmente necessidade de se estender ao comprido e descansar. Nesta cômoda posição, Ivan Ivanovitch percorria com o olhar as suas terras, a cavalariça, os celeiros, as galinhas que depenicavam no pátio, e pensava para consigo mesmo: "Senhor meu Deus, como sei avaliar bem a minha felicidade! Há alguma coisa que eu não possua? Criação, aguardente, licores, ameixas e pêras no pomar; na horta, uma casa, arrecadações, todas as fantasias imagináveis: couves, ervilhas e feijões. O que é que me falta? Sim, o que é que me poderá faltar?"

 

Esta pergunta tão profunda arrastou-o para o país dos sonhos. Entretanto, o seu olhar, em busca de objetos novos, fixou-se no pátio de Ivan Nikiforovitch, deliciando-se involuntariamente num espetáculo curioso. Uma mulher descarnada andava a pendurar numa corda velhos fatos que trazia com muito cuidado de uma das arrecadações. Um uniforme militar de abas usadas envolvia com as mangas uma blusa de brocado; um uniforme civil com brasão impresso nos botões e a gola carcomida pelas traças; um par de calças brancas crivadas de nódoas, que antigamente se deveriam ter ajustado às pernas de Ivan Nikiforovitch, mas que presentemente apenas se ajustariam aos seus dedos; ao lado destas calças, em breve flutuavam outras em forma de Y; depois, apareceu uma túnica azul de cossaco, que Ivan Nikiforovitch tinha mandado fazer há uns vinte anos, numa altura em que falava em cortar o bigode e alista-se na milícia. Como complemento da túnica, surgiu uma espada de ponta afiada como um monumento em flecha. Apareceram, depois, as capas de uma espécie de fato turco de cor de erva, salpicado de botões de cobre do tamanho de uma grande moeda, e entre elas se veio insinuar um colete com galões dourados e ricamente chanfrado.

 

Logo depois, o colete foi coberto por uma saia antiga, herança de qualquer avó muito remota, e em cujos bolsos poderia caber uma melancia. Este conjunto oferecia a Ivan Ivanovitch um espetáculo bastante divertido e que tomava aspectos estranhos devido aos reflexos da luz solar na lâmina da espada, no azul ou verde das mangas, no vermelho dum forro ou num canto dum brocado. Dir-se-ia um desses presépios que os finórios dos nômades levam pelas aldeias, e diante dos quais ficam especados os papalvos, admirando com inveja o rei Herodes coroado de ouro ou António, o pastor de cabras, enquanto por detrás do pequeno teatro ambulante geme um violino, um Boêmio marca com dois dedos o compasso sobre os lábios, o sol vai declinando e o ar frio das noites da Ucrânia desliza traiçoeiramente pelas espáduas vigorosas e os seios robustos das nossas camponesas. Logo a seguir, a velha saiu da arrecadação arrastando-se e gemendo sob o peso de uma sela arcaica, sem estribos, com coldres gastos, mas com o chabraque, que tinha sido vermelho-berrante, mostrando ainda um galão de ouro e aplicações de cobre.

 

"Essa velha tonta", disse para consigo Ivan Ivanovitch, "ainda acaba por pôr a arejar o próprio Ivan

Nikiforovitch!"

E não se enganava muito. Cinco minutos depois, a enorme calça de ganga amarela de Ivan Nikiforovitch alastrava pelo pátio, ocupando uma boa metade da sua superfície. A velha trazia também um gorro e uma espingarda.

 

"Que quererá isto dizer?", interrogou-se Ivan Ivanovitch. "Nunca vi uma espingarda nas mãos de Ivan Nikiforovitch. É muito estranho! Para que quererá ele uma espingarda se nunca se serve dela? E que belo objeto! Há quanto tempo desejo comprar uma espingarda igual! Muito me agradaria possuir aquela arma! Uma espingarda é coisa que ajuda a passar o tempo."

 

-Olá, ó velhota, velhota! - gritou, acenando com a mão.

A mulherzinha aproximou-se da sebe.

-Que é que trazes aí na mão?

-Como vê, é uma espingarda.

-Que espingarda é essa?

-Juro que não sei. Se ela fosse minha talvez eu soubesse de que era feita, mas como pertence ao meu patrão...

 

Ivan Ivanovitch levantou-se e quedou-se de tal maneira absorto a examinar a espingarda que se esqueceu de repreender a velha pela sua estúpida idéia de arejar uma espada e uma espingarda.

 

-Tem aspecto de ser de ferro - observou a mostrenga.

-Hum, sim, sim, de ferro... Por que diacho será ela de ferro? - interrogou-se Ivan Ivanovitch... - E há

muito tempo que o teu patrão a possui?

-Pode muito bem ser que sim.

-Mas que bela arma - continuava a monologar Ivan Ivanovitch. - Tenho de lha pedir. Não lhe serve para nada...

 

Até seria capaz de lhe oferecer qualquer coisa em troca...

-Diz-me cá, o teu patrão está em casa?

-Sim, sem dúvida.

-Está deitado?

-Sim, sem dúvida.

-Está bem, vou falar com ele.

 

Ivan Ivanovitch vestiu-se, escolheu um pau nodoso para manter em respeito os cães, mais numerosos do que as pessoas nas ruas de Mirgorod, e pôs-se a caminho.

 

As propriedades confinavam e a vedação era fácil de escalar, mas apesar disso Ivan Ivanovitch preferiu ir pela rua.

 

Depois de caminhar por esta rua, era preciso meter-se por uma ruela tão estreita que quando acontecia encontrarem-se nela, frente a frente, duas infelizes carroças ficavam imobilizadas e era preciso puxá-las fortemente pelas rodas traseiras para que consentissem em recuar; e os peões saíam dela generosamente enfeitados com os cardos que formavam alas ao longo das vedações. A cocheira de Ivan Ivanovitch dava para um dos lados da rua, e para o outro ficava o celeiro, a cocheira e o pombal de Ivan Nikiforovitch.

 

Chegado à porta, Ivan Ivanovitch abriu o trinco; respondeu-lhe o ladrar dos cães, mas perante este rosto conhecido a matilha colorida afastou-se rapidamente abanando a cauda. Ivan Ivanovitch atravessou o pátio salpicado de galinhas da Índia, aves prediletas de Ivan Nikiforovitch, talhadas de melancia e de melão, uma roda partida, um arco de tonel, um garoto sujo brincando na terra - um quadro dos que apaixonam um pintor. A sombra das roupas estendidas cobria quase todo o pátio e comunicava-lhe uma certa frescura. A velha inclinou-se diante de Ivan Ivanovitch e permaneceu estática. Diante da casa sobressaía pretensiosamente um patamar coberto por um alpendre apoiado em duas colunas de carvalho, resguardo precário contra o sol que na Pequena Rússia, durante esta estação, não é para brincadeiras e obriga o infeliz peão a suar sangue e a desfazer-se em água. Que irresistível ambição não deveria impelir Ivan Ivanovitch para que, desobedecendo ao seu prudente princípio de nunca sair de tarde, se arriscasse à inclemência do sol a tal hora!

 

Com as janelas de madeira fechadas, o quarto em que Ivan Ivanovitch penetrou estava submerso em penumbra. Por um orifício aberto numa das janelas de madeira um raio de sol filtrava uma luz irisada e desenhava na parede oposta uma paisagem em que se refletiam, invertidos, os tetos de junco, as árvores e as roupas estendidas no pátio. Todo o quarto estava banhado num bizarro claro-escuro.

 

-Que Deus seja convosco! - disse Ivan Ivanovitch.

-Ora boa tarde, Ivan Ivanovitch - respondeu uma voz que vinha dum dos cantos da sala. Só nesse momento é que Ivan Ivanovitch reparou em Ivan Nikiforovitch, deitado no chão sobre um tapete.

- Desculpe-me de me apresentar tal como Deus me deitou ao mundo.

 

De fato, Ivan Nikiforovitch nem sequer tinha camisa vestida.

-Não tem importância. Dormiu bem hoje, Ivan Nikiforovitch?

-Muito bem. E o senhor, Ivan Ivanovitch?

-Eu também.

-Então, levantou-se agora?

-Se me levantei agora? Valha-o Deus, Ivan Nikiforovitch! Com certeza que não pensa que sou capaz de dormir a uma hora destas! Cheguei neste momento da minha herdade. As plantações de trigo estão esplêndidas, sim senhor, uma maravilha. E o feno está enorme, tenro e bem verde.

 

-Garpina! - gritou Ivan Nikiforovitch. - Serve a aguardente e as tortas de creme a Ivan Ivanovitch.

-O dia hoje está lindo.

-Que o diabo leve este lindo dia! Tenho tanto calor que nem sei onde me hei-de meter para não morrer asfixiado.

-Não pode passar sem invocar o diabo! Olhe, Ivan Nikiforovitch, um dia ainda se há-de lembrar das minhas palavras, mas nessa altura já será tarde de mais: expiareis no outro mundo as vossas blasfêmias.

 

-Em que o ofendi, Ivan Ivanovitch? Não buli nem em seu pai nem em sua mãe. Francamente, não sei muito bem em que o poderia ter ofendido.

-Pronto, pronto, Ivan Nikiforovitch.

-Juro por Deus em como o não ofendi.

-É curioso, as perdizes ainda não respondem ao chamariz.

-Pense lá o que quiser mas eu não o ofendi em nada.

-Francamente, não sei porque é que elas não respondem - continuou Ivan Ivanovitch, fingindo não ter ouvido Ivan Nikiforovitch. - Será por não estarmos ainda na estação? Mas a mim parece-me que estamos exatamente na boa estação.

-Acha então que os trigos estão bonitos?

-Admiráveis, simplesmente admiráveis.

Seguiu-se um silencio.

-Ouça, Ivan Nikiforovitch - perguntou Ivan Ivanovitch.

– Que idéia é aquela de arejar o vestuário?

-Imagine que essa maldita velha quase me deixou apodrecer os meus magníficos fatos! Fatos quase novos. Ordenei-lhe que os arejasse. Tudo aquilo é de fazenda fina, fazenda de primeira qualidade. Se os mandasse voltar ainda poderia usá-los.

-No meio daquilo tudo há um objeto que me agrada muito, Ivan Nikiforovitch.

-O que é, Ivan Ivanovitch?

-Que espingarda é aquela que a velha pôs a arejar juntamente com seus fatos?... Permite que lhe ofereça?

- continuou, tirando a tabaqueira do bolso.

-Não, obrigado. Sirva-se, que eu fumo do meu.

E dizendo isto, Ivan Nikiforovitch tateou à sua volta até encontrar o tabaco.

-Então essa velha estúpida também me foi pendurar a espingarda!... Sabe, o judeu de Sorotchintsy prepara, na verdade, bons tabacos. Não sei lá o que ele lhe mistura, mas deitam um cheirinho! Parece tasna. Tome, mastigue um pouco, e vai ver que lembra tasna. Tome, tome, sirva-se.

 

-Ainda estou a pensar naquela espingarda, Ivan Nikiforovitch. Que pensa fazer dela? Não precisa dela para nada.

-Não preciso!? E se me dá na veneta disparar um tiro?

-Ora, valha-me Nosso Senhor, Ivan Nikiforovitch! Quando é que vai ter oportunidade de dar tiros? Na hora do juízo final? Nunca ouvi dizer que tivesse morto uma única ave, e além disso não foi para se entregar a semelhantes exercícios que veio ao mundo. A sua figura é demasiado imponente para andar pelos campos à caça. Não o posso imaginar calcorreando os terrenos pantanosos. Não, Ivan Nikiforovitch nasceu para o repouso, a inação, a ociosidade. (Como já disse, quando se tratava de convencer alguém, Ivan Ivanovitch recorria a manhas dum pitoresco perfeito. Ah! Como ele falava bem!

 

Meu Deus! que eloqüência!) Sim, Ivan Nikiforovitch é um homem de boas maneiras... Pode crer que o melhor que tinha a fazer era dar-me essa espingarda.

 

-Dar-lhe a espingarda?! Mas aquilo é uma espingarda muito cara, como hoje já se não encontra. Foi um turco que ma vendeu quando eu andava a pensar em me alistar na milícia. E queria agora que de pé para a mão eu lha oferecesse! Muito obrigado pela idéia, mas a espingarda faz-me muita falta.

 

-Faz-lhe falta? Para que?

-E ainda pergunta para quê! Suponha que os ladrões se lembram de me assaltar a casa... Graças a Deus estou tranqüilo e não receio ninguém. E porquê? Porque sei que tenho uma espingarda no armário.

 

-E que boa espingarda! Até tem o gatilho emperrado...

-Emperrado? Olha a grande coisa! Facilmente se arranja. Basta deitar-lhe óleo de cânhamo para que a ferrugem nunca mais entre com ela.

 

-Não há dúvida, Ivan Nikiforovitch, que tem pouca simpatia por mim. Não me dá nem uma única prova de amizade.

-O quê, Ivan Ivanovitch, eu não dou nem uma única prova de amizade? E não tem vergonha de dizer uma coisa dessas?! Então, e os seus bois que pastam nos meus campos sem que eu nunca os tenha espantado? E a minha charrete, que me pede emprestada todas as vezes que vai a Poltava, alguma vez lha recusei? E os patifes desses garotos que saltam do seu pátio para o meu e vêm brincar com os meus cães, alguma vez lhes disse uma só palavra? Não, nunca lhes disse fosse o que fosse; que se divirtam à

vontade, desde que não mexam em nada.

 

-Se não ma quer oferecer, troque-a.

 

-Trocá-la por quê?

-Pela minha marrã castanha; sabe, o melhor animal da minha pocilga. Olhe que é uma bela marrã!

Garanto que daqui a um ano ela já tem criação.

-Está a falar a sério, Ivan Ivanovitch? Que faço eu com a sua marrã? Vá para o diabo com a marrã!

-Pronto, lá está outra vez a invocar o diabo! É um pecado, Ivan Nikiforovitch; garanto-lhe que é um pecado!

-Mas também, Ivan Ivanovitch, que diabo de idéia essa de me oferecer uma marrã em troca da minha espingarda!

-Que diabo de idéia? Porquê, Ivan Nikiforovitch, porquê?

-Pois, com certeza. Ora pense bem: uma espingarda é um objeto ultraconhecido, enquanto uma marrã só o diabo é capaz de saber o que isso pode ser. Se essa oferta me fosse feita por outra pessoa era capaz de a levar a mal.

-Diga lá o que acha de tão ofensivo na minha oferta de uma marrã.

-Ora essa, por quem me toma? Aceitar uma marrã, eu?!

-Calma, calma! Pronto, não insisto mais. Deixe lá a espingarda enferrujar e apodrecer no armário, que eu é que nunca mais falo nela.

E seguiu-se novo silêncio.

-Parece - recomeçou Ivan Ivanovitch - que três reis declararam guerra ao nosso czar.

-Sim, PiotrFiodorovitch falou-me disso. Mas que guerra é essa? Porque é que começou?

-Pouco o posso esclarecer, Ivan Nikiforovitch. Na minha opinião, esses três reis querem é que todos nós nos façamos turcos.

-Ora os canalhas! - exclamou Ivan Nikiforovitch, levantando a cabeça.

 

-E então o nosso czar declarou-lhes guerra. Não! disse-lhes ele, vós é que tendes de vos tornar cristãos.

-E não lhe parece, Ivan Ivanovitch, que nós os derrotamos?

-Claro que derrotamos... E então, sendo assim, Ivan Nikiforovitch, ainda não quer trocar a sua espingarda?

-É curioso, Ivan Ivanovitch, que passando por homem instruído raciocine como garoto.

-Calma, calma. Que Deus abençoe a espingarda! Que apodreça à vontade! Nunca mais falo no assunto.

Neste momento a criada trouxe a refeição. Ivan Ivanovitch engoliu um pequeno copo de vinho e uma torta de creme.

-Bem. Ivan Nikiforovitch, além da marrã ainda dou dois sacos de aveia. De qualquer maneira, como este ano não semeou aveia, sempre tem que a comprar.

-Francamente, Ivan Ivanovitch, antes de começar a conversar consigo, a gente devia encher bem o estômago com uma boa pratada de feijões. (Esta afirmação não vinha nada a propósito, mas Ivan Nikiforovitch tinha por costume deixar escapar muitas outras deste gênero.) Onde é que já se viu trocar uma espingarda por dois sacos de aveia? E claro que não lhe passou pela cabeça oferecer-me a sua magnífica sobrecasaca!

-Esquece-se, Ivan Nikiforovitch, que lhe dou também uma marrã.

-Uma marrã e dois sacos de aveia pela minha espingarda!

-Acha pouco?

-Pela minha espingarda?

-Sim, pela sua espingarda.

-Dois sacos pela minha espingarda?

-Dois sacos cheios de aveia, se faz favor! E ainda a marrã, não esqueça!

-Com mil raios, fique lá com o seu porco ou com o diabo, se prefere!

-Decididamente, Ivan Nikiforovitch, o senhor tem uma língua muito porca! Expiará no outro mundo todas essas blasfêmias: a sua língua será picada com agulhas em fogo. Depois de se falar consigo, sentimos necessidade de lavar a cara e as mãos, e de nos purificarmos da cabeça aos pés.

-Perdão, Ivan Ivanovitch, uma espingarda é um objeto de valor, uma distração apaixonante e, o que é mais, um belo ornamento numa sala.

-Pronto, Ivan Nikiforovitch - replicou Ivan Ivanovitch, a quem a mostarda já subia ao nariz. - Fique lá com a sua espingarda como um burro carregado de relíquias.

-E o senhor, Ivan Ivanovitch, fica para aí a berrar como um pato bravo...

Se Ivan Nikiforovitch não tivesse proferido esta palavra, os dois amigos ter-se-iam separado sem qualquer vestígio de rancor, como era hábito acontecer depois das suas discussões. Mas desta vez as coisas encaminharam-se doutra forma.

Ivan Ivanovitch ficou vermelho de raiva.

-Ivan Nikiforovitch, repita o que disse! - impôs ele, levantando a voz.

-Eu disse que o senhor parecia um pato bravo, Ivan Ivanovitch.

-E com que direito, meu caro senhor, esquecendo as conveniências e o respeito devidos ao meu nome e à minha categoria, se atreve a insultar-me dessa maneira?

-A insultá-lo, Ivan Ivanovitch?

-Pela última vez, Ivan Nikiforovitch, com que direito, esquecendo o respeito mais elementar, se atreveu a chamar-me pato bravo?

-Deixem-me rir, Ivan Ivanovitch. Já acabou de grasnar?

Ivan Ivanovitch não se conteve mais: os lábios tremiam-lhe: o acento circunflexo da boca havia tomado a forma dum O e tinha os olhos tão abertos que era de meter medo. Nele, eram sintomas raros e que denunciavam uma cólera profunda.

 

-Depois disto, declaro-lhe que não mais desejo manter relações consigo.

-Olha, a grande infelicidade! Pode estar certo de que não vou chorar.

Mentia. Deus bem sabe que ele mentia! Peço-vos que acreditem que isso o contrariava muito.

-Nunca mais volto a pôr os pés nesta casa.

-Heeee! - gritou Ivan Nikiforovitch, que, ferido pelo despeito, já não sabia o que fazia, e que até conseguiu pôr-se de pé. - Heee! ó velha! ó rapaz!

A este chamamento apareceram à porta da sala a velha magricela e um homenzinho embrulhado numa enorme sobrecasaca.

- Agarrem-me Ivan Ivanovitch e deitem-no pela porta fora!

-O quê? A mim?! Um fidalgo! - protestou Ivan Ivanovitch num magnífico impulso de dignidade ofendida. - Ai de quem tentar aproximar-se! Reduzo-os a pó, a vocês dois e ao imbecil do vosso patrão.

Nem os corvos encontrarão vestígios de vocês. (Quando estava possesso duma comoção violenta, Ivan Ivanovitch empregava expressões muito enérgicas).

 

O grupo formava um belo quadro de grandes proporções. Ivan Nikiforovitch de pé, ao meio da sala, em toda a sua beleza natural, sem o menor ornamento; a pobre velha de boca aberta, e com uma expressão de estupidez e medo na face; Ivan Ivanovitch com o braço estendido como um tribuno romano. Que invulgar, que admirável cena! Pena foi que o seu único espectador fosse aquele bonifrate metido na sua interminável sobrecasaca, e que numa indiferença profunda continuava placidamente a meter os dedos no nariz.

 

Por fim Ivan Ivanovitch pegou na gorra para sair.

 

-Os meus cumprimentos, Ivan Nikiforovitch. Há-de pagar-me tudo isto.

-Saia, vá-se embora, Ivan Ivanovitch, e nunca se atravesse no meu caminho que lhe escangalho os ossos.

-Olhe, Ivan Nikiforovitch, para si - replicou Ivan Ivanovitch fazendo uma figa.

 

E com estas palavras, bateu a porta, que se fechou gemendo nos gonzos. Desejoso de ser o último a falar, Ivan Nikiforovitch ainda apareceu à porta, mas Ivan Ivanovitch já tinha atravessado o pátio sem se dignar olhar para trás.

 

Nikolai Gogol

Nenhum comentário:

Postar um comentário