24 maio 2021

Origem e evolução das cobras - Guia de Cobras da Região de Manaus - Amazônia Central

 

Origem e evolução das cobras

 

As cobras surgiram no planeta há cerca de 140 milhões de anos, mas a sua origem ainda é tema de debates entre os cientistas.

 

A origem nos oceanos foi consenso geral durante muito tempo, mas recentemente estudos genéticos (filogenia molecular) e novas evidências de fósseis, indicaram que as cobras podem ter origem terrestre, e as primeiras espécies teriam hábito fossorial (passavam a maior parte da vida enterradas em túneis subterrâneos).

 

No entanto, ambas as hipóteses podem ter acontecido se considerarmos que as patas podem atrapalhar a locomoção, tanto na água quanto em galerias subterrâneas.

 

As mesmas pressões evolutivas que atuaram para selecionar a forma do corpo de minhocas no subsolo e de enguias na água, podem ter resultado na perda de patas em grupos de lagartos ancestrais das cobras que viviam nestes ambientes.

 

As cobras pertencem à classe Reptilia, que tradicionalmente contém quatro ordens:

 

- Crocodylia - (jacarés, crocodilos

e gaviais);


- Quelonia -(tartarugas, cágados e jabutis);

 

- Sphenodontida - (Tuatara);

 

- Squamata -(lagartos, cobrase anfisbenas).

 

 

Sphenodontida e Squamata, formam um grupo maior chamado Lepidosauria (Figura 2).

  

Mas alguns desses agrupamentos são artificiais, porque são classificados apenas para facilitar o trabalho dos cientistas, e não por serem evolutivamente próximos.

 

Uma quinta ordem, Aves, é considerada como um grupo à parte, e foi elevada à categoria de classe nas últimas décadas.

 

As aves estão muito próximas dos crocodilianos, são répteis e não passam de dinossauros emplumados, do ponto de vista evolutivo.

 

Neste guia adotamos a classificação proposta por Pyron et al. (2013), mas outras hipóteses filogenéticas (parentesco)

estão disponíveis na literatura, como por exemplo, Townsend et al. (2004), Vidal & Hedges (2004), Vidal e Hedges (2009) e Zaher et al. (2009).

 

A Figura 2 mostra as relações filogenéticas ou de parentesco entre os grupos taxonômicos de Lepidosauria, onde Squamata aparece como grupo irmão de Sphenodontida.

 

Em hipóteses filogenéticas (representadas por cladogramas) as linhas mais longas significam separações mais antigas de grupos e as linhas mais curtas indicam ancestrais em comum mais recentes.

 

A primeira percepção sobre a Figura 2 é que as cobras (Serpentes) fazem parte de um grupo maior, popularmente conhecido como lagartos.

 

A ordem Squamata contém dois grandes grupos, reconhecidos por semelhanças moleculares, morfológicas e comportamentais:

 

- Dibamia;

 

- Bifurcata.

 

O primeiro grupo é formado pelos primeiros lagartos que perderam as patas, atualmente restritos ao México e Indonésia.

 

Os Dibamia são animais que vivem em túneis subterrâneos, quase totalmente cegos, e aparentemente utilizam pequenas estruturas sensoriais localizadas na cabeça e mandíbula para se orientarem e encontrarem comida.

 

O grupo Bifurcata é constituído por animais que possuem a língua bifurcada e órgão de Jacobson.

 

Esse órgão é uma estrutura localizada na base do cérebro, com conexão para a região superior e interna da boca, que tem uma função sensorial de interpretar micro-partículas captadas no ar pela língua, para encontrar comida e se proteger de predadores (ver o tópico “Como as cobras percebem o ambiente?”). No entanto, em alguns grupos a visão é bem desenvolvida, e pode ser utilizada para localizar presas.

 

Bifurcata é subdividido em dois grupos:

-Gekkota;

- Unidentata.

 

 

Gekkota é um grupo constituído por lagartos que desenvolveram o olfato e a visão para localizar presas, como resultado da perda da língua bífida (bifurcada) e do órgão de Jacobson.

 

É representado na Amazônia por lagartixas e osgas (Figura 3), e algumas espécies são bastante comuns em Manaus (para maiores detalhes, convidamos o leitor a consultar o Guia de Lagartos da Reserva Ducke <http://ppbio.inpa.gov.br>).

 

Unidentata abrange animais que possuem um pequeno dente na ponta do focinho, utilizado apenas uma vez, para romper a casca do ovo no momento do nascimento, e em seguida se desprende e cai.

 

Esse grupo é subdividido em outros dois grupos:

- Scincoidea;

- Epsiquamata.

 

 

Scincoidea é constituído por lagartos que possuem o corpo alongado, e as patas bastante reduzidas e Epsiquamata abrange animais de língua bifurcada e órgão de Jacobson bastante desenvolvido.

 

Epsiquamata é subdivido em dois grupos:

- Lacertoidea;

- Toxicofera.

 

Lacertoidea abrange lagartos que possuem as escamas semelhantes a azulejos, como Jacurarus (Tupinambis) e Cobras-cegas (Amphisbaenidae), e Toxicofera abrange animais capazes de produzir veneno, como alguns lagartos (Monstro-de-Gila e Dragão de Komodo) e cobras.

 

Esse grupo é subdividido em três grupos:

- Anguimorpha;

- Iguania;

- Serpentes.

  

Figura 3 - As lagartixas e osgas perderam a língua bífida e desenvolveram a visão e o olfato ao longo do tempo. Nesses animais a língua tem função de capturar presas e eventualmente limpar os olhos.


Anguimorpha compreende lagartos que aparentemente originaram separadamente no Velho (Ásia) e Novo Mundo (Américas), incluindo os Lagartos Monitores (Varanidae), que foram considerados como ancestrais das cobras por muito tempo.

 

Em uma classificação mais atual, os Varanídeos têm um ancestral em comum com as cobras e fazem parte do grupo Toxico-fera (Figura 4).

 

Iguania é o grupo ao qual pertencem os Iguanas, Camaleões e Anoles (Calangos Papa-vento).

 

São animais que desenvolveram a visão e a língua para localizar e capturar presas, uma vez que perderam a língua bifurcada e a capacidade de produzir veneno.

  

Serpentes constituem o grupo tratado nesse livro, cujo qual nós chamamos de cobras.

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Figura 4 – A história evolutiva das cobras está sendo desvendada com o progresso da ciência. Os lagartos Monitores eram considerados ancestrais das cobras, mas cientistas descobriram que os dois grupos têm ancestrais em comum.

  

Os répteis Squamata surgiram há aproximadamente 250 milhões de anos, quando toda a porção terrestre do planeta era concentrada em um continente gigante chamado Pangeia.

 

Há cerca de 200 milhões de anos Pangeia sofreu uma fragmentação que resultou na formação de dois continentes

menores, Laurasia e Gondwana, nos hemisférios norte e sul, respectivamente.

 

Este evento teve consequencias importantes sobre a radiação de Squamata, que há cerca de 150 milhões de anos começou a colonizar a maioria dos ambientes da Terra, com o surgimento de muitas espécies.

 

Entre importantes eventos biogeográficos que influenciaram a radiação de Squamata estão a separação entre as Américas e a África, há aproximadamente 100 milhões de anos, e o impacto de um grande asteroide com a Terra, há cerca de 66 milhões de anos.

 

O último evento foi responsável por extinções e alterações ecológicas, que aparentemente influenciaram profundamente a história evolutiva da biota terrestre.

 

Na Amazônia, o soerguimento da Cordilheira dos Andes, entre 23 e 2,5 milhões de anos, foi responsável por profundas alterações na paisagem, que certamente influenciaram a atual diversidade de espécies.

 

As cobras certamente constituem o grupo de maior sucesso evolutivo dentre os Squamata, pois representam aproximadamente 3070 das 4900 espécies conhecidas no mundo (63%).

 

No Brasil, existem pouco mais de 360 espécies, e na Amazônia brasileira cerca de 150.

 

Provavelmente este número deve aumentar, pois existem ainda muitos lugares que nunca foram cientificamente explorados, principalmente em áreas remotas na Amazônia.

 

Esses locais possivelmente abrigam espécies desconhecidas pela ciência.

 

Os lagartos vêm acumulando uma série de adaptações morfológicas e comportamentais ao longo de sua história evolutiva.

  

Vários grupos podem apresentar uma ou um conjunto de adaptações: corpo alongado, dentes que injetam veneno, ossos mandibulares e maxilares que deslocam para permitir a ingestão de presas grandes e a perda parcial ou total das patas.

 

Lagartos com corpo alongado, redução ou perda total de patas podem atualmente ser encontrados nas famílias Gekkonidae, Amphisbaenidae, Gymnophthalmidae, Scincidae, Anguidae, entre outros (mais informações sobre estes grupos estão disponíveis no Guia de Lagartos da Reserva Ducke <http://ppbio.inpa.gov.br>).

 

Somente os membros de um grupo são consistentemente considerados cobras, a subordem Serpentes, cujos parentes mais próximos possuem patas bem desenvolvidas.

 

Serpentes pode não ser um grupo natural, uma vez que diferentes linhagens dentro dessa subordem originaram de ancestrais diferentes. No entanto, neste livro, as Serpentes serão consideradas como grupo natural (monofilético).

 

Todas as cobras têm corpo alongado, as patas anteriores são ausentes e as posteriores podem ser ausentes ou vestigiais, como em alguns representantes das famílias Boidae (Jiboias) e Pythonidae (Pítons, não ocorrem naturalmente no Brasil), na forma de esporões localizados próximos à cloaca (Figura 5).

 

Essas estruturas são consideradas vestigiais, embora possam ter função reprodutiva em rituais de corte ou em combates entre machos disputando uma fêmea. Por isso patas vestigiais geralmente são mais evidentes em machos.

 

Lagartos como o Monstro-de-Gila (Helodermatidae) da América do Norte e o Dragão de Komodo (Varanidae) são peçonhentos (capazes de injetar veneno utilizando os dentes), e a maioria das cobras não é considerada peçonhenta.

 

No entanto, o aparelho mais adaptado para inoculação de veneno está presente nas cobras.

 

A maioria das cobras é capaz de deslocar os ossos associados à boca para poder engolir presas grandes, uma adaptação também encontrada em espécies de Pygopodidae, lagartos com pernas reduzidas parentes das osgas.

 

Figura 5 – Algumas espécies da família Boidae possuem vestígios de patas, na forma de esporões localizados próximos à cloaca, como nessa Periquitamboia Corallus batesii.


Esse importante evento na história evolutiva das cobras ocorreu a partir de um grupo mais antigo chamado Scolecophidia, hoje formado somente por pequenas cobras fossoriais, que vivem enterradas em galerias subterrâneas.

 

Esses animais conseguem abrir a boca em ângulos menores que 90° e por isso só conseguem consumir presas pequenas.

 

um grupo mais derivado, chamado Alethinophidia é formado pela grande maioria das cobras e tem como característica principal a capacidade de deslocar o osso quadrado, que conecta o maxilar à mandíbula, conferindo ao animal uma grande abertura da boca.

 

Esse evento teve grande importância para a conquista de novos ambientes pelas cobras, uma vez que permitiu o consumo de presas relativamente maiores, e melhorou a capacidade de defesa em espécies que produzem veneno.

 

Caso você veja uma “cobra” na região de Manaus que não esteja neste livro, pode ser que você tenha encontrado uma espécie que nós não registramos. Mas é preciso consultar o Guia de Lagartos da Reserva Ducke (http:// ppbio.inpa.gov.br) para verificar se não é um lagarto sem patas ou com patas reduzidas (Figura 6). Também existem outros animais com corpo alongado e ausência de patas, como as Cecílias (anfíbios), Mussuns e Poraquês (peixes), e minhocas (invertebrados).

 

Figura 6 - Alguns animais sem patas se assemelham muito a cobras, e por isso são frequentemente confundidos. Apesar da semelhança no formato do corpo, os anfisbenídeos pertencem a um grupo de lagartos sem patas evolutivamente distinto das cobras, como esta Amphisbaena fuliginosa.


Esses grupos se diferenciam das cobras principalmente por apresentarem pele úmida, mucosa, corpo sem escamas distintas, e nenhum deles é peçonhento.

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