05 agosto 2022

XV - A Tortura da Carne

 

XV

 

E a antiga luta recomeçou, mas com redobrado ímpeto. À noite, Eugénio imaginava coisas terríveis. Pensava que o seu viver era monótono, cheio de tédio, que a autêntica vida estava lá fora, em contacto com aquela mulher robusta, forte, sempre alegre. O seu desejo era arrancá-la de casa, metê-la numa carruagem ou sentá-la na garupa dum cavalo, e desaparecer na estepe ou ir para a América. E muitas ideias iguais lhe assaltavam o cérebro.

Ao entrar no salão tudo lhe pareceu desconhecido, absolutamente estranho e sem significado Levantou-se tarde mas cheio de coragem, decidido a esquecer aquela mulher, disposto a não pensar mais nela. Quase sem dar por isso passou toda a manhã alheio ao trabalho, fazendo esforços para fugir às preocupações. Aquilo que até ali lhe parecera de grande importância passava de repente a não ter qualquer valor. Inconscientemente, procurava enfronhar-se no seu trabalho. Julgava ser-lhe indispensável ver-se livre dos cuidados, das preocupações para devidamente refletir em tudo. Afastava os que estavam junto de si, ficava sozinho. Mas, logo que se sentia isolado, começava a passear pelo jardim ou pelo bosque. Todos aqueles lugares tinham sido testemunhas de cenas que o empolgavam arrebatadamente. Passeava pelo jardim e pensava que era preciso resolver qualquer coisa, mas não descobria o quê e, doida e inconscientemente, esperava. Esperava que um milagre a fizesse saber quanto a desejava e aparecesse ali, ou noutro sítio qualquer, onde ninguém os visse, ou que, numa noite escura, ela o procurasse para que todo o seu corpo lhe pertencesse, só a ele pertencesse.

Ora aqui está - dizia - aqui está: para me sentir feliz arranjei uma mulher saudável mas está demonstrado que se não pode brincar com as mulheres... Julgava tê-la atraído e foi ela, afinal, quem me prendeu nas malhas dos seus encantos, e agora não consigo libertar-me dela. Julguei-me senhor absoluto dos meus atos, mas isto não passava duma ilusão. Enganei-me a mim próprio quando resolvi casar. Tudo o que eu sentia era estupidez, era mentira. Desde a altura em que a possuí, experimentei um sentimento novo... O verdadeiro sentimento do homem adulto. Sim, não posso passar sem ela. Mas o que estou a pensar não passa duma tolice! Isto não pode ser! exclamou subitamente... - O que é preciso é refletir, ver claramente o que tenho a fazer.

Deu uma volta pelos campos e continuou a pensar: Sim, para o meu caso só há dois caminhos a seguir: Aquele por onde enveredei desde que conheci Lisa, as minhas funções

 

políticas, a lavoura, a minha filha, o respeito pelos outros. A fim de prosseguir nesse caminho é indispensável que Stepanida seja afastada definitivamente. O outro caminho será arrebatá-la ao marido dar-lhe dinheiro, fazer calar as bocas do mundo e viver com ela. Mas para isso é necessário que Lisa e a minha filha desapareçam. Não, porque... A criança podia ficar... Mas o que é indispensável é que Lisa se vá embora e saiba de tudo. Que me amaldiçoe, mas que desapareça. É preciso que saiba que eu a troquei por uma camponesa, que sou um miserável, um homem sem vontade própria. Não, é horrível! Isto não pode ser!

Talvez se arranje tudo doutra maneira... Lisa pode ficar doente, morrer... Ah, se ela morresse tudo se remediaria, tudo correria às maravilhas! E viveríamos felizes.

Em todo o caso, não passo de um miserável. Não, se uma delas tem de morrer, que morra antes a outra. Se Stepanida morresse, seria melhor. Agora compreendo como é possível matar, como se pode envenenar, estrangular as amantes. Pegar num revólver, fazê-la vir aqui e, em lugar de beijos dar-lhe um tiro no peito. Pronto, estava tudo acabado. É horrível.

Foi contra minha vontade que ela se apoderou de mim. Matá-la, a ela, ou matar minha mulher. Continuar nesta vida, é-me impossível, totalmente impossível! É preciso refletir e encarar tudo a sangue-frio. Mas deixar as coisas continuarem como até aqui, daria mau resultado. Juraria ainda muitas vezes não tornar a vê-la, renunciar a ela, mas não passaria das promessas vis, porque no dia seguinte esperá-la-ia. Ela sabe-lo-ia e lá estaria eu na mesma alternativa. Ou a minha mulher o saberá, pois não falta quem lho vá dizer, ou eu próprio lho direi, porque não posso continuar a viver desta forma. Não posso. Tudo se saberá. Todos o sabem já. Bem! Mas será possível que se possa viver assim? Não, não se pode. Só há duas saídas: matá-la ou matar a minha mulher. Mas existe ainda uma terceira:

«Matar-me», murmurou sofrendo e seguidamente um arrepio lhe percorreu o corpo.

- Sim, mato-me! Assim, já não será preciso que qualquer delas morra. É o que devo fazer.

Tremia violentamente, sentindo que era esse o único caminho possível. Tenho em casa um revólver. Terei de acabar desta forma? Eis o que até hoje ainda não tinha pensado... Mas agora...

Entrou em casa, dirigiu-se ao seu quarto e abriu a gaveta onde se encontrava o revólver mas antes que tivesse tempo de o tirar, Lisa entrou.


Barros Vital

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