VIII
Nos benefícios passa o mesmo. Muitos lugares pudera
trazer; .um só digo, que pela propriedade do nome tem privilégio de se preferir
a todos. Nasceu S. João Baptista, e assentaram consigo os vizinhos daquelas
montanhas, que havia de ser o menino pessoa notável e que esperavam grandes
venturas em seus maiores anos: Posuerunt in corde sua, dicentes: Quis, putas,
pueristeerit? Pois de onde o tiraram estes homens?
Que fundamento tiveram para se resolverem tão
assentadamente nas grandezas de João e em seus aumentos? – O fundamento que os
moveu, eles mesmos o disseram ou o Evangelista por eles: Quis putas,
pueristeerit? EtenimmanusDomini erat cum illo.
Viam os milagres, viam as maravilhas, viam as mercês
extraordinárias que Deus com mão tão liberal fazia a João logo em seus
princípios, e do erat, tiraram o erit; das experiências do que era, inferiam
evidências do que havia de ser; porque aqueles benefícios de Deus presentes,
eram prognósticos das felicidades futuras: EtenimmanusDomini erat cum illo.
Assim como a quiromância humana, quando quer dizer a boaventura, olha para as
mãos dos homens, assim a quiromância divina, a arte de adivinhar ao celeste,
olha para as mãos de Deus, e como a mão de Deus estava tão liberal com João:
EtenimmanusDomini erat cum illo, na disposição destas primeiras liberalidades,
como em caracteres expressos, estavam lendo a sucessão das futuras; e das
grandezas maravilhosas que já eram, julgavam as que, correndo os anos, haviam
de ser: Quis, putas, pueristeerit? EtenimmanusDomini erat cum illo.
Ora grande simpatia tem a mão de Deus com o nome de
João. Bem o mostrou o Senhor na feliz aclamação de Sua Majestade, que Deus nos
guarde, como há-de guardar muitos anos, pois aos ecos do nome de João,
despregou da cruz o braço o mesmo Cristo, assegurando-nos que, assim como a mão
de Deus estivera com o primeiro João da Judeia, assim estava e havia de estar
sempre com o quarto de Portugal: EtenimmanusDominis erat cum illo . Bem
experimentámos esta assistência nos sucessos que referi, e
em todos os felicíssimos do ano passado, que em todas
as cousas que Sua Majestade pôs a mão, pôs também a Divina a sua. E se estes ou
semelhantes efeitos da mão de Deus foram bastantes prognósticos para uns
montanheses rústicos, assaz claro foi o modo de prognosticar que segui, falando
entre cortesãos tão entendidos. Nem aqui também nos faltou o Evangelho; porque,
se nos confirmou a primeira razão com o mistério do nome de Jesus, agora nos
prova a segunda com o da circuncisão, da qual dizem comummente os Doutores, que
aquele pouco sangue que o Senhor derramou hoje no presépio, foi sinal e como
penhor de haver de derramar todo na cruz; que, como Deus é liberal com
omnipotência e bom sem arrependimento, o mesmo é fazer um benefício menor, que
penhorar-se a outros maiores. E se estes benefícios que da divina mão temos
recebido, se podem chamar menores, os maiores quão grandes serão!
Nem nos desconfiem estas esperanças os temores que
propusemos ao princípio da variedade dos sucessos da guerra, da inconstância
das felicidades do Mundo; porque só as felicidades que vêm por mão dos homens,
são inconstantes; mas as que vêm por mão de Deus, são firmes, são permanentes.
Quando Josué, à entrada da Terra de Promissão, venceu aquelas primeiras e
milagrosas batalhas, mostrando os inimigos mortos aos soldados, lhes disse o
que eu também digo a todos os Portugueses: – Confortaminietestoterobusti, sic
enimfaciet Dominus cunctishostibusvestris, adversumquosdimicatis: Grande ânimo,
valentes soldados, grande confiança, valorosos Portugueses, que assim como vencestes
felizmente estes inimigos, assim haveis de vencer todos os demais; que, como
são vitórias dadas por Deus, este pouco sangue que derramastes em fé de seu
poderoso braço, é prognóstico certíssimo do muito que haveis que derramar
vencedores; não digo sangue de católicos, que espero em Deus que se hão-de
desapaixonar muito cedo nossos competidores e que em vosso valor e em seu
desengano hão-de estudar a verdade de nossa justiça; mas sangue de hereges na
Europa, sangue de mouros na África, sangue de gentios na Ásia e na América.
vencendo e sujeitando todas as partes do Mundo a um só império, para todas em
uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos pés do sucessor de S. Pedro.
Assim o contam as profecias, assim o prometem as esperanças, assim o confirmam
estes felizes princípios, que a divina bondade se sirva de prosperar até os
fins felicíssimos que desejamos, que são os com que remata um sermão deste dia
S. Bernardo, cujas palavras tantas vezes têm sido profecias a Portugal:
Multiplicabitur sane ejusimperium, ut meritoSalvatordicatur pro
multitudineetiamsalvandorum, et pacis non erit finis.
Para que nossas orações comecem a obrigar a Deus, não
peço três avemarias, senão três petições do Padre nosso: Sanctificetur nomen
tuum; Adveniatregnumtuum; Fiat voluntas tua. Santificado e glorificado seja,
Senhor, vosso nome; porque ao nome santíssimo de Jesus, como o primeiro e
principal Libertador, reconhecemos dever a liberdade que gozamos.
Adveniatregnumtuum: «Venha a nós, Senhor, o vosso Reino»; vosso, porque vosso é
o Reino de Portugal, que assim nos fizestes mercê de o dizer a seu primeiro
fundador el-rei D. Afonso Henriques: Volo in te et in
seminetuoimperiummihistabilire: E por isso mesmo adveniat, venha; porque como
há-de ser Portugal um tão grande Império posto que tem já vindo todo o Reino
que era, ainda o Reino que háde ser não tem vindo todo. E para que nossas más
correspondências não desmereçam tanto bem, Fiat voluntas tua: Fazei, Senhor,
que façamos inteiramente vossa santa vontade; porque assim como, nos
prognósticos humanos; para advertir sua contingência; se diz: Deus sobre tudo,
assim eu neste divino, para assegurar sua certeza, digo também: Deus sobre
tudo; porque se sobre tudo amarmos a Deus, cumprindo perfeitamente sua vontade,
sem dúvida se inclinará o Senhor a ouvir e satisfazer os afectos da nossa,
perpetuando a sucessão de nossas felicidades na perseverança de sua graça:
Quammihi et vobis, etc....
Pe. Antonio Vieira
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