CAMÕES - Joaquim Nabuco
Senhor,
Senhora,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Quando no dia 10 de Junho de 1580, Luís de Camões
expirava em Lisboa, na mais completa miséria, ao desamparo de todos, abandonado
até de si mesmo, se alguém lhe dissesse que ele só morria para ficar imortal,
talvez que o Poeta, esmagado como o Gladiador pelo seu próprio destino, sem que
no vasto Anfiteatro uma voz, um gesto, um olhar, pedisse compaixão para ele,
afastasse com indiferença essa esperança de uma vida que não é mais do homem,
mas tão-somente do seu gênio e da sua obra.
Entretanto, senhores, por mais que a consciência
transforme numa tragédia pessoal cada um dos nossos sofrimentos, que aos olhos
de um espectador desinteressado que abrangesse o interior de todas as almas,
não pareceriam mais dramáticos do que a queda silenciosa da ave ferida no vôo,
o que são todos os infortúnios reais e verdadeiros do Poeta, comparados à
glória que nos reúne a todos, trezentos anos depois da sua morte, em torno da
sua estátua?
O homem é o nome. A parte individual da nossa
existência, se é a que mais nos interessa e comove, não é por certo a melhor.
Além desta, há outra que pertence à pátria, à ciência, à arte; e que, se quase
sempre é uma dedicação obscura, também pode ser uma criação imortal. A glória
não é senão o domínio que o espírito humano adquire dessa parte que se lhe
incorpora, e os Centenários são as grandes renovações periódicas dessa posse
perpétua. Tomando a iniciativa que lhe competia por ser a primeira das
fundações literárias de Portugal no Brasil, o Gabinete Português de Leitura, no
Rio de Janeiro, quis associar o seu nome ao terceiro Centenário de Camões por
uma tríplice comemoração. A primeira foi o assentamento da pedra fundamental da
Biblioteca Portuguesa, que terá à entrada, para melhor recordar o dia de hoje,
as estátuas dos seus dois padroeiros: o grande Poeta e o grande Infante. A
segunda foi a sua edição especial dos Lusíadas, a qual tomará lugar de honra na
Camoniana do Centenário. A terceira é esta imponente solenidade artística,
honrada com a presença de um Soberano, que já mostrou, com Victor Hugo, que é
para ele um dos privilégios do seu ofício de rei poder esquecer que o é diante
de um grande poeta, com a presença de uma princesa que só tem feito falar de si
pela sua bondade e pela sua benevolência para com todos, e com a representação
da Câmara dos Deputados, que interpretou bem, com a sua homenagem a Luís de
Camões, o sentimento unânime do nosso país. Nesta festa uns são Brasileiros,
outros Portugueses, outros estrangeiros; temos todos porém o direito de
abrigar-nos sob o manto do Poeta. A pátria é um sentimento enérgico,
desinteressado, benéfico, mesmo quando é um fanatismo. Este fanatismo admite
muitas intolerâncias, menos uma que o tornaria contraditório consigo mesmo: a
de recusarmos o concurso espontâneo das simpatias estrangeiras nas grandes
expansões da nossa Pátria.
Se o dia de hoje é o dia de Portugal, não é melhor
para ele que a sua festa nacional seja considerada entre nós uma festa de
família? Se é o dia da língua Portuguesa, não é esta também a que falam dez
milhões de brasileiros? Se é a festa do espírito humano, não paira a glória do
poeta acima das fronteiras dos Estados, ou estará o espírito humano também
dividido em feudos inimigos? Não, em toda a parte a ciência prepara a unidade,
enquanto a arte opera a união. Até a pátria é um sentimento que se alarga,
abate as muralhas da China que o isolavam, e torna-se cada vez mais, como se
tornou a família entre os homens, e há de tornar-se a religião entre as Igrejas,
um instrumento de paz, de conciliação, e de enlaçamento entre os povos.
Num sentido mais especial, porém, pode-se dizer que
sejamos nós, os Brasileiros, estrangeiros nesta festa?
Seria preciso esquecer muita coisa para afirmá-lo.
Não foi o Brasil descoberto, colonizado, povoado por
Portugueses? Não foi uma colônia Portuguesa durante três séculos, que se
manteve portuguesa pela força das suas armas, combatendo a Holanda, até que,
pela lei da desagregação dos Estados, e pela formação de uma consciência
Brasileira e Americana no seu seio, assumiu naturalmente a sua independência e
coroou seu Imperador ao próprio herdeiro da Monarquia? Depois deste fato,
apesar dos preconceitos hoje extintos, não tem sido o Brasil a segunda pátria
dos Portugueses? Não vivem eles conosco sempre na mais completa comunhão de
bens, num entrelaçamento de família, que tornaria a separação dos interesses
quase impossível? Quanto ao Poema, deixai-me dizê-lo, ele nos pertence também
um pouco. Quero esquecer a língua Portuguesa, que nos é comum, e a sucessão
legítima que nos faz tão bons herdeiros, pondo de parte a tradição nacional,
dos contemporâneos de Camões e do velho Portugal dos Lusíadas, como os
Portugueses do século XIX, para tomar somente a obra de arte.
Qual é a idéia dos Lusíadas, se eles não são o poema
das descobertas marítimas e da expansão territorial da raça Portuguesa? Mas o
descobrimento do Brasil não será uma parte integrante desse conjunto histórico?
As antigas possessões de Portugal na Índia reclamam o Poema com o seu título de
nascimento e de batismo, porque ele é o roteiro dos navegantes que foram a
...................... ver os berços onde nasce o dia; só as terras do
Ocidente, encontradas ao acaso nessa derrota matinal, não podem ter parte na
obra que representa o impulso, que as encontrou perdidas no mar; e as entregou
à civilização, porque nelas
...................o claro Sol se esconde?
Entretanto a Índia Portuguesa é uma pálida sombra do
Império que Afonso d’Albuquerque fundou; ao passo que o Brasil e os Lusíadas
são as duas maiores obras de Portugal.
Quanto ao Poeta, que deve ter também, não vos parece?
uma palavra que dizer no dia de hoje, é-lhe por acaso indiferente que a sua
língua seja falada na América por dez milhões de homens, que serão um dia cem
milhões?
Podia-se fazer um Centenário Português, e outro
Brasileiro; mas não seria qualquer distinção uma irreverência perante a glória
do Poeta? Inspirando-se, estou certo, nestes sentimentos a Diretoria do
Gabinete Português de Leitura, sem olhar para a lista dos seus Sócios, nem dos
seus Compatriotas, resolveu reunir nesta esplêndida festividade Portugal e o
Brasil, por forma que as nossas bandeiras e as nossas cores nacionais pudessem
aparecer juntas, e não faltasse a Luís de Camões a homenagem filial de um só
dos países, que figuram nos Lusíadas como o grande corpo da Monarquia.
Foi assim, senhores, que o Gabinete Português cometeu
a única falta do seu brilhante programa, nomeando-me para falar em seu nome. A
honra de ser o intérprete da admiração de um século inteiro e de dois povos
unidos no Centenário de um poeta, é um desses privilégios dos quais se deve
dizer: É melhor merecê-los sem os ter Que possuí-los sem os merecer. Confesso
porém que aceitei este lugar pela dívida de gratidão que temos para com
Portugal, e na qual, como Brasileiro, reclamo a minha quota parte.
O emigrante português chega ao Brasil sem fortuna, mas
também sem vícios, e pelo seu trabalho cria capitais; vem só, e funda uma
família; seus filhos são Brasileiros; falando a nossa língua, e da nossa raça,
essa imigração nem parece de estrangeiros; todos os anos, à força de privações
corajosamente suportadas, ela põe de lado uma soma considerável, que não
acresce tanto à riqueza de Portugal como à nossa.
Todos estes benefícios merecem o mais solene
reconhecimento da parte de quem, como eu, votou a sua vida política toda à
causa do trabalho livre. Também quando me ofereceram este lugar na grande festa
que a Nacionalidade Portuguesa soleniza hoje no Rio de Janeiro, como no mundo
inteiro, em todas as escalas que os seus navios foram descobrindo no Planeta, não
senti nem liberdade, nem desejo de recusar-me. Não preciso dizer, como aliás o
podia fazer sem deixar de ser sincero, que nesta noite sou Português; basta-me
dizer que acho-me animado para com a pequena, mas robusta Nação que fundou o
Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe-Pátria, de um
sentimento que, se não se confunde com o patriotismo,
não deixa de confundir-se entretanto com o próprio orgulho nacional.
Não vou repetir-vos a história de Camões; não tenho
talento bastante para contar-vos o que todos sabeis de cor; não posso porém
estudar a obra sem falar rapidamente do homem. Camões descendia de uma família
de fidalgos da Galícia, que não se distinguiram só pelas armas; a imaginação
neles era tão nativa como a coragem. Eram pobres. Já nesse tempo a pobreza era
o apanágio dos fidalgos em Portugal, talvez porque os antigos Troncos nobres de
seus antecessores não lhes deixavam a liberdade de adotarem uma profissão
lucrativa, ou porque uma longa seleção militar lhes havia dado um temperamento,
que podia ser mercenário, mas não mercantil.
Dos primeiros anos de Camões sabemos ao certo muito
pouco. Não há muito tempo que se fixou positivamente o lugar, e provavelmente a
data do seu nascimento. Nascido em Lisboa no ano de 1524, parece que Luís de
Camões foi educado em Coimbra, sob as vistas de seu tio Dom Bento, Cancelário
da Universidade. Quando aparece em Lisboa, ele vem armado de fortes e aturados
estudos literários; muito moço, é já um poeta que não tem rival, mesmo nessa
poesia elegante, que faz antes parte da história da moda e do vestuário de um
século. Não há em torno do Poeta, nos primeiros anos da vida, senão pálidos
reflexos da Renascença, que entretanto como o Sol que ao morrer converte toda a
sua luz em cor, concentrava-se no intenso colorido Veneziano. O morticínio dos
Judeus, o tráfico de escravos, a Inquisição com os seus Autos da Fé, as
intrigas Espanholas, o despotismo grosseiro de um rei fanatizado pelos
Jesuítas, as pestes que se repetem, a alegria que desaparece no meio da miséria
crescente, eis o quadro de Lisboa durante longos anos. Se, em vez de ficar
encerrado no horizonte moral de um povo que não sentia a Arte, tendo que abrir
caminho por si mesmo em todas as direções do seu gênio num círculo de ferro,
Camões tivesse ido à Itália, e se houvesse misturado em Roma com os discípulos
de Rafael, com os amigos do Ticiano, com os adoradores de Miguel Ângelo,
familiarizando-se com os frescos do Vaticano, e a tragédia humana da Sistina;
como ele não teria crescido pela Arte, e pela liberdade! A obra-prima estava em
germe no sentimento, e ele que levou a pátria consigo para Macau, a teria
levado também para Roma... A sua natureza poética aproximando-se da Grécia
teria sentido a ação eterna daquela pátria do Belo, e quem sabe se além dos
Lusíadas, que eram o pecado original do seu gênio, outras obras-primas não
teriam aumentado a sua influência permanente sobre o espírito humano, e a
herança imortal que nos deixou?
É ao tempo que Luís de Camões passou em Lisboa,
admitido à intimidade da sociedade elegante e aos serões do Paço, que se prende
o romance do amor que lhe inspirou D. Caterina de Ataíde. Os grandes poetas não
parecem completos sem uma mulher que os acompanhe perante a história. Só se
compreende que eles tenham inspiração, tendo amor. É uma ilusão, senhores, do
sentimento popular, mas, como qualquer outra é melhor a respeitar que a
destruir. A ilusão é uma parte de nós mesmos, e a melhor; não é possível
arrancá-la sem que no espaço que ela ocupa fique um vazio que nada enche.
Que Luís de Camões amou uma dama do Paço, pode-se
afirmar; mas quem foi ela? Sabe-se por um acróstico que foi uma D. Caterina de
Ataíde, mas infelizmente para os biógrafos, em vez de uma eles encontraram no
Paço três Caterinas de Ataíde. Essa abundância de Caterinas explica-se talvez
porque era esse o nome da rainha. Atualmente porém a favorita é a filha de Dom
Antônio de Lima. O seu partido é numeroso; o seu padrinho o Visconde de
Jorumenha. Não posso discutir de passagem um ponto tão complexo; mas, se os
versos de Camões têm valor biográfico, e, se o Parnaso que corre sob o seu nome
é o que lhe roubaram, a protegida do distinto biógrafo tem rivais poderosas.
Como conciliar com os seus direitos os dessa outra D. Caterina de Ataíde, filha
de Álvaro de Souza, fundados na tradição, no testemunho do seu confessor de que
lhe falavam sempre no poeta, e no fato de ter ela morrido moça, depois de se
haver casado com outro, o que explica certos sonetos (CC.LXXIV), que não têm
dois sentidos, sobretudo para as mulheres:
Já não sinto, senhora, os desenganos
Com que minha afeição sempre tratastes...
A mágoa choro só, só choro os danos De ver por quem,
Senhora me trocastes... Ainda há porém uma terceira D. Caterina de Ataíde, e
esta prima do Poeta. A verdade, senhores, é divina; mas a certeza nem sempre
vale mais do que a dúvida. Contentemo-nos com saber que D. Caterina de Ataíde
tinha cabelos loiros e ondeados, as faces cor-de-rosa, o colo de neve, os olhos
verdes, o olhar luminoso, a fala doce, que era alegre, cortês, e suave, e que,
se a beleza é antes de tudo a graça musical dos movimentos, ela tinha Esse
compasso certo, essa medida Que faz dobrar no corpo a gentileza...
Quanto ao amor do Poeta, lede as suas Canções, algumas
das quais parecem escritas por um Grego, de naturais que são. Nelas
reconhecereis logo essa plenitude de vida que se aspira por um dia claro, sob o
Azul diáfano, numa atmosfera pura, quando a alma sente-se, como o noûs de
Anaxágoras, “a mais pura e sutil de todas as substâncias”, e o Ar nos torna não
só melhores, como mais inteligentes e mais livres. Ao amor de Camões por D.
Caterina tem-se atribuído o seu desterro de Lisboa.
Qualquer que fosse a razão, porém, desde que pela
primeira vez partiu-se a cadeia da fortuna, nunca mais ela se reatou para
Camões. Desterrado de Lisboa em 1546, no ano seguinte ele bate-se em África,
onde perde o olho direito; em 1550 alista-se para a Índia como soldado, e não
parte porque a nau arriba; demora-se em Lisboa três anos, um dos quais na
prisão, até que em 1553 parte para a Índia na nau S. Bento, para lá ficar
dezessete anos. Como vedes, passo rapidamente sobre fatos que conheceis, para
chegar ao Poema. No meio da depravação dos costumes, da sede de dinheiro, da
ausência completa de qualquer espécie de moral, ninguém podia escapar ao
envenenamento produzido pela decomposição do Domínio Português na Índia. Camões
não era asceta, nem excêntrico; misturava-se livremente com a sociedade que o
cercava; não era nem puritano, nem hipócrita, e não tinha esse poder de
isolação que permite aos fortes e aos escolhidos conservarem-se alheios ao meio
no qual vivem, interiormente estranhos ao movimento de que fazem parte.
Se o homem, porém, adaptou-se sem veleidade de
resistência, e sem constrangimento de vontade, à decadência sem nenhum reflexo
de Ideal, de Arte ou de nobreza, da vida militar na Índia, o Poeta, pelo
contrário, com a mesma espontaneidade, reagiu, traçou um círculo de
heroísmo em torno de si; criou na pátria um isolamento
para o seu gênio, e compôs Os Lusíadas, escrevendo cada novo Canto obrigado
pela emoção de que o enchia o Canto que havia acabado. É assim a obra de arte;
ela força o artista a não a deixar incompleta, e o faz sentir como César, o
qual fez da ambição uma arte, que nada está feito enquanto resta alguma coisa por
fazer. Se não fosse assim, quantas obras-primas não ficariam, como o S. Mateus
de Miguel Ângelo, metade na pedra, metade no gênio do escultor? Mil vezes antes
para uma obra de arte ficar eternamente mutilada, como as estátuas gregas, do
que eternamente incompleta.
Na partida de Camões para a Índia devemos ver,
senhores, como quer que o chamemos, o acaso inteligente que leva o artista a
colocar-se, sem que o saiba, e às vezes contra a sua vontade, nas condições
únicas em que lhe é possível produzir a obra que será a medida do seu gênio. A
bordo da nau que o levava, Camões repetiu, como tantos outros que não conhecem
o seu próprio desinteresse, nem a sua dedicação: “Ingrata Pátria! Não possuirás
os meus ossos.” Non possidebisossamea. São as palavras de Cipião. “Ingrata
Pátria!” Parvimateramoris, mãe de pouco amor, como chamava Dante a Florença.
Mas essa vingança, ironia da Arte, que brinca com o Artista, como o músico com
o instrumento, ele a queria completa; Portugal não possuiria os seus ossos, mas
possuiria o seu nome imortal. Era uma vingança, como todas as que o homem de
coração toma da pátria, de si mesmo, da mulher que ama, uma vingança de amor.
Ele queixava-se da viagem que ia fazer, e era essa viagem que o devia tornar um
grande poeta, e o representante de Portugal perante o espírito humano. Em
Lisboa, com as ocupações insignificantes, mas forçadas, da vida da Corte, com
as pequenas conspirações da inveja, e as feridas do amor-próprio, com o
espírito alegre, sociável, e superficial, que é preciso ter nas salas, com a
intervenção benévola da Inquisição e dos Jesuítas, o que teriam sido Os
Lusíadas?
Foi no Oriente, em Macau, senhores, nessa gruta, à
qual prende-se a devoção de séculos, colocado numa das extremidades dessa
enorme teia, que dava a Portugal o direito de ser chamado antes da Holanda, a
aranha dos mares, foi no Oriente que a pátria apareceu a Camões como uma
entidade diversa de tudo o que ele havia até então confundido com ela. O
fetichista tornou-se panteísta. A história nacional se lhe representou ao
espírito como a vida fenomenal de uma substância quase divina e eterna. Até
mesmo o Portugal do seu berço, da sua mocidade, do seu amor, visto por entre as
associações todas da memória, devia ter-lhe parecido a incorporação transitória
e incompleta do grande Todo nacional, do gênio Português destinado a dominar o
mundo, a converter-se em outras terras, a animar outros continentes... O que é
a pátria assim, senhores? Não será uma religião, um misticismo ardente? Não
ocupa ela todo o espaço destinado ao poder criador do homem? Não é uma sorte de
loucura sublime, a
hipertrofia de um sentimento heróico? Pois bem, Os
Lusíadas são o resultado da pátria assim compreendida, que se apodera da
imaginação do artista, e dá às suas criações a forma grandiosa; que limita-lhe
o horizonte, mas imprime nos objetos que se destacam um alto-relevo. Esta é a
pátria dos seus Lusíadas, cuja voz ele ouve no concerto dos ventos e das ondas;
cuja sombra ele vê estendida sobre o mar; cuja glória faz vibrarem uníssonas
todas as cordas da sua harpa de bronze. Quando fala dos seus heróis, a adoração
nele tem a realidade concreta do antropomorfismo, assim como tem o contorno
flutuante e vaporoso do panteísmo quando ele a encara na sua substância
insondável. Essa é a Pátria que ele adora como o pastor Ariano à Aurora
brilhante que aparece sobre os cumes nevados do Himalaia, ou a lua que se abre
no Indo, como uma grande flor do loto... É a ela que ele pede no meio da oração
inconsciente, que todo o homem dirige do fundo do coração ao deus que nele se
reflete: “Onde a vida é livre, onde os mundos são radiantes, aí torna-me
imortal”, porque é ela a divindade, cujas encarnações ele celebra, da qual
adora cada avatar triunfante, e a quem dá a beber, nas taças das Musas, o licor
que dava a imortalidade aos deuses! Essa pátria que o embriaga, é a razão de
ser da sua obra; a circunferência inteira do seu gênio; a medida do seu poder
criador; ela confunde-se para ele com a sua própria vida, e dela ele devia
dizer sempre, no seu desterro na China, durante a composição penosa de Os
Lusíadas, como Vasco da Gama:
Esta é a ditosa pátria minha amada;
À qual se o Céu me dá, que eu sem perigo Torne, com
esta empresa já acabada, Acabe-se esta luz ali comigo.
O perigo, senhores, não faltou ao Poeta. A pintura
apoderou-se do seu naufrágio nas costas da Indochina, e representa-o tentando
salvar das ondas, não a vida, mas o Poema. Os sofrimentos não lhe alteram porém
a idéia fixa de terminar a obra. Aos cantos molhados do naufrágio ele acrescenta
mais quatro. Não sei se Os Lusíadas não deviam na primeira idéia do Poeta
terminar no Canto VI, talvez destinado a ser aumentado com a Ilha dos Amores.
Os últimos cantos do Poema, preciosos como são,
parecem novas galerias acrescentadas à nave central. Neles a história
Portuguesa que se tinha desenrolado majestosa nos outros torna-se biográfica e
individual; ornamentos são amontoados uns sobre outros; o Império da Índia toma
o lugar proeminente, ao passo que o Poeta está cansado, vê-se obrigado a repetir-se,
queixa-se, irrita-se, lança mão da sátira, e ameaça até as Ninfas de abandonar
a obra se elas o não inspiram. Excetuai o Canto IX, acomodado, estou certo, às
exigências e aos escrúpulos da Inquisição, mas que, apesar disso, e das
explicações provavelmente forçadas do Poeta, parece uma página da Renascença,
um fresco da Farnesina, ou melhor a representação viva da Caça de Diana do
Dominiquino, natural, sadia, alegre, sensualmente ideal; excetuai a Ilha dos
Amores, que podia estar reservada na idéia do Poeta para encerrar Os Lusíadas
primitivos, e o que vedes?
Os últimos cantos nos revelam que depois da
interrupção, não sei de quantos anos, que houve na composição do Poema, ou pela
imposição de uma poética ortodoxa à qual ele não soube forrar-se, ou pela idéia
que uma grande obra é forçosamente uma obra grande, ou pela reflexão que tantas
vezes destrói a beleza do pensamento espontâneo, qualquer que fosse o motivo
enfim, o Poeta, se conseguiu igualar-se a si mesmo em eloqüência, não conseguiu
todavia, o que era impossível, renovar a faculdade criadora. Foi esta
entretanto que enriqueceu os domínios da Arte com a figura colossal de
Adamastor, e com a figura poética de Inês de Castro; com as telas épicas das
batalhas, e os quadros risonhos da mitologia; com esses episódios todos que
seriam num poema árido verdadeiros oásis para a imaginação, mas que em Os
Lusíadas podem ser comparados aos quatro rios que cortavam a relva do Paraíso,
além de tantos incomparáveis versos, cada um dos
quais poderia encerrar por si só a alma de um artista,
porque são a verdadeira veia de ouro da inspiração, e nem um só deles podia ser
obra senão de um grande poeta.
O trabalho da composição do Poema não nos revela, como
o da composição da Divina Comédia, nenhum sofrimento trágico do espírito,
debruçado sobre os abismos da sua própria alucinação, querendo seguir com os
olhos fechados a réstia de luz que precede a Dante nesse Inferno, que ele criou
talvez com o receio ingênuo e católico de que ele não existisse; ou tampouco,
senhores, nos revela aquela composição a liberdade serena com a qual Goethe
olha como naturalista para o homem, autor das suas próprias desgraças morais,
do seu próprio destino intelectual, desprezando idealmente a vida numa ilusão
inexplicável, que o torna inferior a qualquer borboleta dos trópicos, que
contenta-se com viver alguns dias, e para a qual a Natureza é um poema de luz,
de cores, de amor, e de vida!
Os Lusíadas não resumem o homem, nem a vida; não são o
espelho do Infinito subjetivo, nem o da Natureza; eles são como obra de arte o
poema da pátria, a memória de um povo. Foram, há três séculos, dia por dia, o
testamento de uma grande raça, e são hoje a sua bandeira.
Portugal, senhores, podia ter tido uma vida modesta;
preferiu porém num dia encher o mundo e a posteridade com o seu nome. Um
príncipe de gênio da casa de Avis teve a intuição da missão histórica da sua
pátria, o Infante Dom Henrique. À beira do mar, às vezes azul, unido, luminoso,
atraindo mais e mais com a sua calma, com o seu silêncio, e o seu horizonte, a
vela do pescador; às vezes revolto, caótico, infernal, querendo tudo destruir;
Portugal não podia escapar à irresistível fascinação do desconhecido, a cuja
borda ele estava inclinado. O que podia haver além de tão terrível? A morte? Mas
quando a morte certa, e inevitável mesmo, impediu a nossa espécie de realizar
um desejo, de satisfazer um capricho, de descobrir uma verdade, de afirmar um
princípio! Portugal obedecia a essa força centrífuga que impele as nações
marítimas a apoderarem-se do mar na canoa do selvagem do Pacífico, ou na galera
de Colombo, e a frutificarem ao longo das costas fronteiras, qualquer que seja
a distância.
Nada porém se faz de grande sem um considerável
emprego da energia lentamente acumulada no indivíduo ou na raça, e a energia
que Portugal despendeu foi muito superior à que o seu organismo podia produzir
sem aniquilar-se. O seu destino pode ser comparado ao dessas aves aquáticas que
habitam os rochedos do Oceano... Um instinto insaciável o levava para os mares
desconhecidos do Sul; a loucura do descobrimento apoderou-se dele, e, como
essas aves de que eu falo, quando depois de ter voado sobre os mares
descobertos e os mundos novos, ele quis voltar ao seu rochedo, ao seu ninho de
pedra, o organismo estava exausto, as forças o traíram, e, abrindo as grandes
asas que o tinham levado à Índia e trazido à América, ele soltou o grito
estridente, que repercutem os Lusíadas, e caiu extenuado sobre as ondas!
Esse momento único, porém, o torna tão grande como a
Holanda, com a Inglaterra, como a Espanha, e desse momento, depois do qual a
Conquista consome as forças criadas, as quais só mais tarde hão de ser
reparadas pela colonização, Luís de Camões foi o poeta. Entretanto, apesar de
serem Os Lusíadas a mais elevada expressão artística da Pátria, a Nação não
cooperou neles, não ajudou o Poeta a deificá-la, e recebeu com indiferença o
Poema. Camões, que havia cantado para ter um prêmio nacional, como ele próprio
o diz: Que não é prêmio vil ser conhecido Por um pregão do ninho meu paterno,
reconhece na conclusão da sua empresa que esse prêmio Portugal não o podia dar.
O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a
pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza De uma austera,
apagada e vil tristeza. Mas devia, senhores, o Portugal do século XVI colaborar
com ele? Para mim é duvidoso. Imaginemos que, em vez do acolhimento frio que
teve, o poema fazia de cada Português um partidário, incutia o fanatismo
patriótico onde já havia o fanatismo religioso. O desastre de 4 de Agosto de
1578 teria ocorrido seis anos antes, e o Poeta teria sido parte no suicídio
nacional. Camões, depois de dezessete anos de ausência, não conhecia nem o
povo, nem o rei, que, ambos, haviam mudado. O que lhe inspirava confiança no
povo, era o passado; no rei, era a dinastia. Mas o país era muito pequeno para
ocupar a África, a Ásia, e a América, para combater, conquistar e colonizar a
um tempo, e a política dos Jesuítas não podia desenvolver as forças nacionais.
Quanto ao rei, a dinastia de Avis acabava, como devia, com um herói, mas um
herói que era um louco. Magnetismo da bravura e da mocidade, entretanto! Esse
rei de vinte e quatro anos, só porque morre como um bravo, envolto na nuvem dos
bereberes, só porque o seu cadáver
não repousou ao lado do de Dom João II na Igreja da
Batalha, mas foi enterrado, como o de um soldado, no primeiro cômoro de areia
do deserto, é transformado, como os guerreiros do Norte que as deusas
arrebatavam no ardor da peleja, ao primeiro sangue, num mito nacional.
Camões desejou partir com ele para ser o poeta oficial
da campanha, e até começou um novo poema, que ele mesmo rasgou, depois do
desastre de Alcácer-Quibir. Fez bem, senhores. Nada há mais triste na história
da Arte do que o período da decadência de um artista de gênio, quando a
imaginação não pode mais, e o cérebro cansado só produz a repetição banal e a
imitação da obra-prima da madureza. Felizmente, porém a dignidade do Poeta e a
glória do artista não passaram pela prova dessa palinódia dos Lusíadas. Desde a
publicação do Poema, a alma de Camões, que fora alegre e jovial na mocidade,
comunicativa e fácil durante a vida, talvez porque a sua esperança toda
resumia-se n’Os Lusíadas, torna-se trágica. A expedição Africana, que ele havia
aconselhado com a eloqüência de um Gladstone, pedindo a expulsão dos Turcos da
Europa, dera em resultado a destruição da monarquia. O seu Jau havia morrido,
legando à história um exemplo dessa dedicação, que é a honra do escravo. A mãe
de Camões, D. Ana de Sá e Macedo, que viveu até 1585, para receber a tença do
filho da generosidade de Felipe II, estava inutilizada pela idade. A pobreza do
lar era extrema, e, se a tradição não mente, chegou até a esmola, e a fome.
Como devia ser triste para ele morrer assim, recordar o passado, reconstruir a
sua vida toda!
“A poesia, disse Carlyle, é a tentativa que o homem
faz para tornar a sua existência harmônica.” “Quem quiser escrever poemas
heróicos, disse Milton, deve fazer um poema heróico de sua vida inteira.” Com
efeito, senhores, que poesia é mais elevada do que, por exemplo, a vida da
mulher verdadeiramente bela, quando essa vida é tornada harmônica pelo
respeito, pelo culto, pela adoração de si mesma, como a produção de uma Arte
superior, que é a Natureza? Que poema heróico é maior do que esse em que o
operário converte o trabalho, o marinheiro o navio, a mãe o filho, o rei o
reinado, a mulher o coração, o homem o dever, e o povo a história? Este
material não é mais comum que o mármore ou o verso. A nossa própria vida é a
matéria mais difícil de trabalhar artisticamente e de converter em Poesia.
Nesse sentido, talvez, que lançando um olhar sobre o passado Camões só visse
nele os fragmentos de uma existência dispersa, da qual a memória tornara-se por
fim o registro indiferente. Por que não renunciou ele, para ser feliz, à sua
própria superioridade, à composição dessaepopéia quase póstuma da sua raça? Mas
como se enganava! Essa vida, cujo nexo ele não achou no meio das contradições
do impulso e das dificuldades da luta, navio perdido no mar, cuja direção desde
o princípio escapara à sua vontade, cujas velas o vento contrário o obrigava a
amainar, enquanto a corrente o desviava do seu rumo, essa vida tinha uma
unidade que a torna harmônica, senhores, como o queria Carlyle, e heróica, como
o pedia Milton, e essa unidade, da qual Os Lusíadas são a expressão artística,
não é outra senão a necessidade que a Nação Portuguesa teve de produzir uma
obra universal no momento único da sua história em que ela com Luís de Camões
chegou a possuir a faculdade do gênio.
Por mais triste porém que fosse para o Poeta a
consciência imperfeita que ele tinha do seu destino individual, a sorte de
Portugal devia comovê-lo ainda mais. Imaginai que um espírito criador acaba de
levantar um monumento à pátria, e que esse monumento é a síntese da vida
coletiva de muitas gerações: ao mesmo tempo o Livro de Ouro da Nobreza, e o
Livro Sibilino do futuro; a galeria das armaduras de três séculos militares, e
o Tombo das cartas de navegação; o Arsenal onde jazem os navios que rodearam a
África, e os que descobriram a América; o Campo Santo onde dormem os heróis sob
epitáfios romanos, e a Catedral que guarda as bandeiras de cem batalhas;
imaginai que o artista acredita que a obra viverá pelo menos tanto como a
pátria em cujo solo ele a levantou, e que de repente em vez de ser o edifício
só, é a terra mesma que se abate e se desmorona.
Nesse momento, Camões não separou a pátria do poema,
Os Lusíadas de Portugal. O poeta das Orientais e de Hernani assiste em vida à
sua imortalidade. Mas como podia Camões acreditar que a glória sucederia à
miséria e à indiferença, no meio das quais ele morria? Não, o poema não duraria
mais do que a pátria. E se durasse? À confiança infundada que ele teve na
hegemonia Portuguesa correspondia a certeza, também infundada, da eterna
aniquilação de Portugal. Pois bem, morto Portugal, se os Lusíadas lhe
sobrevivessem, o poeta já via o Poema vertido para o Espanhol, sujeito à
Inquisição infinitamente mais cruel na pátria de Torquemada, e se não destruído
pelo fanatismo iconoclasta, mutilado, prostituído, ou pelo menos profanado,
como o templo de uma religião extinta, que vê a cella da sua divindade morta
tornar-se o altar de um deus desconhecido.
Foi assim que ele morreu, nessa dolorosa opressão, no
dia 10 de Junho de 1580, para ser enterrado pela caridade particular numa pobre
sepultura do convento de Santa Ana.
Os poemas, porém, senhores, têm os seus destinos como
as nações. Se a Espanha, em vez de declinar, depois de Felipe II, tivesse, não
crescido exteriormente, mas progredido internamente repelindo do seu seio a
Inquisição e o absolutismo, e seguindo a paralela da Inglaterra e fundasse a
sua capital em Lisboa, em frente das suas Colônias de Alémmar, na embocadura do
Tejo, talvez que a língua Espanhola absorvesse a Portuguesa, e esta ficasse
para sempre embalsamada, como as grandes línguas mortas, nas fachas de um
poema; talvez que a Nação Portuguesa, a qual nesse tempo já havia realizado a sua
grande missão, vivesse somente nas páginas de Os Lusíadas. O destino de
Portugal porém era outro; assim também o do Poema.
O que é a celebração deste Centenário, senão a prova
de que Portugal não morreu de todo em 1580, mas somente atravessou a morte, e
de que Os Lusíadas não foram o túmulo nem da raça nem da língua? Dos dois lados
da fronteira, depois que se operou a cicatrização dolorosa, formou-se um
patriotismo diverso. A nação criou nova alma, e o Poema de Camões, que ele
julgava condenado ao esquecimento, tornou-se a pátria do Português, como a
Bíblia o é do Israelita, e o Corão do Muçulmano, em qualquer latitude onde eles
se achem. Se eu posso fazer um voto nesta noite, não é que se levante à Camões
uma estátua na capital da América Portuguesa, deixo essa iniciativa aos que
melhor a podem tomar; mas que Os Lusíadas sejam distribuídos generosamente
pelas escolas, para serem lidos, decorados, e comentados pela mocidade. Não é
um livro que torne ninguém Português, é um livro que torna todos patriotas; que
ensina muita coisa numa idade em que estão sendo lançados no menino os
alicerces do homem; que faz cada um amar a pátria, não para ser nela o escravo,
mas o cidadão; não para adular-lhe os defeitos, mas para dizer-lhe com doçura a
verdade. Nele se aprende que os princípios e os sentimentos devem ser os
músculos, e não os nervos, da vida; que a existência do homem alarga-se pela
sua utilidade exterior, que em vez de girar o Mundo em torno de nós, como no
sistema de Ptolomeu, devemos nós girar em torno do Mundo, como no de Copérnico.
Ele ensina que a vida é a ação, e condena essa Austera, apagada e vil tristeza
do organismo doentio que dobra-se sobre si mesmo, em vez de se expandir na
Natureza da qual faz parte. Condena o ascetismo e a simonia, a justiça sem
compaixão, a força sem direito, as honras sem merecimento; eleva a mulher no
respeito do homem, o que é um serviço prestado às raças meridionais; mostra a
linguagem que se deve falar aos reis, sobretudo
Se é certo que co’o o rei se muda o povo; incute a
coragem que deve ser a principal parte da educação; familiariza o ouvido com a
beleza, a medida, e a sonoridade da nossa língua que será sempre chamada a
língua de Camões; mostra que a popularidade é uma nobre recompensa, mas que não
deve ser o móvel de nenhuma conduta, quando fala do ... que, por comprazer ao
vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio; ensina que o homem forte
leva a pátria em si mesmo, ou como ele o diz melhor:
Que toda a terra é pátria para o forte;
prega o desinteresse que é a condição essencial de
qualquer nobreza, sobretudo quando o Templo, como em Jerusalém, e o Fórum, como
em Roma, estão invadidos pelas bancas dos mercadores; fulmina a escravidão em
dois versos, que encerram a eterna injustiça das grandes riquezas acumuladas
pelo trabalho alheio não retribuído, quando promete não louvar a quem Não acha
que é justo e bom respeito Que se pague o suor da servil gente; indica,
senhores, ao que se propõe a qualquer elevado e patriótico fim na vida de que
arte ... o peito um calo honroso cria Desprezador das honras e dinheiro, e lhe
aponta a única forma digna de subir ao que ele chama – o ilustre mando, e que
há de ser sempre para os homens altivos e firmes, onde quer que o governo não
for uma conquista, mas uma doação: Contra vontade sua e não rogando!
Tenho atravessado nesta noite convosco o domínio
inteiro da arte. “O verdadeiro peregrino, diz o personagem de Shakespeare, não
se cansa, ao medir reinos com os seus débeis passos.” Pois bem, eu acabo de
medir o reino da Poesia com a devoção de um peregrino, e agradeço-vos a atenção
com que me ouvistes. Senhores, a obra de arte existe por si só: admirada, se o
povo a sente; solitária, se ele a não compreende, mas sempre a mesma e sempre
bela. Portugal tem razão em considerar Os Lusíadas, como Jerusalém para o
Hebreu, e Atenas para o Heleno, a pátria do seu espírito. Eles são um poema que
em vez de ser escrito podia ser levantado, como o frontão do Partenon, sobre
colunas dóricas pelo compasso de Iktinos; esculpido em relevo nas métopas do
friso pelo cinzel de Fídias; pintado a fresco, nas paredes da Pinacoteca, pelo
pincel de Polignoto, se Portugal fosse a Grécia.
A grande estrutura de mármore pentélico serve só para
cobrir as estátuas dos deuses e dos heróis, e as pinturas nacionais das suas
muralhas; no seu arquitrave reluzem os escudos votivos; o navegante o avista do
mar na pureza das linhas horizontais com que ele corta o Azul; as suas grandes
portas de bronze abrem-se para deixar passar o cortejo das Panatenéias da
pátria; ele guarda a vela de púrpura da galera sagrada; é ao mesmo tempo que a
Acrópole de Atenas o Fórum de Roma; a tribuna do povo defendida, como os
Rostros, pelos esporões dos navios tomados em combate; o Arco de Triunfo sob o
qual desfila o préstito Português desde Afonso Henriques até D. Sebastião, a
nação toda, vestindo a púrpura e cingindo a coroa pela Via da história. Agora
só me resta inclinar-me diante da tua estátua, ó glorioso Criador do Portugal
moderno. Na plêiade dos gênios, que roubaram o fogo ao céu para dar à
humanidade uma nova força, tu não és o primeiro, mas estás entre os primeiros.
À estátua ideal do homem moderno, Shakespeare deu a
vida, Milton a grandeza, Schiller a liberdade, Goethe a Arte, Shelley o Ideal,
Byron a revolta, e tu lhe deste a pátria. A tua glória não precisa mais dos
homens. Portugal pode desaparecer, dentro de séculos, submergido pela vaga
Européia, ela terá em cem milhões de Brasileiros a mesma vibração luminosa e
sonora. O Brasil pode deixar, no decurso de milhares de anos, de ser uma nação
latina, de falar a tua língua, pode dividir-se em campos inimigos, o teu gênio
viverá intacto nos Lusíadas, como o de Homero na Ilíada. Os Lusíadas podem ser
esquecidos, desprezados, perdidos para sempre, tu brilharás ainda na tradição imortal
da nossa espécie, na grande nebulosa dos espíritos divinos, como Empédocles e
Pitágoras, como Apeles e Praxíteles, dos quais apenas resta o nome. A tua
figura então será muitas vezes invocada; ela aparecerá a algum gênio criador,
como tu foste, à foz do Tejo, qual outro Adamastor, convertido pelos deuses
nessa Ocidental pátria lusitana, alma errante de uma nacionalidade morta
transformada no próprio solo que ela habitou. Sempre que uma força estranha e
desconhecida agitar e suspender a nacionalidade Portuguesa, a atração virá do
teu gênio, satélite que se desprendeu dela, e que resplandece como a lua no
firmamento da terra, para agitar e revolver os oceanos.
Mas até lá, ó Poeta divino, até ao dia da tradição e
do Mito, tu viverás no coração do teu povo: o teu túmulo será, como o de Maomé,
a pátria de uma raça; e por muitos séculos ainda o teu Centenário reunirá em
torno das tuas estátuas, espalhadas pelos vastos domínios da língua Portuguesa,
as duas Nações eternamente tributárias da tua glória, que unidas hoje pela
primeira vez pela paixão da Arte e da Poesia, aclamam a tua realeza eletiva e
perpétua, e confundem o teu gênio e a tua obra numa salva de admiração, de
reconhecimento e de amor, que há de ser ouvida no outro
século!
Joaquim Nabuco
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