CAPÍTULO Ill
A BOA NOVA AOS
HOMENS
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
-- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das
noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo
verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para
arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso
verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro,
fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo,
tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a dou- trina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser
substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a
luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e
a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem
o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabe- lais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão
superior, que nin- guém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias;
foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões
de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrín- seco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela
sua parte o Diabo prome- tia substituir a vinha do Senhor, expressão
metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria
nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja,
pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperida- des
infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio
talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas, tro-
cando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que
ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era
a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou
a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o
exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua
casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão
jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes
vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais
do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é
cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos?
não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro
homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que
se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o
Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniá- ria;
depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, con- viria dissimular
o exercício de um direito tão legítimo, o que era exer- cer ao mesmo tempo a
venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo.
Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras
máximas de brandura e cor- dialidade. Não proibiu formalmente a calúnia
gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de
outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da
força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia
a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por
ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva,
todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo
eliminada. pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em
simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria
cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um
obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era urna simples
invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo
senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à
demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um
padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há
próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando
se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a
particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo:
-- Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
Machado de Assis
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